RELATÓRIO SOBRE A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
CAPÍTULO I
A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO DO BRASIL
A. ORDENAMENTO INTERNACIONAL
1. Além de seus compromissos internacionais de caráter universal sobre a promoção e respeito dos direitos humanos,(1) o Brasil se compromete a cumprir as obrigações e garantias decorrentes da Carta da Organização dos Estados Americanos que, em relação aos direitos humanos, consubstanciam-se na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem ("Declaração Americana") e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, "Pacto de San José" ("Convenção Americana"), à qual aderiu em 25 de setembro de 1992, e em seu protocolo relativo à abolição da pena de morte, ao qual aderiu em agosto de 1996, na Convenção Americana para Prevenir e Punir a Tortura (20 de julho de 1989) e na Convenção Americana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (27 de novembro de 1995). Ainda não aceitou a jurisdição compulsória da Corte Interamericana de Direitos Humanos.(2)
2. De acordo com a Constituição Federal, todos os tratados e convenções em que o Brasil é Estado Parte são de aplicação imediata no ordenamento interno do país. Compete ao Poder Executivo celebrá-los a referendo do Congresso Nacional (artigo 84, parágrafo VIII, da Constituição Federal, doravante denominada CF) e, uma vez aceito pelo Congresso, o Presidente, por decreto, ordena sua execução.
3. Essa executoriedade imediata dos compromissos internacionais no âmbito dos direitos humanos faz com que estes sejam diretamente aplicados, sem que seja necessário adotar previamente medidas legislativas, administrativas ou de outra natureza. Isso decorre do artigo 5º da Constituição, que reza o seguinte:
Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
4. A Comissão recebeu, porém, numerosas queixas no decorrer de sua visita de que muitas violações de direitos humanos ficam impunes, entre outras razões, porque se utiliza como justificativa o desconhecimento ou a falta de regulamentação ou de adequação das normas dos tratados internacionais ao direito interno.
5. Nessa mesma ordem de idéias, a Comissão não pode deixar de manifestar preocupação pelo não cumprimento, por parte do Estado brasileiro, de muitas obrigações constantes de instrumentos internacionais de direitos humanos em virtude de que os Estados federados ou entidades estatais que formam a República Federativa exercem jurisdição e têm competência em relação a delitos cometidos em seus respectivos territórios. O chamado "princípio federativo", de acordo com o qual os Estados gozam individualmente de autonomia, tem sido freqüentemente usado como explicação para impedir a investigação e determinação dos responsáveis pelas violações -- muitas vezes graves -- de direitos humanos e contribuiu para acentuar a impunidade dos autores de tais violações.
6. Cumpre salientar que, de acordo com o artigo 28 da Convenção Americana, quando se trate de um Estado Parte constituído como Estado Federal, o governo nacional tem a obrigação de "cumprir todas as disposições da Convenção relacionadas com as matérias sobre as quais exerce jurisdição legislativa e judicial" (parágrafo 1). Quando se trate da "jurisdição das entidades componentes da federação", o governo nacional tem a obrigação de "tomar de imediato as medidas pertinentes, de acordo com sua constituição e suas leis, a fim de que as autoridades competentes de tais entidades possam adotar as disposições cabíveis para o cumprimento da Convenção (parágrafo 2).(3)
B. ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL
Antecedentes
7. No Brasil os direitos e garantias individuais reconhecidos nas Constituições da França e dos Estados Unidos foram recolhidos da Constituição do Império (1824) e na da República (1891) para serem ampliados na de 1934. Entre 1937 e 1946, esses direitos e garantias foram restringidos e voltaram a ser novamente reconhecidos na Constituição de 1946, que seguiu fielmente a de 1934. Um grande retrocesso teve início com o golpe militar de 1964, que marca o começo de 21 anos de ditadura militar (1964-1985), no decorrer dos quais foi aprovada nova Constituição (1967), que foi elaborada pelas autoridades militares e que novamente restringiu as liberdades individuais. Essa restrição aumentou especialmente com o Ato Institucional N.º 1, mediante o qual o regime militar limitou as liberdades civis e os poderes do Congresso; o Ato Institucional N.º 5, de 1968, que suspendeu garantias constitucionais fundamentais e concedeu poderes extraordinários ao Executivo; a Emenda Constitucional N.º 1, de 1969 e, finalmente, a Emenda N.º 7, de 1977, que tornou possível a criação de um foro militar estatal com competência para julgar os crimes cometidos pelos membros da polícia chamada "militar" no exercício de suas funções policiais ordinárias.
8. A Constituição de 1988, atualmente vigente, mantém a forma representativa republicana federal de governo, pela primeira vez consagrada na Constituição de 1891(4) e confirmada em todas as Constituições posteriores.(5) Em seu artigo 2, ela consagra a separação, independência e harmonia dos Poderes Legislativo,(6) Executivo(7) e Judiciário,(8) que são os três poderes da União. Em seu artigo 18, estabelece que a organização político-administrativa compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, que são autônomos, nos termos da Constituição.(9)
Os direitos humanos na Constituição de 1988
9. A Constituição de 1988 representa, no campo dos direitos humanos, importante avanço em relação à de 1967 e às sucessivas emendas constitucionais aprovadas durante a ditadura militar. A Carta constitucional em vigor foi o resultado da percepção quase unânime da sociedade brasileira de que, com o regresso à democracia depois de 21 anos de regime militar, não seria desejável manter a Constituição de 1967 com suas correspondentes emendas, especialmente a Emenda Constitucional N.º 1.
10. Em seu Título I, "Dos direitos fundamentais", a Constituição vigente faz constar a "dignidade da pessoa humana"(10) e a "prevalência dos direitos humanos"(11) entre os princípios essenciais em que se fundamenta a República Federativa do Brasil, na qualidade de Estado democrático de direito. Embora a Constituição não use especificamente a expressão direitos humanos no restante do texto, o princípio de prevalência desses direitos está presente nos diversos capítulos e disposições do mencionado título, no qual se amplia a gama de direitos e deveres individuais e coletivos assegurados na Constituição de 1967 e se tutela grande número de direitos e garantias individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade, políticos e relativos a partidos políticos.
11. No capítulo I, "Dos direitos e deveres individuais e coletivos",(12) por exemplo, pela primeira vez reconhece que não somente os indivíduos,(13) mas também os grupos, têm direitos. Ademais, o artigo 5º, disposição única do aludido capítulo, reconhece a maioria dos direitos e garantias fundamentais incluídos nas convenções internacionais de proteção dos direitos humanos e estabelece medidas de proteção que, em muitos casos, têm características completamente inovadoras. Ao enumerar os direitos e deveres individuais e coletivos, a Constituição reconhece, entre outros, a igualdade perante a lei; a igualdade entre homens e mulheres; o princípio de que somente a lei pode obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer algo; a proibição da tortura e de qualquer tratamento desumano ou degradante; a liberdade de pensamento e culto, de convicção filosófica ou política, de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação; a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, do domicílio, da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas; o acesso à informação; a liberdade de circulação, reunião e associação; a liberdade de associação profissional ou sindical; o direito de propriedade e sua função social; o direito de petição, o direito à justiça e ao devido processo (artigo 5 da CF).
12. O capítulo II trata dos direitos sociais e os capítulos III, IV e V regem, respectivamente, a nacionalidade, os direitos políticos e os partidos políticos.
13. Em relação aos direitos políticos, a Carta constitucional enuncia o princípio da soberania popular (artigo 1 da CF) e estabelece as formas mediante as quais se deve exercer a mesma: pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, nos termos da Lei, mediante plebiscito, referendo ou iniciativa popular (artigo 14, I a III da CF). Quanto aos partidos políticos, proclama a liberdade de criação, fusão, incorporação e extinção, respeitando a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana (artigo 17 da CF)
As ações de garantia
14. A Constituição também prevê seis ações de garantia para a proteção dos direitos pessoais ameaçados: o habeas corpus, o mandado de segurança, o mandado de segurança coletiva, o mandato de injunção, o habeas data e a ação popular.
15. O habeas corpus é o mais antigo dos instrumentos de proteção. Esse instrumento é uma ação constitucional que se concede quando alguém sofre ou é ameaçado de sofrer violência ou coação de sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder (artigo 5, parágrafo LXVIII da CF). O Código de Processo Penal (artigo 648) enumera, entre outras, as seguintes hipóteses em que a limitação do direito de livre circulação deve ser considerada ilegal: quando não houver justa causa; quando a pessoa houver estado presa por mais tempo do que o determinado por lei; e quando a pessoa que ordena a coação não tiver competência para fazê-lo.
16. O "mandado de segurança" destina-se à proteção do "direito líquido e certo não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (artigo 5, LXIX da CF). Trata-se de instrumento efetivo que provoca o exame jurisdicional imediato de um ato de autoridade que, potencialmente ou na realidade, afeta um direito líquido e certo. Foi introduzido em 1926 e protege direitos que até então eram amparados -- embora de maneira deficiente -- pelo habeas corpus. É um instrumentos de grande importância, ainda mais amplo que o habeas corpus, pois protege grande extensão de direitos, inclusive o direito à liberdade, indo mais além da liberdade de locomoção, e o direito à igualdade, ou seja, protege todo direito certo e não impugnável contra as violências e coações de autoridade.
17. O "mandado de segurança coletiva" pode ser solicitado por um partido político com representação no Congresso Nacional ou uma organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída que tenha estado em funcionamento pelos menos por um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados (artigo 5, parágrafo LXX da CF). Esse mandado procura defender os direitos difusos dos membros de uma associação ou coletividade. As entidades legitimadas para solicitar o mandado não necessitam do consentimento de seus membros para fazê-lo, embora devam fazê-lo de acordo com seu mandato e segundo os procedimentos regulamentares.
18. O "mandado de injunção" pode ser solicitado "sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania". (Artigo 5, LXXI da CF).
19. O habeas data tem por objetivo assegurar ao cidadão comum acesso às informações registradas por entidades públicas com respeito à sua pessoa. Também permite que se exija a retificação dos dados se estes estiverem incorretos, quando não se preferir fazê-lo mediante processo secreto, judicial ou administrativo (artigo 5, LXXII da CF). Este recurso protege um direito muito importante na nova era da informação.
20. A "ação popular" permite que qualquer cidadão seja parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato (administrativo) lesivo ao patrimônio público ou o de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. O autor, salvo se comprovada sua má-fé, fica isento do pagamento de custas judiciais. Essa medida é extremamente importante pois, com a possibilidade de anulação de qualquer ato lesivo à moralidade administrativa, se introduz o exame do mérito dos atos administrativos por parte do Poder Judiciário.
C. A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA NO BRASIL
21. A Constituição Federal estabelece as normas aplicáveis à organização do Poder Judiciário em seus artigos 92 a 126.
22. São órgãos do Poder Judiciário: o Supremo Tribunal Federal; o Superior Tribunal de Justiça; os Tribunais Regionais Federais (artigo 108 da CF) e Juizes Federais (artigo 109 da CF); os Tribunais e Juizes do Trabalho (artigos 111 e 114 da CF); os Tribunais e Juizes Militares, e os Tribunais e Juizes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios (artigo 92 da CF). O Supremo Tribunal Federal é constituído de onze Ministros nomeados pelo Presidente da República e é o órgão máximo do Poder Judiciário. Sua função fundamental é a proteção da Constituição Federal,(14) considerada como expressão dos valores sociais e políticos brasileiros. O Superior Tribunal de Justiça, que é composto de, pelo menos, trinta e três Ministros nomeados pelo Presidente da República, é um órgão de articulação e defesa do direito objetivo federal.(15) O Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores têm sua sede na Capital Federal e jurisdição em todo o território nacional.(16)
23. Compete à União Federal organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios.(17) Os Estados da Federação, por outro lado, têm competência para organizar sua justiça, desde que se observem os princípios estabelecidos na Constituição Federal.(18) A competência dos Tribunais e Juizes Estaduais acha-se estabelecida na Constituição do Estado, sendo a lei de Organização Judiciário iniciativa do Tribunal de Justiça.(19) Cabe aos Estados a instituição de representação da inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão.
24. A Constituição Federal, por outro lado, assegura aos tribunais a autonomia orgânico-administrativa, que compreende a autonomia para estruturar e determinar o funcionamento de seus órgãos, bem como a autonomia financeira, que compreende a elaboração de seu próprio orçamento.(20)
25. O Código Penal (CP) rege tudo o que se relaciona com o direito penal(21) e o Código de Processo Penal (CPP) e tudo o que diz respeito ao procedimento penal aplicável à justiça penal comum. Além desses corpos jurídicos, há outros especializados, como o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar (CPPM), relativos aos procedimentos criminais perante a justiça militar (artigo 1 do CPPM). Os quatro códigos mencionados aplicam-se a todo o território nacional (artigos 5 do CP, 1 do CPP, 7 do CPM e 1 CPPM, respectivamente), ou seja, essas normas se aplicam em relação a crimes cometidos tanto no Distrito Federal como nos Estados da Federação.
26. Conforme se analisa in extenso no capítulo relativo a "Violência e impunidade policial", há no Brasil duas justiças militares paralelas, uma das quais com competência em relação aos delitos cometidos pelos membros das forças policiais estaduais que integram a chamada "polícia militar", que cumpre a maioria das funções típicas de segurança para toda a população, inclusive as de policiamento ostensivo, preservação da tranqüilidade e prevenção e repressão do crime. Essa justiça militar estadual, de acordo com a Constituição Federal, pode ser criada pela lei estadual no respectivo Estado federado ou no Distrito Federal, mediante proposta do Tribunal de Justiça. Tem competência para processar e julgar os membros da polícia militar acusados de crimes definidos como militares, contra a população civil. Conforme se analisa no capítulo III, sua competência foi reduzida parcialmente pela nova lei 9299/95, embora essa redução (que sujeita à justiça comum os "crimes dolosos contra a vida") não modifica significativamente o âmbito desse foro privilegiado, que tem sido fonte de impunidade. Em abril de 1997, um novo projeto do Executivo Federal, propondo a emenda constitucional para conferir à justiça federal competência para julgar crimes contra os direitos humanos, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
27. Há outra justiça militar, de âmbito federal e regida pela lei 8457/92, originariamente para processar e julgar os membros das Forças Armadas.
NOTAS AO CAPITULO I
1. No âmbito das Nações Unidas, o Brasil, além de sua obrigação de respeitar a Carta que estabelece, entre outras obrigações, a de "promover o respeito universal e a observância dos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos..." (artigos 55 y 56), ratificou o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (24 de abril de 1992) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (24 de janeiro de 1992).
2. O Brasil também é parte, entre outros, dos seguintes tratados ou convenções em matéria de direitos humanos: Convenção sobre Asilo (assinada em 1928; ratificação ou adesão em 3 de setembro de 1929); Convenção sobre Asilo Político (assinada em 1933; ratificada em 23 de fevereiro de 1937); Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher (assinada em 1948 e ratificada em 19 de março de 1952); Convenção Interamericana sobre Concessão dos Direitos Políticos à Mulher (assinada em 1948 e ratificada em 21 de março de 1950); Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (assinada em 1948 e ratificada em 4 de setembro de 1951; Convenção (n.º 98) sobre o Direito de Organização e Negociação Coletiva (1949; ratificação ou adesão em 18 de novembro de 1951); Convenções de Genebra (I a IV) sobre Direito Internacional Humanitário (assinada em 1949; ratificação ou adesão em 29 de junho de 1957); Convenção (n.º 100) sobre Igualdade de Remuneração (1951; ratificação ou adesão em 25 de abril de 1957); Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (assinada em 1951 e ratificada em 13 de agosto de 1963); Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (1952) (assinada em 1953 e ratificada em 13 de agosto de 1963); Convenção Relativa à Escravidão (assinada em 1953; adesão em 6 de janeiro de 1966); Convenção sobre Asilo Diplomático (assinada em 1954; ratificação ou adesão em 17 de setembro de 1957); Convênio Suplementar sobre a Abolição da Escravidão, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravidão (assinada em 1956; adesão em 6 de janeiro de 1966); Convenção (n.º 105) sobre a Abolição do Trabalho Forçado (1957; ratificação ou adesão em 18 de junho de 1965); Convenção (n.º 111) sobre Discriminação no Emprego e na Profissão (1958; ratificação ou adesão em 26 de novembro de 1965); Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino (1960; ratificação ou adesão em 19 e abril de 1968); Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965; assinada em 1966 e ratificada em 27 de março de 1968); Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1966; assinado em 1967; adesão em 7 de março de 1972); Convenção (n.º 35) sobre Representação dos Trabalhadores (1971; ratificação ou adesão em 17 de maio de 1990); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de discriminação contra a Mulher (1979; assinada em 1979 e ratificada em 1º de fevereiro de 1984); Convenção contra a Tortura e Outros Instrumentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes (1984; assinada em 1984 e ratificada em 28 de setembro de 1989; Convenção Interamericana Para Prevenir e Punir a Tortura (1965; assinada em 1985 e ratificada em 20 de julho de 1989); Convenção sobre os Direitos da Criança (1989; assinada em 1989 e ratificada em 24 de setembro de 1990). Informação extraída dos Arquivos da Divisão de Atos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores e do Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, Ministério das Relações Exteriores, da Fundação Alexandre de Gusmão e do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (1994).
3. Cabe notar que o Governo Federal tem obtido a cooperação dos Estados em uns poucos casos graves, fazendo com que a Policia Federal garanta a isenção de determinadas investigações e fornecendo meios para apuração de denúncias.
4. A Constituição de 1981 marcou o final do governo imperial.
5. As duas Constituições adotadas durante o período de Vargas, que foi extremamente centralizador, mantinham, pelo menos formalmente, o sistema representativo federal de governo. A Constituição de 1946, que representou um retorno aos princípios liberais, também naturalmente conservou essa forma de governo. A Constituição de 1967 e a Emenda N.º 1, emitidas durante o período militar, não modificaram esse elemento tradicional.
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8. O Poder Judiciário é exercido pelos seguintes órgãos e autoridades: O Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e Juizes Federais, os Tribunais e Juizes do Trabalho, os Tribunais e Juizes Eleitorais, os Tribunais e Juizes Militares e os Tribunais e Juizes dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios (artigo 92 da CF). Os juizes do órgão judiciário máximo são nomeados pelo Poder Executivo com a aquiescência do Senado (artigo 102 da CF). Os juizes do Superior Tribunal de Justiça também são nomeados pelo Poder Executivo depois de o Senado aprovar a seleção, mas devem ser escolhidos dentre grupos especificados na Constituição (artigo 104 da CF). Os dos Tribunais Regionais Federais são igualmente nomeados pelo Presidente (artigo 107 da CF).
9. O Distrito Federal é a unidade política que cabe à Capital Federal, Brasília (artigo 18, parágrafo 1 da CF). Tem as mesmas prerrogativas legislativas reservadas aos Estados Federais e aos Municípios (Artigo 32, parágrafo 1 da CF) e tem, inclusive, um Governador eleito pelo povo e representantes na Câmara dos Deputados (artigo 32, parágrafo 2, em concordância com os artigos 77 e 45, parágrafo 2, da CF) e no Senado Federal (artigo 46 da CF). Os Territórios Federais, mencionados no artigo 18, parágrafo 2, da Constituição, integram a União e gozam de autonomia administrativa, mas não de autonomia política. A existência dos territórios é justificada pelo atraso no desenvolvimento da região ou da comunidade. Os territórios acham-se, teoricamente, em situação transitória, aguardando o momento de transformar-se em Estados ou de serem integrados a outro Estado. Os territórios não têm representantes no Senado (Artigo 46 da CF) e seus governadores são nomeados pelo Presidente da República (artigo 84, parágrafo XIV, da CF) e aprovados pelo Senado Federal (artigo 52, parágrafo III, da CF).
10. 10 Artigo 1, parágrafo III, da CF.
11. 11 Artigo 4, parágrafo II, da CF.
12. 12 Artigo 5, parágrafos I a LXXVII, da CF.
13. 13 Ver, por exemplo, o artigo 103, parágrafos VII e IX e o artigo 5º, parágrafo 5, da Constituição, que permitem que a ação de inconstitucionalidade e a instituição do mandado de segurança coletivo sejam propostos, respectivamente, por um partido político ou um sindicato.
14. 14 O artigo 102 da Constituição Federal expressa, nesse sentido, que "Compete ao Supremo Tribunal Federal, preciptuamente, a guarda da Constituição...".
15. 15 A competência do Superior Tribunal de Justiça está dividida em três áreas: 1) a competência originária, como juízo único e definitivo, para processar e julgar as questões a que se refere o parágrafo I do artigo 105 da Constituição Federal, entre as quais se incluem, no caso de delitos comuns, os governadores e altas autoridades judiciais e altas autoridades judiciárias dos Estados; 2) competência para julgar, em recurso ordinário, as causas a que se refere o parágrafo II do aludido artigo; e 3) competência para julgar, em recurso extraordinário, quando se recorrer da decisão por contrariar a Constituição; por declarar a inconstitucionalidade de um tratado ou Lei Federal; ou por julgar válida uma lei ou ato do governo local questionado por contrariar a constituição Federal (parágrafo III da mesma disposição).
16.
17. Artigo 21, parágrafo XIII, da CF.
18. Artigo 125 da CF.
19. Artigo 125, parágrafo 1, da CF. O parágrafo 2 do mesmo artigo estabelece o seguinte:
20. O artigo 99 da Constituição Federal dispõe o seguinte:
Ao Poder Judicial é assegurada autonomia administrativa e financeira.
1º Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados juntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias.
2º O encaminhamento da proposta, ouvidos os outros tribunais interessados, compete:
I. no âmbito da União, aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com a aprovação dos respectivos tribunais;
II. no âmbito dos Estados e no do Distrito federal e Territórios, aos Presidentes dos Tribunais de Justiça, com a aprovação dos respectivos tribunais.
21. Entendido como a repressão dos crimes ou delitos mediante a imposição das penas.
CAPÍTULO II
OS DIREITOS SOCIAIS E ECONÔMICOS NO BRASIL
1. A adoção de medidas para progressivamente conseguir a plena efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais é um compromisso internacional assumido pelo Brasil ao ratificar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) segundo seu artigo 26, que assinala serem esses direitos os "constantes da Carta da OEA...". A esse respeito, a Carta da OEA, em seu artigo 33 indica que, entre os objetivos básicos de seu desenvolvimento integral acordados pelos países na Carta, encontra-se a igualdade de oportunidades e a distribuição eqüitativa da renda. A Comissão considera importante incluir neste relatório um panorama sucinto da situação sócio-econômica do Brasil pois, além do exposto, os particulares desequilíbrios quanto à distribuição da renda e oportunidades no Brasil são, no parecer da Comissão, fator central gerador de situações propícias à violência e à violação dos direitos humanos.
2. Cumpre ao Estado promover seu desenvolvimento integral com total soberania no que se refere a suas políticas e estratégias, mas de acordo com esse compromisso tais objetivos são indeclináveis. Além disso, os estudos salientam a importância das decisões do Estado no melhoramento dessas situações, demonstrando-se, especificamente para o Brasil, que "a variação significativa entre Estados (federais) quanto a condições de pobreza que não se explicam unicamente por diferenças de renda, sugere que as políticas e estrutura econômica também são importantes variáveis".(22)
3. Conforme observa um extenso relatório do Banco Mundial sobre o tema: "Por vários motivos, a pobreza recebe maior atenção no Brasil atual do que no passado. O Presidente Fernando Henrique Cardoso fez da justiça social uma prioridade de sua Administração..."(23) Ainda assim, embora no ano passado se tenha conseguido reduzir o número de indigentes e relativamente aumentar sua capacidade de consumo ainda não se conseguiu modificar qualitativamente a situação.
4. Quão ampla é a pobreza no Brasil varia segundo as estimativas, mas todas salientam não só sua magnitude absoluta como também a desigualdade extrema da distribuição da renda, esta última considerada uma das mais desiguais do mundo.(24) Do total da população do Brasil, os 20% de renda mais alta receberam trinta e duas vezes mais do que os 20% de renda mais baixa, entre 1981 e 1993. Para 1990, a CEPAL publica que, da população urbana, os 40% mais pobres recebiam 9,64% do produto, ao passo que os 10% mais ricos recebiam 41,7% do mesmo.(25) Dados oficiais de 1994 mostram que os 20% mais pobres recebem 2% da renda nacional e os 10% mais ricos recebem os 49,7% da mesma.(26)
5. A diferença entre as cidades e as zonas rurais é igualmente significativa: 66% da população rural do Brasil encontra-se abaixo da linha da pobreza, ao passo que a proporção de pobres na zona urbana é de 38%. Cumpre assinalar que a proporção de pobres urbanos vem crescendo em decorrência do êxodo de pobres rurais para as cidades.
6. As estimativas mais conservadoras(27) indicam que 24 milhões de brasileiros encontravam-se abaixo da linha da pobreza em 1980, ou seja, 17,4% de sua população. Outras análises, como o Mapa da Fome(28) estima que 22% da população (32 milhões) são pobres; e outras ainda estimam que há 42 milhões de pobres, dos quais 17 milhões são indigentes (pobreza extrema).(29) Outras estimativas baseadas em outros indicadores elevam essa proporção para 43,6% da população.(30) O governo indica que como resultado do Plano Real a proporção de pobres que era de 33.4% em 1994 se reduz para 27,8% em 1995 e 25,1% em 1996. A parcela da renda apropriada pelos 50% mais pobres da população aumentou de 11,3% para 12,3%. Assim, o grau de desigualdade caiu de 5,73 em 1994 para 5,13 em 1995 e 5,07 em 1996.(31)
7. A desigualdade de renda acentua-se pela similar desigualdade de acesso a serviços públicos básicos: 20,3% da população não têm acesso a água potável, nem 26,6% a serviços sanitários (saneamento, esgoto, etc.) embora a situação tenha melhorado desde 1975-80, época em que quase o dobro da população não dispunha de tais serviços. Igual fenômeno mostram indicadores tais como o de mortalidade infantil, que é de 57 por mil (um dos mais altos da América), mas que na década de 60 era de 116 por mil. O mesmo ocorre com a educação, uma vez que 3.215.000 crianças de 6 a 12 anos não dispunham de serviços escolares em 1992, embora a tendência seja positiva, uma vez que o analfabetismo baixou de 34% em 1970 a 18% em 1990/95.(32) Em síntese, a situação é grave, mas era muito mais grave há 20 anos.
8. A análise da distribuição dos gastos públicos com serviços sociais (saúde, educação, previdência social) mostra que tais gastos convergem a favor dos ricos,(33) que recebem os maiores benefícios, quando por definição esses gastos públicos deveriam favorecer compensatoriamente às famílias pobres a fim de ajudar a reduzir a desigualdade de acesso a oportunidades e serviços básicos.
9. Como há mais crianças nos estratos pobres do que nos estratos médios e ricos e como são estas, os membros mais vulneráveis da sociedade, essa má distribuição de benefícios afeta especialmente as crianças pobres, com as conseqüências, entre outras, analisadas no capítulo pertinente. 15% das crianças brasileiras achavam-se em estado de desnutrição em 1989, elevando-se essa percentagem para 23% e 27% no Norte e no Nordeste, respectivamente.(34)
10. O Brasil é um país muito diverso e a desigualdade social manifesta-se também regionalmente. A proporção de pobres varia de 7% dos residentes urbanos de Curitiba e de Porto Alegre até 44% entre os habitantes rurais do Nordeste. Mais da metade dos brasileiros pobres vivem no Nordeste, situação que, entre outras, é uma das fontes dos problemas analisados no capítulo sobre "trabalhos forçados" entre os trabalhadores rurais. Em geral, a população rural está em piores condições de pobreza e acesso a serviços do que seus correspondentes urbanos e assim, apesar de três quartos da população ser urbana, metade dos pobres são residentes rurais.(35)
11. Outro fator determinante da pobreza é a origem social. Os negros e mulatos constituem um setor desproporcionalmente alto entre os pobres, uma vez que estes representam 42,5% da população total, mas 62,4% da população pobre.(36)
12. O Governo atual reconheceu a gravidade dessa situação(37) e sua relação, entre outros fatores, com a má distribuição da terra e outros aspectos da economia rural. A Comissão analisa no capítulo pertinente os problemas de direitos humanos diretamente relacionados com a concentração da propriedade da terra e as condições de trabalho rural. Nos últimos meses, o Governo tomou algumas medidas importantes a esse respeito, especialmente no que tange à supressão de privilégios fiscais e de outro tipo que facilitavam a manutenção de latifundios improdutivos e a concentração da terra, situações estas, de conseqüências explosivas e de violação dos direitos humanos, considerando-se que amplos setores de camponeses e trabalhadores rurais não têm acesso à propriedade da terra e a recursos produtivos.
13. Cumpre à Comissão salientar o parco resultado do desempenho do Governo entre 1980 e 1990, década em que, segundo o Banco Mundial, "praticamente não houve redução da pobreza no Brasil, considerando-se -- diz o relatório -- não só a proporção de pobres mas quão pobres eles são, bem como as condições dos grupos mais pobres"; e em que os setores mais pobres foram os que mais sofreram em decorrência das tendências econômicas da década de 80.(38)
14. Segundo informação do Governo pela CIDH, desde 1986 a 1996 a mortalidade infantil caiu (35,3% entre 1988 a 1990, e de 11,9% de 1990 a 1993), sendo a taxa para essa década de 48 mortes em cada 1000 nascidos vivos. Se prevê que no ano 2000 a proporção chegue a 31,2 por mil. Também informa sobre a diminuição da desnutrição infantil, passando de 15,7% em 1989 a 10,5% em 1993; contudo nas áreas rurais e de 16,3%. Igualmente se ampliou a rede de distribuição de água encanada e de esgotos; e os dados apontam para uma melhoria geral nas condições de saúde das crianças. Cerca de 90 por cento dos meninos e meninas de 5 a 14 anos frequentam a escola. Segundo informação do Governo, de 1993 a 1995, 13 milhões de brasileiros superaram a linha da pobreza, e o consumo de alimentos e proteinas nas camadas de mais baixa renda aumentou significamente.
15. A Comissão considera especialmente útil fazer menção às obrigações internacionais do Brasil quanto à pobreza e à distribuição da renda conforme a Carta da OEA e a CADH, observando que, de acordo com cálculos confiáveis, "seria possível eliminar a pobreza no Brasil (dando a cada pessoa pobre o suficiente para colocar-se acima da linha da pobreza)"com um custo de menos de 1% do produto interno bruto.(39)
NOTAS AO CAPITULO II
WB Report 1995, op. cit., p. 32.
PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) Human Development Report, 1996. Oxford University Press, NY, 1996. De 37 países de todo o mundo e de todos os níveis de desenvolvimento, com dados registrados neste relatório, a cifra para o Brasil indica a maior distância entre os 20% da população de renda mais alta e a mais pobre.
CEPAL (Comissão Econômica para WB Report 1995. (World Bank Brazil), A Poverty Assessment, Report 14323'BR) June 1995. Washington, D.C. (doravante "WB Report 1995"). O exemplo do Estado do Ceará, um dos que se encontram em pior situação no Nordeste, mas que estabeleceu políticas bem-sucedidas de redução da pobreza, mostra a capacidade do Estado de influir positivamente em tais condições. a América Latina). Panorama Social de América Latina 1995. Santiago, Chile, 1995, p. 145.
Embaixada do Brasil. Sociedade, Cidadania e Direitos Humanos, Washington, D.C., 1995.
WB Report 1955, p. X.
Peliano, Anna Maria T.M. Coord. 1993 O Mapa da fome I-III. Documentos de Política No. 14.16-IPEA
WB Report 1995, p.X.
CEPAL, op. cit., p. 145
Três Anos de Plano Real. Secretaría de Telecomunicações(www.radiobras.gov.br)
PNUD - Human Development Report, cit.
WB Report 1995, p. 54.
Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN), 1989.
WB Report 1995, p. XI.
Rocha, Sônia, Perfil da Pobreza no Brasil, 1993. Ver o capítulo sobre discriminação racial. O termo racial é utilizado segundo a nomenclatura da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Report on the Human Rights Situation in Brazil, filed by the Government according to Art. 9 of the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination. UN doc.CERD/C/263 ADD 10 e HRI/CORE/1 Add 53.
WB Report 1995, p. 24-25.
WB Report 1995, p.18.
CAPÍTULO III
A VIOLÊNCIA POLICIAL, A IMPUNIDADE E O FORO PRIVATIVO MILITAR DA POLÍCIA
A. VIOLÊNCIA E IMPUNIDADE POLICIAL
1. As forças de segurança brasileiras foram repetidamente acusadas de violar de maneira sistemática os direitos das pessoas e de que há um sistema que assegura a impunidade dessas violações. A Comissão considera que efetivamente há uma história de práticas violatórias da polícia, como comprovou a justiça brasileira e reconheceu o próprio Governo em seu Plano Nacional de Direitos Humanos, embora não seja conveniente adjudicar em geral responsabilidades violatórias a todas as forças de segurança nacionais ou estaduais.
2. Anteriormente à análise do tema da violência ilegal que advém da açao destas forças, cabe apresentar uma análise de sua estrutura e responsabilidades, para então passar a um estudo da violência policial e de seus mecanismos de controle internos e externos.
Estrutura do sistema policial
3. A competência para exercer, organizar e garantir a segurança pública é distribuída entre a União e os Estados, existindo uma Polícia Federal e, em cada Estado, uma polícia civil e outra chamada de polícia militar.
4. A Polícia Federal, nos limites da competência da União, está subordinada ao Ministério da Justiça e atua em todo o território nacional. A principal função da Polícia Federal é "comprovar as infrações penais contra a ordem política e social; e contra os bens, serviços e interesses da União; de suas entidades autárquicas e empresas públicas, bem como outras infrações que tenham repercussão interestadual ou internacional ou exijam repressão uniforme segundo a lei dispõe. Também se encarrega de prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e o contrabando e desvio destes, na polícia marítima, aérea e fronteiriça e no exercício das funções da polícia da União".
5. As polícias estaduais dividem-se em polícia civil e polícia "militar". Esta última cumpre tarefas próprias das polícias civis típicas, subordina-se diretamente ao Poder Executivo (Governador e Secretário de Segurança Pública de cada estado) e não é um força interna do aparato militar nacional. Contudo, mantém o nome de polícia "militar" que lhe foi atribuído ao ser criada em 1977 no decorrer do período de governo militar.(40) Insistindo-se em que não se trata propriamente de uma força militar e em que se subordina diretamente ao Poder Executivo de cada estado, figurará neste relatório entre áspas.
6. A "polícia militar", tem a responsabilidade do policiamento ostensivo e da preservação da ordem pública, ou seja, ela se ocupa, primordialmente, das tarefas diárias de patrulhamento e de perseguição de criminosos. Quanto à subordinação, as polícias estaduais, tanto "militares" quanto civis, subordinam-se aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (Artigo 144, parágrafo 6 da CF). O chefe das polícias estaduais é o Secretário de Segurança Pública, auxiliar direto do Governador e responsável pelos atos que pratica ou referenda no exercício de seu cargo.
7. A polícia civil exerce a função de polícia judicial do estado, encarregando-se de verificar as infrações penais, com exceção das penas militares e das de competência da Polícia Federal.
A violência policial
8. A Comissão por anos vem sendo informada por órgãos governamentais, pela imprensa e por organizações não-governamentais da atuação violenta das polícias estaduais, especialmente da militar, acusada de atuar violentamente tanto no exercício de suas funções como fora dele. Um argumento comumente usado pelas polícias "militares" sobre as acusações que lhes são feitas sobre as múltiplas mortes que ocasionam é que estas são ocasionadas em legítima defesa ou no estrito cumprimento do dever.(41) Embora seja certo que em muitos estados há um clima de violência delinquente, há provas de que a reação da polícia não só excede os limites do legal e regulamentar mas, em muitos casos, os funcionários policiais usam de seu poder, organização e armamento para atividades ilegais. A Comissão quer, ao mesmo tempo, salientar que o Governo Federal e alguns governos estaduais se empenham em corrigir esses excessos e violações, em geral por iniciativa de organizações da sociedade civil e com o apoio delas.
9. Em 1994, dados parciais para 14 estados federados do Brasil revelam que ocorreram 6.494 homicídios de todos os tipos e que, para cerca da metade deles, há atribuição de responsabilidade. Destes últimos, 8% são atribuídos a policiais "militares" e outros 4% a "esquadrões da morte". Analisando Estado por Estado o perfil dos acusados, há importantes diferenças: acusam-se policiais como responsáveis em 17% dos casos em Alagoas; em 6% a 9% dos casos no Amazonas, Amapá, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul; e em 5% ou menos dos casos no Ceará, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Roraima e Sergipe.
10. Entretanto, essas percentagens aumentam se incluem policiais de todos os tipos, guardas privados e membros de grupos de extermínio. Por exemplo, no Estado de Pernambuco, revela-se que dos 1.176 acusados de homicídio, no período de janeiro de 1994 a outubro de 1995, 215 (18,3%) eram policiais, e outros 154 (13,1%) eram membros de grupos de extermínio.
11. Segundo informações recebidas, grande número dessas mortes não são causadas por ação da polícia no estrito cumprimento do dever; muitas vezes, essas mortes estão relacionadas com as chamadas "execuções extrajudiciais", decorrentes da participação de membros da polícia estadual em grupos de extermínio, inclusive de adolescentes e crianças. No caso de mortes ocasionadas em serviço, de acordo com o levantamento feito pela própria polícia, tem peso considerável a falta de preparação profissional.
12. A Comissão Parlamentar de Investigação dos assassinatos de crianças e adolescentes no Brasil chegou à conclusão de que grande parte da responsabilidade por esse tipo de crime recaía sobre os policiais "militares", concluindo, ademais, que os policiais acusados de crimes eram apoiados em diversas frentes, a começar pelas deficientes investigações policiais e, em seguida, pela maneira indulgente com que eram tratados pela justiça militar.
13. As explicações dadas pelas autoridades sobre esses casos tornam evidente que, apesar das profundas transformações políticas por que passou o país desde o fim do governo militar, a polícia "militar" continua a seguir o modelo repressivo desse governo, motivo por que os membros dessas polícias orientam-se no sentido de atuar de maneira violenta, a fim de prevenir ou aniquilar possíveis movimentos então considerados subversivos. Daí o fato de que muitos policiais "militares" cometam atualmente no desempenho de suas funções abusos que são notados inclusive quando, do exame das vítimas, se infere que foram mortas por disparos fatais em partes vitais do corpo ou nas costelas, verificando-se claramente que as mesmas não tentavam resistir, estando em muitos casos desarmadas.
14. A criminalidade das cidades brasileiras é apontada pelas autoridades policiais como uma das causas da violência policial. A Comissão pôde, porém, observar que nem sempre as vítimas de abusos cometidos pelos policiais têm relação com o mundo do crime.
15. O Governo sustém que, após vários incidentes de flagrantes abusos brutais, que vão desde o mal tratamento de prisioneiros até a participação em esquadrões da morte, o Governo Federal e alguns governos estaduais deram início a intensivos programas de combate à ação policial e dos grupos de extermínio. Ademais, a Polícia Federal iniciou em 1993 uma investigação especial sobre a má conduta policial. Unicamente no Estado do Rio de Janeiro, 131 membros de esquadrões da morte foram processados nos últimos dois anos (1994 e 1995), 64 dos quais achavam-se presos em fins de 1995. Além disso, foram expulsos da força policial.
16. Segundo opiniões autorizadas, os excessos cometidos não têm atualmente relação com "crimes políticos", mas com a criminalidade comum que, na mente de alguns setores policiais, e mesmo civis, está identificada com estereótipos de que provém dos "negros", dos "desempregados", dos "pobres", das "meninas de rua" ou dos "meninos de rua".(42)
17. A violência policial com respeito às crianças, especialmente de rua, ao que parece é encarniçada em alguns Estados. Na Bahia, por exemplo, a Comissão Legislativa de Direitos Humanos, em abril de 1995, deu uma audiência sobre o tema, na qual recebeu informações sobre cinco matanças atribuídas à polícia "militar" estadual, três das quais matanças de crianças.
18. Em Manaus, em dezembro de 1994,um jovem de 19 anos, confundido com outro, foi duramente golpeado por policiais e em seguida, recebeu um tiro na espinha dorsal. Ao cair, foi novamente agredido a pontapés restando paralisado.(43) Casos como esse ocorrem com freqüência, sendo também freqüente o fato de que os policiais que cometem abusos chegam, às vezes, a receber prêmios da corporação policial por sua atuação, considerada exemplar. A Comissão foi informada de que autoridades policiais em alguns estados brasileiros chegam a apoiar publicamente a atuação violenta dos policiais, como se verifica ademas em publicações jornalísticas de Novembro de 1996. A Comissão manifesta preocupação ante esse fato, já que seria um estímulo à violência policial, ao legitimar uma violência institucional.
19. Existem ainda casos em que policiais acusados de vitimizarem supostos os criminosos são premiados e promovidos, como exemplo, o episódio de um cabo previamente relacionado a 49 assassinatos e que recebeu o titulo de "Policial do Ano".(44) Por sua vez, o coronel que o condecorou foi acusado de praticar 44 mortes em seus 24 anos de carreira(45).
20. As estatísticas oficiais da polícia "militar" do Estado de São Paulo mostram que entre 1988 e 1992 verificaram-se as seguintes mortes de civis em operações da polícia "militar": 294 em 1988; 532 em 1989; 585 em 1990; 1.074 em 1991; e 1470 em 1992.(46) Em 1994, a polícia "militar" matou 522 pessoas e, só nos três primeiros meses de 1995, a polícia "militar" teria matado 136 civis.(47) Tais índices aumentaram vertiginosamente de 1988 a 1993. A situação inverteu-se na área metropolitana de São Paulo, onde o número de civis mortos pela polícia "militar" vem diminuindo desde 1993, depois do massacre de presos em Carandiru. Em 1992, houve 1.190 civis mortos pela polícia, mais que nos quatro anos posteriores, em que houve em total 1.015. Em 1996, a cifra baixou a 106 civis mortos por ação policial.(48)
21. Enquanto a situação, em número de mortos pela polícia, parece melhorar em São Paulo, ocorre no Rio de Janeiro um fenômeno alarmante desde maio de 1995, ocasião em que tomou posse um novo Secretário de Segurança Pública. Desde esse mês, no período que se estende até fevereiro de 1996, a media de mortos pela polícia "militar", por mês, elevou-se de 3,2 a 20,55 pessoas, ou seja, um total de 201 pessoas em 1996. Um terço das vítimas foram mortas pelo Nono Batalhão o qual patrulha numerosas áreas de favelas.(49)
22. Chama a atenção da Comissão que, embora o normal em enfrentamentos armados seja que haja uma proporção muito maior de feridos do que mortos, nesse período no Rio de Janeiro o número de civis mortos pela polícia "militar" em enfrentamentos foi mais de três vezes o número de civis feridos nos mesmos. Isso demonstraria um excesso de uso de força e, inclusive, um padrão de execuções extrajudiciais pela polícia do Rio de Janeiro. Essas atitudes policiais repercutiram sobre a confiança da população em sua polícia - elemento chave do império do direito - assinalada como muito pouca no Rio de Janeiro. Nos anos de 1995 e 1996, somente 12% daqueles que foram roubados comunicaram o fato à polícia. Essa desconfiança é mais acentuada por nível social, uma vez que um de cada três dos roubados dos setores de alta renda informaram à polícia, ao passo que só um o fez de cada dez roubados de setores pobres.(50)
23. Entretanto, os casos de execuções extrajudiciais por parte da polícia "militar" ocorrem não somente no desempenho de suas funções, mas também fora delas. Esses casos são diariamente comunicados por fontes locais e internacionais e, no parecer da Comissão, demonstram um padrão de conduta alarmante, que merece atenção especial.
24. Por esse motivo, mencionam-se alguns dos muitos casos comunicados por fontes locais e internacionais no período a que se refere este relatório (1988-96), não avaliando cada um dos fatos nele descritos, mas como ilustração do padrão de violência existente.(51) Os casos que implicam violência em geral serão mencionados nesta parte do relatório e os que envolvem violência contra menores serão tratados no capítulo relacionado com execuções extrajudiciais de crianças e adolescentes. Também serão citados alguns exemplos na parte relativa aos esquadrões da morte ou grupos de extermínio.
Dificuldades na investigação da violência policial
25. A Comissão constatou que, quando as autoridades decidem investigar os casos de violência policial, encontram enormes dificuldades em reunir provas que identifiquem os responsáveis pelas violações dos direitos humanos. Uma dessas causas é o conceito errôneo de corporativismo policial que encobre a violência praticada por seus membros mediante a obstrução da justiça. A Comissão recebeu informações, por exemplo, de que a tortura é comumente utilizada pelas polícias estaduais como método de investigação. Segundo tais informações, quando as autoridades querem verificar as denúncias de torturas, encontram dificuldades e mesmo desobediências às ordens judiciais.(52)
26. Outro obstáculo de fato enfrentado consiste em que no Brasil prevalece a chamada "lei do silêncio", segundo a qual, as testemunhas oculares ("testemunhas") se negam a esclarecer as circunstâncias dos fatos presenciados por temor a possíveis represálias. O medo de represálias é tão forte que muitas vezes as próprias vítimas da violência policial preferem calar-se a ser alvo dessas represálias. Ainda não há no Brasil um sistema efetivo de proteção das testemunhas, embora se esteja começando a implementar um desses sistemas, como veremos mais adiante.(53)
27. O medo de testemunhar fundamenta-se em casos em que a "lei do silêncio" não é respeitada e a potencial testemunha põe sua vida em perigo. Um exemplo disso ocorreu em 6 de novembro de 1994, com o jovem Eduardo de Araújo, de 14 anos, sobrevivente da matança da Candelária. O jovem foi baleado e morto por dois homens que todos os dias passava pela rua onde Eduardo morava, atirando para o alto. O dia em que Eduardo foi assassinado, os homens repetiram a rotina, mas ordenaram a ele que corresse, transformando-o em alvo móvel.(54)
28. Por outro lado, quando uma testemunha se dispõe a colaborar com a justiça na identificação de criminosos, depara-se ela com a lentidão do próprio processo judicial e podem transcorrer meses sem que seja chamada a testemunhar, sem que disponha de serviço algum que a proteja, o que desestimula a colaboração com a justiça. Esse foi o caso de Wagner Dos Santos, lavador de carros, de 23 anos, principal testemunha da matança da Candelária, que sofreu um atentado. Após a matança, Santos foi para a Bahia a fim de proteger-se. Entretanto, quinze dias depois de voltar ao Rio de Janeiro - e vivendo na Casa de Proteção de Testemunhas, sob a proteção da Guarda da Justiça do Estado - sofreu um segundo atentado por parte de policiais "militares" envolvidos na matança.(55)
29. A desconfiança da polícia com respeito à população marginal e em relação à lei desperta, por sua vez, a conseqüente desconfiança da população para com a polícia. Essa desconfiança, embora varie de um estado para outro, é muito alta na maioria deles, o que reflete a situação de insegurança em que se vive em alguns deles, insegurança essa propícia à violação dos direitos humanos. No Estado da Bahia, por exemplo, pesquisas realizadas em 1995 revelaram que 85% da população não confiam na polícia "militar" e 82% não confiam na polícia civil, o que levou a Legislatura a estabelecer uma Comissão Parlamentar de Inquérito a esse respeito. Esses dados confirmam os anteriormente citados para o Rio de Janeiro.
30. Um passo importante para a correção dessa falha foi dado pelo Governo do Estado de Pernambuco ao assinar um convênio com o Gabinete de Assessoria Jurídica das Organizações Populares (GAJOP), uma organização não-governamental. O projeto, conhecido como Programa PROVITA, tem por finalidade proteger as vítimas da violência e consiste em atividades conjuntas de órgãos governamentais, e de entidades e pessoas da sociedade civil interessados em prestar serviços de apoio psicológico às vítimas da violência. O programa também tem por objetivo criar locais que adequadamente assegurem a proteção das testemunhas que se achem sob ameaça. Cumpre assinalar que o convênio, atualmente na fase inicial de implementação, já dispõe de 25 locais de proteção às testemunhas, distribuídos em diferentes regiões do Estado, fato que revela a seriedade com que o Governo estadual acatou a iniciativa da sociedade civil. Um projeto similar foi celebrado entre o Ministério da Justiça e a Ong "Viva Rio", no Estado do Rio. Está também em andamento um programa no Centro de Atendimento à Vítima do Crime(CEVIC), dando a vitima assistência jurídica e psicossocial.
31. A Comissão manifesta sua esperança de que o mencionado convênio produza os resultados pretendidos e que o exemplo pernambucano seja seguido por outros governos estaduais, uma vez que esse projeto que prevê a proteção das testemunhas data de alguns anos; fora proposto em 1993 e retirado do Congresso pelo Executivo em 1996, para estudo à respeito da incompatibilidade de seus dispositivos com a estrutura legal brasileira. Apesar disso, a Comissão observa com satisfação o interesse do Governo em apoiar a criação, pelos Estados, de seus respectivos programas de proteção das testemunhas, interesse que foi manifestado no PNDH, que o inclui como meta de curto prazo.
32. A Comissão não pode deixar de salientar as conseqüências perversas desse descontrole da delinqüência por parte das forças da ordem, elas próprias atuando fora da lei e dos regulamentos, gerando a perda da confiança da população no estado de direito e a procura de soluções através de vias ilegais.(56)
33. A Comissão deseja salientar algumas iniciativas estaduais no sentido de reduzir a violência policial. Uma delas, no mesmo Estado da Bahia, onde a respectiva Comissão Parlamentar iniciou em 1994 a realização de assembléias populares em escolas de bairros humildes, em que se discutem casos de violência policial, com a presença de representantes policiais, de organizações comunitárias e parlamentares.
34. Outro exemplo é o dos Centros Comunitários de Defesa da Cidadânia iniciados pela Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, combinando as Polícias Civis e "Militares" com outros serviços governamentais como os Bombeiros, ajuda para desastres e programas juvenis. Esta secretaria também tem começado a treinar seus funcionários na Universidade nos temas do Império do Direito, Direitos Humanos e Sociologia. Igualmente importante são as tarefas das "auditorias" ("ouvidorias") da Polícia, que atuam como "ombudsman" policiais, o que é analizado no final deste capítulo.
35. No plano federal tomaram-se iniciativas legislativas que visam o combate da impunidade, sobretudo de policiais envolvidos em violações de direitos humanos:
a) A lei 9455/97, que tipifica o crime de tortura e estabelece penas severas como prevê a Constituição Federal, de 1988, e
b) O projeto de lei enviado pelo Executivo ao Congresso Nacional em abril de 1997, com vistas a agilizar os procedimentos de "oitiva" de testemunhas em processos criminais.
B. OS ESQUADRÕES DA MORTE
Antecedentes
36. Os esquadrões da morte ou grupos de extermínio foram estabelecidos por antigos oficiais da polícia a fim de combater o crime. No Rio de Janeiro, por exemplo, os primeiros desses grupos foram estabelecidos por volta de 1950. Seus membros são conhecidos como os "justiceiros".
37. Uma pesquisa realizada em 1991 revelou que 27% (8.000 policiais) dos membros das forças policiais do Rio de Janeiro foram convidados, em algum momento, para participar desses grupos.(57) Em 1996, segundo uma pesquisa realizada no Rio de Janeiro e em São Paulo, 76% dos entrevistados declararam crer que há esquadrões da morte compostos por policiais.(58)
38. O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro sobre Extermínio de Menores identificou 15 grupos de extermínio no referido Estado. Em 1997, esses grupos atuavam nos municípios de Duque de Caxias, Niterói e Barra Mansa.(59) Denúncias apresentadas à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Congresso Nacional revelam que, no mesmo ano, havia no Estado de Pernambuco 30 grupos de extermínio.(60) Também no Estado do Espírito Santo e no Estado de Minas Gerais se denuncia a existência de esquadrões de justiceiros, formados pela polícia civil e pela polícia militar (PM).(61)
39. A composição dos grupos de extermínio é variável. Às vezes, seus membros são policiais de plantão(62) que encontram na participação nesses grupos uma forma de aumentar seu baixo salário. Outras vezes, são policiais expulsos da polícia por sua participação em atos delituosos. Em ambos os casos, tanto os policiais em serviço como os expulsos fazem de sua participação nos esquadrões da morte um meio de vida. Em outros casos, esses esquadrões são constituídos de indivíduos contratados como vigilantes por pequenos comerciantes temerosos de assaltos.(63) Há grupos que não guardam relação específica com o crime organizado e exercem o controle de determinada região a fim de garantir a segurança de seus moradores.(64) Outros grupos formam parte de organizações criminosas, sofisticadas ou não, envolvidas no tráfico de drogas e outras atividades ilícitas.(65) Embora os membros dos esquadrões da morte iniciem suas atividades como verdadeiros vigilantes, seu contato com delinqüentes faz com que freqüentemente acabem por vincular-se com o tráfico de drogas e com diversas atividades delituosas, como a extorsão.(66)
40. Os esquadrões da morte atuam no extermínio tanto de adultos como de adolescentes e crianças. Em relação às vítimas adultas, são elas em geral pessoas pertencentes ao mundo do crime. No caso de crianças e adolescentes, sua característica é serem pobre e serem considerado ameaça social. Às vezes, essas crianças ou adolescentes fazem tratos com os policiais ou o crime organizado e acabam sendo executados com a quebra do acordo.(67)
41. De acordo com dados do Centro de Denúncias sobre os Grupos de Extermínio, criado pelo Governo no Estado do Rio de Janeiro, das 159 pessoas detidas entre abril de 1991 de junho de 1993 por estarem envolvidas nesse tipo de atividade, 53 eram membros da polícia "militar".(68)
42. A fim de entender a psicologia desses esquadrões, referimo-nos às palavras de um dos chamados justiceiros: "a polícia não pode patrulhar cada bairro, nem cada rua... Entretanto, o crime continua a aumentar e o número de indesejáveis se multiplica... Nós impomos ordem".(69)
43. Costuma-se dizer que os políticos locais (prefeitos, conselheiros, vereadores e deputados estaduais e federais) apoiam os esquadrões da morte e que, algumas vezes, usam do controle que exercem os justiceiros sobre a população local para conseguir votos ou intimidar os oponentes. Também se alega que alguns indivíduos processados por pertencerem a esses grupos trabalham abertamente para alguns políticos locais. As pessoas que se opõem ao controle exercido pelos justiceiros em seus respectivos bairros correm o risco de perder a vida; também é muito arriscado delatá-los à polícia. Assim, entre 1991 e 1993, só na área do Rio de Janeiro, os grupos de extermínio executaram 31 líderes comunitários.(70)
44. No Estado do Rio Grande do Norte, por exemplo, supostos membros da polícia deram fim à vida do advogado Francisco Gilson Nogueira de Carvalho na madrugada de 20 de outubro de 1996. Nogueira de Carvalho era advogado das vítimas da violência policial e assistente do Ministério Público em processos que levavam a comprovar a existência de um grupo de extermínio conhecido como os "rapazes de ouro" na polícia civil do Estado. O advogado assassinado também denunciava a conivência das autoridades com os autores dos crimes, uma vez que os resultados das investigações correspondentes às mortes ocasionadas pela polícia jamais foram enviadas à justiça. A Comissão Especial criada para esse efeito pela Procuradoria Geral de Justiça constatou o envolvimento dessa polícia em mais de 30 mortes. As autoridades federais, conhecedoras desde 1995 das ameaças contra Nogueira de Carvalho, colocaram-no sob a proteção da Polícia Federal. O suposto mandante do crime, o ex-Secretário Adjunto de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Norte, foi afastado do seu cargo.
45. No Estado de Pernambuco, uma Comissão Parlamentar de Inquérito criada pela Legislatura do Estado constatou a existência de 30 grupos de extermínio no Estado, muitos deles com a conivência e participação da polícia.
46. Em numerosos Estados do Brasil (Acre, Amazonas, Alagoas, Espírito Santo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio de Janeiro, Sergipe, entre outros) a ação dos esquadrões da morte no sentido de eliminar jovens pobres e suspeitos de crimes em áreas urbanas; e líderes comunitários e sindicais em áreas rurais, ficou impune, segundo informação recebida.(71)
A impunidade dos "grupos de extermínio"
47. Esses grupos operam impunemente(72), sobretudo pelas ameaças, pela intimidação de testemunhas e ficais, pelas investigações insuficientes para processar seus membros e pela ineficiência do Poder Judicial para condená-los.(73) Por outro lado, suas operações são em parte toleradas pela população, que muitas vezes as considera como forma "rude" de fazer justiça e como paliativo da falta de eficiência demonstrada pelo Poder Judiciário no combate à violência.(74) Alega-se, ademais, que por vezes funcionam com o consentimento das autoridades policiais locais, que não se esforçam para pôr fim a suas atividades, seja porque participam das mesmas, seja porque sentem que os grupos de extermínio ajudam a eliminar criminosos, traficantes de drogas e outros "indesejáveis".(75)
48. Entrevistas com policiais "militares" revelam os motivos aparentes da violência policial. O principal argumento para a matança de supostos criminosos em vez de sua detenção consiste em que, segundo alegam, a luta contra o crime torna-se mais efetiva. Na opinião dos entrevistados, é um modo de evitar que os suspeitos sejam entregues à polícia civil que, alegam eles, aceita subornos e é ineficiente na etapa de investigação.(76)
49. De fato, quando se examina a relação entre os crimes cometidos, as investigações concluídas e os julgamentos realizados, percebe-se que a impunidade é um fato. No Estado de Pernambuco, por exemplo, entre janeiro de 1986 e junho de 1991, ocorreram 460 homicídios de jovens de até 18 anos. Destes, 118 foram julgados. Nos primeiros dez meses de 1994, houve 114 assassinatos de crianças e adolescentes e, de acordo com dados da Secretaria de Segurança, foram abertos somente 16 inquéritos.
50. No Estado do Rio de Janeiro, dados do Instituto de Religião revelam que, de 3.450 inquéritos sobre homicídios, 92% resultaram em impunidade. De 500 casos, somente 7,8% chegaram à justiça. De acordo com o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), num estudo sobre investigação de 306 homicídios de crianças e adolescentes ocorridos no Rio de Janeiro de 1991, na maioria deles teriam sido recolhidos elementos suficientes para comprovar a autoria dos culpados e, em certos casos, cerca de um ano após terem sido instauradas os inquéritos, foram eles abandonados, e dezenas deles nem sequer puderam ser localizados. Concluiu-se com essa pesquisa que a má instrução dos inquéritos é causada pela falta de estímulo por parte dos delegados policiais e fiscais judiciais.(77)
Os linchamentos
51. Outro fenômeno observado nas cidades brasileiras é o linchamento, cuja dimensão e caracterização se acham integrados ao cotidiano da sociedade, podendo ser desencadeados por vários motivos, seja pelo simples furto de um adolescente, seja pela ação de um estuprador. Disso se depreende que a ocorrência dos linchamentos, como dos esquadrões da morte, se fundamente na falta de um sistema policial operante e eficaz, bem como na incredulidade da população quanto à efetividade da justiça. O linchamento também poderia ser assinalado como outra mola propulsora da violência policial, pois os membros da polícia estariam cometendo abusos para evitar a ocorrência de linchamentos por parte da população. Na realidade, a violência cometida por membros da polícia seria, do ponto de vista de membros da polícia, inerente à natureza de seu trabalho e, por conseguinte, sempre desse ponto de vista, menos reprovável do que a violência exercida pela população em geral nos linchamentos.
52. Cumpre salientar que, nos casos em que ocorrem tentativas de linchamento por parte da população, a participação policial destina-se a impedir que tais tentativas se concretizem, retirando a vítima e levando-a a lugar seguro. Do exame de 213 casos, em que o linchamento foi impedido, em 54% deles houve atuação direta da polícia, o que demonstra sua eficácia em impedir esse tipo de crime.(78)
C. IMPUNIDADE POLICIAL
Sistemas de controle interno e externo da polícia
53. O controle interno da ação policial estadual é feito pelas Corregedorias de Polícia em cada Estado, cabendo a estas, basicamente, as atribuições de acompanhar e fiscalizar a regularidade dos serviços prestados pelas polícias civil e "militar" de cada Estado e de verificar, mediante sindicância determinada pela Secretaria de Segurança, as irregularidades em que tenham estado envolvidos policiais civis e "militares", indicando as penalidades que lhes cabem e instaurando os devidos processos administrativos.
54. A Comissão reconhece a ação de algumas Corregedorias dos Departamentos de Segurança Pública no cumprimento de sua difícil tarefa de controle interno. Para uma idéia dessa tarefa, cumpre assinalar os dados da Corregedoria do Estado de Pernambuco que, em dez meses de 1995, instaurou 435 sindicâncias e concluiu 265. Delas, 46 foram processos administrativos com base em delitos penais (14 deles por lesões corporais causados por policiais). Em conseqüência dos mesmos foram demitidos 1 delegado, 2 comissários, 1 escrivão e 10 agentes, além de sete outras penalidades administrativas. Esse programa se complementa com o já mencionado programa da Secretaria de Segurança pernambucana, para a proteção de testemunhas, familiares e vítimas da violência.
55. A Comissão também salienta que recentemente, em 1995, foi criada por decreto no Estado de São Paulo a primeira Ouvidoria da Polícia, órgão complementar da polícia, dirigido por um representante da sociedade civil e destinado a complementar o controle interno das ações das polícias estaduais. Segundo dados oficiais, a Ouvidoria de São Paulo recebeu, nos primeiros seis meses, desde sua criação, 1.134 casos, dos quais informa haver solucionado 34%. Do total de casos, 64% referem-se a ações impróprias da polícia civil de São Paulo e 36% a de sua polícia "militar". Quase 10% das queixas contra a polícia "militar" corresponderam em 1996 a homicídios em que se alegava envolvimento de policiais "militares". Do total de queixas, cerca de cem (aproximadamente 10%) correspondiam a abusos de autoridade e torturas. A própria Auditoria preparou um anteprojeto de lei para a obtenção de autonomia e independência institucional como primeiro passo para a consolidação da primeira experiência brasileira de ombudsman policial. A Ouvidoria de Polícia de São Paulo em 17 meses de atividades promoveu a punição de 420 policiais.
56. O Governo Federal incluiu a criação das Ouvidorias de Polícia como uma das medidas a serem implementadas por intermédio do PNDH. Na prática, além da Ouvidoria do Estado de São Paulo, há a Ouvidoria do Distrito Federal, e os Estados de Minas Gerais, Pernambuco, Bahia e Pará estão criando a suas, implementando leis estaduais. A existência e ação da Auditoria do Estado de São Paulo, vem sendo amplamente divulgada pelo Governo estadual, bem como o meio de acesso a esse órgão, desse modo estimulando a população a denunciar os abusos cometidos por policiais "militares" e civis. A Comissão chama a atenção para a coincidência da criação desse órgão e a sensível diminuição de mortes causadas por policiais de São Paulo, conforme se informou acima.
57. O controle externo da ação da polícia tanto civil como militar deve ser exercido pelo Ministério Público (artigo 129, VII, CF) e pelo Poder Judiciário. Como um resíduo de sua criação sob o regime militar, cabe ao Ministério Público Militar Estadual, a competência para promover a ação penal pública perante a Justiça Militar, cabendo-lhe ademais, entre outras atribuições, a de instaurar a investigação policial militar e exercer o controle externo da atividade da polícia militar. Isso significa, no parecer da Comissão, uma falha crítica do sistema de garantias da ação policial, pois se destitui o Ministério Público civil do controle da ação policial comum (a cargo das polícias "militares") que são justamente aquelas às quais se atribui o maior número de violações dos direitos humanos.
58. Também se salienta, em relação ao controle eficaz das atividades policiais, a importância do órgão encarregado de realizar as perícias médico-legais, o Instituto Médico Legal, que, sendo parte da polícia civil, emite laudos periciais muitas vezes imprecisos. Na medida em que muitas dessas perícias tendem a estabelecer a própria responsabilidade do pessoal policial nas mortes ou ferimentos, a Comissão considera de fundamental importância a desvinculação desse órgão da polícia e sugere sua associação com departamentos científicos ou de medicina legal de universidades ou de outra instituição que assegure sua absoluta profissionalidade e independência.
A justiça militar estadual como foro privativo para o julgamento dos membros da polícia militar.(79)
59. Por iniciativa do Secretário Nacional de Direitos Humanos, Dr. José Gregori, foi criado um grupo de trabalho encarregado de estudar a reforma do sistema de segurança pública no Brasil. Uma das propostas é a de estabelecimento de uma agência nacional com prerrogativas que incluiriam a fiscalização das forças de segurança pública. O objetivo do grupo é de procurar definir o papel das força de segurança no contexto da democracia e do estado de direito , de modo a tornar as polícias brasileiras agentes centrais na promoção dos direitos e liberdades fundamentais.
60. A justiça militar estadual tem competência para processar e julgar os membros das polícias militares acusadas de cometer crimes, definidos como militares, contra a população civil, ou seja, esse foro é regido pelo direito penal militar (Código Penal Militar, CPM), próprio dos militares, que contém normas substantivas de Direito Penal e que constitui um "complexo de normas jurídicas destinado a assegurar a realização dos fins essenciais das instituições militares, cujo objetivo principal é a defesa da pátria". Prevalecem nesse foro "a hierarquia e a disciplina"(80). Também se rege pelo Código de Processo Penal Militar (CPPM), que contém normas de direito formal ou objetivo. A nova Lei 9.299/96 põe sob jurisdição ordinária penal os casos de delito contra a vida com intenção dolosa, mas mantém o restante da competência da justiça militar acima da polícia.(81)
61. Trata-se de uma ordem normativa especial, com princípios e diretrizes próprias, na qual a maioria das normas são aplicáveis somente aos militares e a civis que cometem crimes contra as instituições militares, diferentemente do que sucede no direito penal comum, em que as normas são aplicáveis a todos os cidadãos.(82)
62. O artigo 125, parágrafo 4, da Constituição Federal estabelece o seguinte:
Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei...
63. A lei de que consta essa definição é o Código Penal Militar, que em seu artigo 9,(83) parágrafo II, alínea f, reza o seguinte:
Artigo 9. Consideram-se crimes militares em tempo de paz:
II. Os crimes previstos neste Código, enquanto tenham a mesma definição na lei penal comum, quando forem cometidos:
f) por militar em situação de atividade, ou entendendo-se que, embora não esteja em serviço, use armamento de propriedade militar ou qualquer material bélico sob custódia, fiscalização ou administração militar, para a prática de ato ilegal.
64. De acordo com a disposição acima transcrita, as forças policiais "militares"(tanto federais como estaduais e do Distrito Federal), que são as corporações encarregadas do policiamento preventivo e ostensivo dos civis, estão sujeitas à legislação penal militar, bem como aos tribunais militares, inclusive quando cometem delitos contra civis no cumprimento de suas funções ou usando armas da corporação. Essa competência foi limitada pela Lei 9.299/96 mas, como veremos adiante, essa limitação não é efetiva para eliminar a impunidade decorrente desse foro privativo.
Antecedentes do foro especial militar para julgamento dos policiais militares
65. Até 1977, prevaleceu o critério de que os crimes cometidos pelos policiais militares no exercício de suas atividades policiais eram de natureza civil e, por conseguinte, da competência da justiça comum.(84)
Muitos desses casos chegaram ao Supremo Tribunal Federal, o qual, em numerosas decisões, foi de parecer que o serviço policial ou de fiscalização do trânsito não configura uma função de natureza militar e resolveu o conflito a favor da competência da justiça comum. Tantas foram as decisões nesse sentido que, em 1993, o Tribunal Supremo Federal publicou a Súmula N.º 297, que diz o seguinte:
Os oficiais e cargos das milícias dos Estados no exercício da função policial civil não são considerados militares para efeitos penais, sendo competente a justiça comum para julgar dos crimes cometidos por eles ou contra eles.
66. A partir da Emenda Constitucional N.º 7, de 1977 - que modificou o artigo 144, parágrafo 1, alínea a, da Constituição - conhecida como o "Pacote de Abril", sob o regime militar então reinante tornou-se possível a criação de uma justiça militar estadual de caráter especial para o processamento e julgamento dos policiais militares pelos crimes militares definidos na lei.(85) O Supremo Tribunal Federal modificou então o critério e começou a considerar que a justiça militar estadual era competente para julgar os policiais "militares" pelos crimes militares definidos no Código Penal, quando fossem por eles cometidos no exercício de suas atividades policiais.(86)
67. Essa mudança fundamental na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal teve por conseqüência o aumento dos crimes cometidos por policiais militares, os quais ficaram impunes.
A impunidade resultante do regime de exceção para julgar os policiais militares
68. Em janeiro de 1983, estabeleceu-se publicamente o desempenho da justiça militar estadual a partir da Emenda Constitucional N.º 7, assinalando-se a esse respeito que:
...a Justiça Militar começou a receber todos os casos (referia-se à Emenda Constitucional N.º 7, de 1977), absolvendo magicamente os soldados e oficiais que matam. Em conseqüência dessa impunidade, quase quatrocentos homens morreram no ano passado, dos quais nem todos eram delinqüentes; as vítimas, em sua grande maioria, eram jovens, crianças, que cometeram uma ou duas infrações e pobres da periferia, oriundos dos estratos mais miseráveis da população... (o grifo é da Comissão).(87)
69. A Constituição de 1988, apesar de todos os seus avanços, manteve(88) a organização policial dos governos militares, a concepção militarizada da segurança pública e o foro de exceção para o julgamento dos crimes comuns cometidos por policiais "militares" no exercício de suas funções policiais. Poder-se-ia dizer que esse texto constitucional conservou um regime de exceção que ratifica a transferência do julgamento dos policiais "militares" para a competência da justiça militar, mantendo-os na mesma situação de quase impunidade semelhante à decorrente da Emenda Constitucional N.º 7, promulgada na época da ditadura militar.
70. Para o entendimento das causas dessa impunidade, é importante analisar alguns aspectos da estrutura da justiça militar no Brasil.
71. A justiça militar da União e a dos estados federados baseiam-se em estrutura análoga. Os ilícitos penais distribuem-se entre as auditorias militares, que são os órgãos de primeiro grau da jurisdição da justiça militar e que correspondem às varas criminais na justiça comum. As auditorias militares são constituídas por um corpo colegiado composto de um juiz-auditor e um Conselho de Justiça.
72. O Conselho de Justiça reúne-se especialmente para julgar o acusado em primeira instância. Atualmente, é constituído por quatro oficiais militares em atividade e por um juiz-auditor civil. O presidente do Conselho, escolhido no dia fixado para o proferimento da sentença, deve ser o militar da mais alta hierarquia (artigo 16 da lei 8457/92).
73. Por sua vez, o juiz-auditor é o único civil que não está colegiado. Esse juiz deve ser advogado e ter sido eleito para o cargo por concurso público. O juiz-auditor goza de competência para receber a denúncia formulada pelo órgão de acusação e, posteriormente, para instruir o processo criminal, decidindo questões de direito que, de outro modo, não seriam adequadamente solucionadas pelos juizes militares, que em geral não são advogados.
74. No âmbito federal, as decisões tomadas pelas auditorias militares estão sujeitas a recursos conhecidos pelo Superior Tribunal Militar (STM). Trata-se de órgão colegiado de segunda instância, constituído por 15 membros, a saber: quatro oficiais-generais do Exército, três oficiais-generais da Marinha e três oficiais-generais da Aeronáutica. Cumpre assinalar que todos esses oficiais devem estar na ativa e ser nomeados pelo Presidente da República, ouvido o Senado Federal. O Supremo Tribunal Militar também é constituído por cinco civis, dos quais dois devem ser juízes- auditores e os demais, juristas de notória erudição e maiores de 35 anos.
75. Além de conhecer os recursos de apelação, o Supremo Tribunal Militar goza de competência para restabelecer a jurisdição militar quando a mesma for invadida por um juiz de primeira instância (da justiça comum). Para esse efeito, tem competência para chamar o processo a juízo superior (artigo 6. IV da Lei 8457/92), ou seja, se um juiz de vara criminal da justiça comum resolver julgar um militar por um delito comum, o processo poderá ser chamado à esfera da justiça militar por decisão do Supremo Tribunal Militar.
76. A Constituição autoriza os Estados federados, desde que o contingente policial militar estadual tenha mais de vinte mil membros, a criar, por proposta do Tribunal de Justiça, seu órgão de segunda instância militar, ou seja, o Tribunal de Justiça Militar. Atualmente, existe esse tipo de tribunal nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.(89)
77. Os processos perante os tribunais militares muitas vezes tardam anos,(90) em virtude do excesso de trabalho,(91) da escassez de juizes e fiscais, das excessivas formalidades nos procedimentos e dos incidentes dilatórios. A Comissão pôde estabelecer que esses tribunais tendem a ser indulgentes com os policiais acusados de abusos dos direitos humanos e de outras ofensas criminais, o que facilita que os culpados fiquem na impunidade.
78. Nesse clima de impunidade,(92) que predispõe à violência por parte da corporação policial militar,(93) os policiais envolvidos nesse tipo de atividade se vêem estimulados a intervir em execuções extrajudiciais, em abuso dos detentos e em outros tipos de atividade delituosa. A violência eventualmente estendeu-se ao fiscais quando estes insistiram em prosseguir as investigações dos crimes cometidos por policiais "militares", passando eles a ser objeto de ameaças, até mesmo ameaças de morte. Tão pouco estranho é o fato das testemunhas convidadas a declarar contra os policiais processados, recebam ameaças intimidantes.(94)
79. Em carta dirigida à Comissão em 1996, o Centro Santos Dias expressa o seguinte a esse respeito:
Nos inquéritos militares, formalizados nos órgãos da justiça militar, a parcialidade em favor dos policiais incriminados, na maioria dos casos, é escandalosa, a ponto de transformar as vítimas em réus. Também é muito comum a intimidação das testemunhas, cujas deposições judiciais são tomadas na presença dos policiais acusados. Nessas condições, não é de estranhar que a freqüência com que se determina o arquivamento das investigações por motivo de deficiência de provas... Se, cumprida essa etapa, se chegasse a apresentar ou a acolher uma denúncia, surgiriam novas dificuldades na marcha do processo, deliberadamente moroso e cheio de incidentes dilatórios: demora na constituição dos conselhos, adiamentos sucessivos por motivo de pequenas falhas formais etc. (O grifo é da Comissão). Assim, não é de estranhar que uma instrução(95) se arraste por quatro ou cinco anos, ou indefinidamente, por tempo suficiente para apagar a lembrança dos fatos nos periódicos e na memória das pessoas. Passado tanto tempo, as famílias das vítimas já terão perdido a esperança, as testemunhas terão mudado de domicílio e as provas já se terão desvanecido.(96)
80. Fontes fidedignas informam que, somente em São Paulo, onde 1.470 civis foram mortos em 1992 em mãos da polícia "militar", os tribunais militares terminaram por absolver quase todos os policiais "militares" processados.(97) Por sua vez, um estudo(98) realizado em São Paulo em novembro de 1993 determinou que, num período de 18 meses, se apresentassem nos tribunais militares estaduais 143 casos e que em 92% desses casos os policiais fossem absolvidos.(99)
81. Um problema grave que continua a ocorrer é o limitado número de fiscais que se encarreguem dos numerosos casos de violação supostamente cometidas por policiais militares. Por exemplo, no Estado de São Paulo, havia em 1992 14.000 processos em tramitação perante a Justiça Militar a vários títulos, mas somente havia quatro fiscais atuando nesses processos, ou seja, cada fiscal encarregava-se de 3.500 processos.(100)
82. A violência da polícia militar e a impunidade deram origem a diversas iniciativas na Câmara dos Deputados com vistas a suprimir o foro especial militar para o julgamento dos crimes cometidos por policiais militares no exercício de suas atividades públicas. Entre elas está o projeto de lei apresentado pelo Deputado Hélio Bicudo,(101) que devolve ao foro comum o julgamento dos crimes cometidos pelos oficiais das polícias militares estaduais ou contra eles no exercício de suas funções policiais. Esse projeto propõe que se revogue a alínea f do artigo 9 do Código Penal Militar (Decreto-Lei N.º 1.001, de 21 de outubro de 1969), acima transcrito (ver pfo. 62) e que se inclua o seguinte "Parágrafo único":
Oficiais e praças das polícias militares dos Estados no exercício de suas funções policiais não são considerados militares para os efeitos penais, sendo competente a justiça comum para processar e julgar os crimes cometidos por eles ou contra eles.
83. Esse projeto volta ao conceito da Súmula N.º 297, ou seja, excede o foro comum o julgamento dos crimes cometidos pela polícia militar no exercício de suas funções policiais. Esse projeto de lei não foi plenamente aprovado; em seu lugar foi porém aprovado, com o apoio do bloco favorável ao Governo no Senado, um projeto substitutivo, apesar de o Presidente Fernando Henrique haver endossado o projeto original. O Presidente sancionou o projeto substitutivo, conferindo-lhe força de lei, em 7 de agosto de 1996 (Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996). A Lei 9.299 emenda o artigo 9 do Código Penal Militar (Decreto-Lei N.º 1.001), que define os crimes militares. O novo "Parágrafo único" estabelece o seguinte:
Os crimes de que trata este artigo, quando forem crimes dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum. (O grifo é da Comissão).
84. Isto significa que os policiais militares continuarão a ser julgados em foro privilegiado quando se trate de crimes contra a pessoa, tais como o homicídio culposo, lesão corporal, tortura, o seqüestro, prisão ilegal, extorsão e golpes.
85. Durante a tramitação do projeto na Câmara, impôs-se a ele outra limitação grave, que consistia na emenda de uma seção do artigo 82 do Código de Processo Penal Militar, que agora se redige da seguinte maneira:
Nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial à justiça comum. (Artigo 82, seção 2, do CPPM).
86. Com isso, o inquérito permanecerá sob a responsabilidade da autoridade militar, mesmo que se trate de crime doloso contra a vida e apesar de que, de acordo com a nova lei, tais crimes passem à esfera da justiça comum. Essa nova disposição contradiz o artigo 144, seção 4, da Constituição, que atribui às polícias civis as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações penais, exceto as militares. Com efeito, se os crimes dolosos contra a vida deixam de ser militares em virtude da nova lei, o inquérito penal deverá ficar a cargo das polícias civis, às quais correspondem, de acordo com o artigo 144, seção 4, da Constituição, "as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais". Ao deixar a investigação inicial em mãos da polícia "militar", de fato se confere a esta a competência para determinar ab initio se o crime é doloso ou não. Isso significa que a Lei 9.299 da República não tem capacidade efetiva para reduzir consideravelmente a impunidade.
87. O Programa Nacional de Direitos Humanos apresentado pelo Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso estabelece, entre as metas de curto prazo, as seguintes:
Atribuir à justiça comum a competência para processar e julgar os crimes cometidos por policiais militares em suas funções policiais ou com arma da corporação, apoiando um projeto específico já aprovado na Câmara dos Deputados.
88. Ao mencionar "um projeto específico já aprovado na Câmara dos Deputados", o aludido programa refere-se, na realidade, ao projeto do Deputado Hélio Bicudo, que fora aprovado na Câmara dos Deputados antes de passar ao Senado e ser substituído pelo projeto substitutivo finalmente aprovado.
89. O projeto substitutivo provocou reação de repúdio que deu origem a uma campanha no sentido de resgatar o texto original. Esse movimento teve início em 14 de maio de 1996 num encontro realizado entre o Foro Nacional Contra a Violência no Campo(102) e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
90. Em julho de 1996, o projeto de lei original voltou a ser submetido à consideração da Câmara dos Deputados, desta vez como N.º 2.190, de 1996. Na opinião desta Comissão, a aprovação de um projeto de lei nesse sentido, coincidente com uma das metas de curto prazo do Programa Nacional de Direitos Humanos, implicaria um passo fundamental no combate à violência policial. Se aprovado, os policiais militares, no exercício de suas funções, deixariam de ser considerados militares para fins penais e a justiça militar já não teria competência para julgar os crimes comuns cometidos por eles e contra eles. Isso se aplicaria a "todos" os crimes comuns e não somente aos dolosos contra a vida, como ocorre com a Lei 9.299, recentemente aprovada. Além disso, como prevê o mencionado programa, dever-se-ia incluir os crimes cometidos por policiais militares "usando arma da corporação", a fim de assegurar que os policiais militares que cometam crimes comuns contra civis, como membros de grupos de extermínio e fazendo uso de armas da corporação, também sejam julgados pela justiça penal comum. Assim, a Comissão considera que deveria ficar claro que o inquérito policial estará a cargo da polícia civil, conforme dispõe o artigo 144, seção 4, da Constituição Federal. O projeto foi aprovado pelo Senado, e não contempla os crimes de formação de quadrilha e extorsão. O Governo informou a CIDH que envidara esforços para que a futura lei inclua todos os crimes praticados por policiais militares.
D. CONCLUSÕES
91. A Comissão reconhece, com satisfação, o empenho do atual Governo Federal e de alguns governos estaduais em combater a violência, bem como a impunidade dos membros das polícias estaduais. Os esforços federais são visíveis, principalmente se observa a elaboração do Programa Nacional de Direitos Humanos, o qual prevê medidas de extrema relevância para restringir a violência.
92. A Comissão manifesta a esperança de que sejam transformadas em lei as medidas propostas pelo PNDH que ainda não o foram, com vistas a pôr fim às violações dos direitos humanos. Vê com satisfação a aprovação da Lei 7.865, de 1996, que institui o Sistema Nacional de Armas, o que estabelece condições para seu registro e define como crimes seu uso indevido seja por civis, seja por forças de segurança. Também espera que as seguintes medidas previstas pelo PNDH sejam aprovadas nos prazos previstos no mesmo e plenamente aplicadas:
Regulamentar o artigo 129, parágrafo VII, da Constituição Federal, que trata do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público;
Fortalecer os Institutos Médicos-Legais ou de Criminalística, assegurando sua autonomia;
Incluir nos cursos das academias policiais matérias específicas relacionadas com o respeito aos direitos humanos;
Incentivar acriação e o fortalecimento das corregedorias de polícia;
Propor a imediata instauração da sindicância e o afastamento administrativo da força, sem prejuízo do devido processo penal, para os policiais acusados de violência contra os cidadãos;
Incentivar a instauração das Auditorias de Polícia, com representantes da sociedade civil e autonomia para a investigação e fiscalização;
Estimular a implementação de programas de seguro de vida e de saúde para os policiais; e
Apoiar a criação de um sistema de proteção especial das famílias dos policiais ameaçados por motivo de suas atividades.
93. A Comissão manifesta preocupação pela violência assinalada, reconhecendo que, embora haja alta criminalidade nas cidades brasileiras, esta não pode ser usada como justificativa para a atuação ilegal da polícia, nem se pode admitir a existência de um poder legal paralelo ao Estado, encarregado de fazer justiça com as próprias mãos, a seu arbítrio e fora da lei. A polícia deve garantir a segurança da pessoa humana e o respeito a ela, bem como fazer-se respeitar por isso e não pelo temor que inspire. A violência policial desprestigia a corporação e impede o aperfeiçoamento de seus membros, na medida em que desvirtua suas atribuições.
94. A Comissão também observa que a impunidade para os crimes cometidos pelos policiais estaduais, militares ou civis, constitui um elemento propulsor da violência, estabelece elos de lealdade perversa entre os policiais por cumplicidade ou falsa solidariedade e gera círculos de sicários cuja capacidade de terminar vidas humanas passa a estar a serviço de quem der mais.
95. Ante tais fatos, a Comissão apresenta as seguintes recomendações que, em geral, coincidem com os esforços do Governo Brasileiro e com os propósitos do PNDH:
Criação de uma comissão especial permanente de investigação de possíveis grupos de extermínio e dos chamados "justiceiros".
Maior fiscalização dos trabalhos das forças policiais, com controle externo efetivo. Além do processo criminal, as autoridades devem fazer rigorosas inspeções internas a fim de identificar e disciplinar policiais que cometem violações ou que deixem de tomar as medidas adequadas para prevenir ou tornar pública a conduta criminosa de outros policiais. Os policiais acusados de homicídios devem ser transferidos a postos em que não manipulem armas de fogo até que se demonstre sua inocência. A reforma do Sistema de Segurança Pública no Brasil, em estudo deve enfocar esse aspecto.
Medidas, por parte das autoridades, para assegurar que os agentes policiais usem de força letal somente como último recurso para proteger a vida, e não para eliminar pessoas tidas como indesejáveis ou simplesmente suspeitas, nem quando estas ponham em risco a vida de terceiros.
Alteração do procedimento de investigação de maneira que os membros de uma divisão ou distrito policial não sejam designados para investigar abusos praticados por membros dessa mesma divisão. Além disso, as vítimas ou seus representantes devem ter acesso aos registros das investigações e ser mantidos a par da situação em que se encontrem os processos contra policiais acusados de abuso dos direitos humanos, de maneira que seja compatível com a eficácia da investigação e os direitos dos policiais como acusados.
Elaboração pelas Secretarias de Segurança Pública dos Estados de políticas de incentivo aos policiais que desempenhem suas funções exemplarmente, mediante prêmios em dinheiro, benefícios a suas famílias e promoções, bem como a criação de cursos específicos sobre direitos humanos para policiais em serviço(103) e treinamento em táticas e habilitação que minimizem o número de vítimas produzidas por sua ação legal. Equipando a polícia com a necessária infra-estrutura atualizada. Também promovendo a adequada remuneração, que assegure aos policiais condições de vida dignas e garánta a qualidade dos serviços por eles prestados à comunidade.
Penalização dos policiais responsáveis por crimes, dentro ou fora de suas funções policiais, e divulgação pública das penalidades que lhe foram aplicadas.
Criação de um dispositivo que modifique a previsão constitucional que garante a estabilidade funcional dos servidores civis, se essa estabilidade impede a demissão de policiais que cometam excessos.(104)
Aplicação de um programa nacional de proteção das testemunhas, alterando sua identidade e permitindo sua mudança a outras áreas do país, bem como elaboração de procedimentos especiais que permitam o uso de testemunhos filmados ou gravados a fim de acelerar as investigações e proteger as testemunhas de confrontação direta com seus agressores.(105)
Atribuição à justiça comum de competência para julgar todos os crimes cometidos por membros das polícias "militares" estaduais.(106)
Transferência para a competência da justiça federal do julgamento dos crimes que envolvam violações dos direitos humanos, devendo o Governo Federal assumir a responsabilidade direta pela instauração de processo e pelo devido estimulo processual quando se trate de tais crimes.(107)
NOTAS AO CAPÍTULO III
1. 1 No âmbito das Nações Unidas, o Brasil, além de sua obrigação de respeitar a Carta que estabelece, entre outras obrigações, a de "promover o respeito universal e a observância dos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos..." (artigos 55 y 56), ratificou o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (24 de abril de 1992) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (24 de janeiro de 1992).
2. 2 O Brasil também é parte, entre outros, dos seguintes tratados ou convenções em matéria de direitos humanos: Convenção sobre Asilo (assinada em 1928; ratificação ou adesão em 3 de setembro de 1929); Convenção sobre Asilo Político (assinada em 1933; ratificada em 23 de fevereiro de 1937); Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher (assinada em 1948 e ratificada em 19 de março de 1952); Convenção Interamericana sobre Concessão dos Direitos Políticos à Mulher (assinada em 1948 e ratificada em 21 de março de 1950); Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (assinada em 1948 e ratificada em 4 de setembro de 1951; Convenção (n.º 98) sobre o Direito de Organização e Negociação Coletiva (1949; ratificação ou adesão em 18 de novembro de 1951); Convenções de Genebra (I a IV) sobre Direito Internacional Humanitário (assinada em 1949; ratificação ou adesão em 29 de junho de 1957); Convenção (n.º 100) sobre Igualdade de Remuneração (1951; ratificação ou adesão em 25 de abril de 1957); Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (assinada em 1951 e ratificada em 13 de agosto de 1963); Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (1952) (assinada em 1953 e ratificada em 13 de agosto de 1963); Convenção Relativa à Escravidão (assinada em 1953; adesão em 6 de janeiro de 1966); Convenção sobre Asilo Diplomático (assinada em 1954; ratificação ou adesão em 17 de setembro de 1957); Convênio Suplementar sobre a Abolição da Escravidão, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravidão (assinada em 1956; adesão em 6 de janeiro de 1966); Convenção (n.º 105) sobre a Abolição do Trabalho Forçado (1957; ratificação ou adesão em 18 de junho de 1965); Convenção (n.º 111) sobre Discriminação no Emprego e na Profissão (1958; ratificação ou adesão em 26 de novembro de 1965); Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino (1960; ratificação ou adesão em 19 e abril de 1968); Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965; assinada em 1966 e ratificada em 27 de março de 1968); Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1966; assinado em 1967; adesão em 7 de março de 1972); Convenção (n.º 35) sobre Representação dos Trabalhadores (1971; ratificação ou adesão em 17 de maio de 1990); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de discriminação contra a Mulher (1979; assinada em 1979 e ratificada em 1º de fevereiro de 1984); Convenção contra a Tortura e Outros Instrumentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes (1984; assinada em 1984 e ratificada em 28 de setembro de 1989; Convenção Interamericana Para Prevenir e Punir a Tortura (1965; assinada em 1985 e ratificada em 20 de julho de 1989); Convenção sobre os Direitos da Criança (1989; assinada em 1989 e ratificada em 24 de setembro de 1990). Informação extraída dos Arquivos da Divisão de Atos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores e do Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, Ministério das Relações Exteriores, da Fundação Alexandre de Gusmão e do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (1994).
3. 3 Cabe notar que o Governo Federal tem obtido a cooperação dos Estados em uns poucos casos graves, fazendo com que a Policia Federal garanta a isenção de determinadas investigações e fornecendo meios para apuração de denúncias.
4. 4 A Constituição de 1981 marcou o final do governo imperial.
5. 5 As duas Constituições adotadas durante o período de Vargas, que foi extremamente centralizador, mantinham, pelo menos formalmente, o sistema representativo federal de governo. A Constituição de 1946, que representou um retorno aos princípios liberais, também naturalmente conservou essa forma de governo. A Constituição de 1967 e a Emenda N.º 1, emitidas durante o período militar, não modificaram esse elemento tradicional.
6.
7. -
8. 8 O Poder Judiciário é exercido pelos seguintes órgãos e autoridades: O Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e Juizes Federais, os Tribunais e Juizes do Trabalho, os Tribunais e Juizes Eleitorais, os Tribunais e Juizes Militares e os Tribunais e Juizes dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios (artigo 92 da CF). Os juizes do órgão judiciário máximo são nomeados pelo Poder Executivo com a aquiescência do Senado (artigo 102 da CF). Os juizes do Superior Tribunal de Justiça também são nomeados pelo Poder Executivo depois de o Senado aprovar a seleção, mas devem ser escolhidos dentre grupos especificados na Constituição (artigo 104 da CF). Os dos Tribunais Regionais Federais são igualmente nomeados pelo Presidente (artigo 107 da CF).
9. 9 O Distrito Federal é a unidade política que cabe à Capital Federal, Brasília (artigo 18, parágrafo 1 da CF). Tem as mesmas prerrogativas legislativas reservadas aos Estados Federais e aos Municípios (Artigo 32, parágrafo 1 da CF) e tem, inclusive, um Governador eleito pelo povo e representantes na Câmara dos Deputados (artigo 32, parágrafo 2, em concordância com os artigos 77 e 45, parágrafo 2, da CF) e no Senado Federal (artigo 46 da CF). Os Territórios Federais, mencionados no artigo 18, parágrafo 2, da Constituição, integram a União e gozam de autonomia administrativa, mas não de autonomia política. A existência dos territórios é justificada pelo atraso no desenvolvimento da região ou da comunidade. Os territórios acham-se, teoricamente, em situação transitória, aguardando o momento de transformar-se em Estados ou de serem integrados a outro Estado. Os territórios não têm representantes no Senado (Artigo 46 da CF) e seus governadores são nomeados pelo Presidente da República (artigo 84, parágrafo XIV, da CF) e aprovados pelo Senado Federal (artigo 52, parágrafo III, da CF).
10. 10 Artigo 1, parágrafo III, da CF.
11. 11 Artigo 4, parágrafo II, da CF.
12. 12 Artigo 5, parágrafos I a LXXVII, da CF.
13. 13 Ver, por exemplo, o artigo 103, parágrafos VII e IX e o artigo 5º, parágrafo 5, da Constituição, que permitem que a ação de inconstitucionalidade e a instituição do mandado de segurança coletivo sejam propostos, respectivamente, por um partido político ou um sindicato.
14. 14 O artigo 102 da Constituição Federal expressa, nesse sentido, que "Compete ao Supremo Tribunal Federal, preciptuamente, a guarda da Constituição...".
15. 15 A competência do Superior Tribunal de Justiça está dividida em três áreas: 1) a competência originária, como juízo único e definitivo, para processar e julgar as questões a que se refere o parágrafo I do artigo 105 da Constituição Federal, entre as quais se incluem, no caso de delitos comuns, os governadores e altas autoridades judiciais e altas autoridades judiciárias dos Estados; 2) competência para julgar, em recurso ordinário, as causas a que se refere o parágrafo II do aludido artigo; e 3) competência para julgar, em recurso extraordinário, quando se recorrer da decisão por contrariar a Constituição; por declarar a inconstitucionalidade de um tratado ou Lei Federal; ou por julgar válida uma lei ou ato do governo local questionado por contrariar a constituição Federal (parágrafo III da mesma disposição).
16.
17. 17 Artigo 21, parágrafo XIII, da CF.
18. 18 Artigo 125 da CF.
19. 19 Artigo 125, parágrafo 1, da CF. O parágrafo 2 do mesmo artigo estabelece o seguinte:
20. 20 O artigo 99 da Constituição Federal dispõe o seguinte:
Ao Poder Judicial é assegurada autonomia administrativa e financeira.
1º Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados juntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias.
2º O encaminhamento da proposta, ouvidos os outros tribunais interessados, compete:
I. no âmbito da União, aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com a aprovação dos respectivos tribunais;
II. no âmbito dos Estados e no do Distrito federal e Territórios, aos Presidentes dos Tribunais de Justiça, com a aprovação dos respectivos tribunais.
21. 21 Entendido como a repressão dos crimes ou delitos mediante a imposição das penas.
22. 1 WB Report 1995. (World Bank Brazil), A Poverty Assessment, Report 14323'BR) June 1995. Washington, D.C. (doravante "WB Report 1995"). O exemplo do Estado do Ceará, um dos que se encontram em pior situação no Nordeste, mas que estabeleceu políticas bem-sucedidas de redução da pobreza, mostra a capacidade do Estado de influir positivamente em tais condições.
23. 2 WB Report 1995, op. cit., p. 32.
24. 3 PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) Human Development Report, 1996. Oxford University Press, NY, 1996. De 37 países de todo o mundo e de todos os níveis de desenvolvimento, com dados registrados neste relatório, a cifra para o Brasil indica a maior distância entre os 20% da população de renda mais alta e a mais pobre.
25. 4 CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina). Panorama Social de América Latina 1995. Santiago, Chile, 1995, p. 145.
26. 5 Embaixada do Brasil. Sociedade, Cidadania e Direitos Humanos, Washington, D.C., 1995.
27. 6 WB Report 1955, p. X.
28. 7 Peliano, Anna Maria T.M. Coord. 1993 O Mapa da fome I-III. Documentos de Política No. 14.16-IPEA.
29. 8 WB Report 1995, p.X.
30. 9 CEPAL, op. cit., p. 145.
31. 10 Três Anos de Plano Real. Secretaría de Telecomunicações(www.radiobras.gov.br)
32. 11 PNUD - Human Development Report, cit.
33. 12 WB Report 1995, p. 54.
34. 13 Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN), 1989.
35. 14 WB Report 1995, p. XI.
36. 15 Rocha, Sônia, Perfil da Pobreza no Brasil, 1993. Ver o capítulo sobre discriminação racial. O termo racial é utilizado segundo a nomenclatura da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
37. 16 Report on the Human Rights Situation in Brazil, filed by the Government according to Art. 9 of the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination. UN doc.CERD/C/263 ADD 10 e HRI/CORE/1 Add 53.
38. 17 WB Report 1995, p. 24-25.
39. 18 WB Report 1995, p.18.
40. 1 Embora os membros das polícias "militares" exerçam funções civis e estejam subordinados ao Governador do Estado, são eles chamados de serviços miltitares estaduais, em que pese a não terem relação típica com as Forças Armadas, que são federais e subordinadas a seu comandante em chefe, o Presidente da República. A Constituição estabelece que essas polícias estaduais também atuem como forças auxiliares e de reserva do Exército a fim de assegurar a ordem pública e a paz social ameaçadas (artigo 144, parágrafo 6, e artigo 42 da CF). A denominação de "militar " da polícia encarregada da segurança pública em realidade teve origem sob o governos militares, quando as polícias estavam sob o controle direto das Forças Armadas. Essa subordinação direta desapareceu ao reformar-se a constituição em 1988, quando passaram a subordinar-se às aytoridades civis estaduais eleitas constitucionalmente.
41. 2 Diário do Congresso Nacional (seção I) Dezembro de 1992, terça-feira 1º 25433.
42.
43. 4 Disso resultou que Jelson Lima ficou paralítico e com uma série de outros problemas de saúde e vem procurando obter indenização por intermédio da Justiça do Estado. Quando ao policial que o agrediu, uma auditoria militar comcluiu, em Março de 1995, que o policial agiu com "negligencia e imprudência…e que ocasionou grave lesão em Jelson Lima". A Justiça miltar o condenou em primeira instância a 8 anos de prisão, mas o policial apelou da sentença e aguarda em liberdade a dicisão. O policial não foi, segundo informação de que dispõe a Comissão, objeto de punição adiministrativa.
44. 5 O caso do cabo Adeval de Oliveirs é um claro exemplo de um policial "militar" premiado apesar de sua conduta violenta. O cabo Adeval de Oliveira matou em 1992 o traficante Edimilson com um tiro na cabeça e outro no coração. Uma testemunha, em seu depoimento, declarou que virs Edimilson levantar as mãos e pedir que não o matasse; o cabo ainda assim disparou.
45. º ó -
46. 7 Americas Watch, Urban Police Violence in Brazil: Torture and Police Killings in São Paulo and Rio de Janeiro after five Years, Vol.5, Issue N.º 5, p.4 (1993). Outras fontes apresentam cifras ligeiramente diferentes: 411 em 1988, 519 em 1989; UAW 600 em 1990; 1.264 em 1992 (sem contar os 111 presos mortos na Casa de Detenção de Carandiru). Hélio Bicudo, Um Brasil Cruel e Sem Maquilagem, São Paulo, Edit.Moderna, p.15 (1994).
47. 8 Soldados da Guerra e da Loucura, Veja, 19 de abril de 1995, p. 80.
48.
9 Fonte: dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.
49. 10 Sérgio Verani, Assassinatos em nome da lei (Rio de janeiro, Adelará) 1966 e Jornal do Brasil, 16 de abril de 1996.
50. 11 Pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas e o Instituto de Pesquisas de Religião, Rio de Janeiro, 1996
51. "" - -
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54.
55. 16 (Gilberto Dimenstein, Democracia em Pedaços, São Paulo, Edit. Companhia das Letras, p. 79, 1996).
56.
17 Um exemplo alarmante ocorreu no sábado 4 de março de 1995, quando o cabo Flávio Ferreira Carneiro, da polícia "militar", executou com três tiros um suposto delinquente de 20 anos, Cristiano Moura Mesquita de Mello, que estava desarmado e recebera dois tiros nas mãos e um no ombro. O delinquente ñao resistiu á detençao. A cena foi filmada por um cinegrafista da TV Globo sem que o policial o percebesse e apesar do pedido expresso deste de que o cinegrafista não o fizesse. O incidente foi transmitido pelos noticiários Jornal de Hoje e Jornal Nacional. Uma pesquisa da Televisão Educativa do Rio de Janeiro revelou que 86% dos 106 telespectadores de um programa dessa emissora aprovavam a conduta do cabo.
57.
18 Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, CI para apuração de responsabilidades pelo extermínio de crianças e adolescentes no Estado do Rio de Janeiro (1991); A.A.Motta, Pesquisa: "Exterminadores rondam PMs," O Globo, 29 de junho de 1992, p.11. Citado em Ministério das Relações Exteriores, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, p. 41 (1994; Ver também Human Rights Watch/Americas, Final Justice...supra nota..., p.94.
58. 19 Folha de São Paulo, 14 de janeiro de 1996.
59. 20 Ministério das Relações Exteriores, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, p.41 (1994).
60. 21 Ministério das Relações Exteriores, op. Cit. 1994.
61. 22 Soldados da Guerra e da Loucura, Veja, 19 de abril de 1995, p.81; Ver também, sobre o tema dos esquadrões da morte, Human Rights Watch/Americas, Final Justice..., supra nota..., pp.82 a 125.
62. 23 Human Rights Watch/Americas, Final Justice, Police and Death Squad Homicides of Adolescents in Brazil, p.X (1994).
63. 24 Ministério das Relações Exteriores, op. Cit. 1994 p.41.
64. 25 Ver Amnesty International, "Beyond Despair, An Agenda for Human Rights in Brazil", p.5 (AMR 19/05/90). Ver também Human Rights Watch/Americas, Final Justice...,op. cit. 1994, pp. 82 e 83.
65. 26 Amnesty International, op. Cit. 1994 p.5.
66. 27 Ver Human Rights Watch/Americas, "Final Justice, Police and Death Squad Homicides of Adolescents in Brazil", p.82 (1994).
67. 28 Human Rights Watch/Americas, op. cit. 1994 p.X.
68. 29 Amnesty International, op. Cit. 1994 p.5.
69. 30 Amnesty International, op. Cit. 1994 p.6.
70. 31 Amnesty International, op. Cit. 1994 p.6.
71. 32 Amnesty International, "Crime without punishment. Impunity in Latin America", p.5 (novembro de 1996).
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73. 34 Ver Amnesty International, "Beyond Despair, An Agenda for Human Rights in Brazil", p.7 (1994); ver também Human Rights Watch/Americas, Final Justice... supra nota..., pp. 85 a 87.
74. 35 Ver Amnesty International, "Beyond Despair, An Agenda for Human Rights in Brazil", p.6 (AMR 19/5/90).
75. 36 Human Rights Watch/Americas, Final Justice..., supra nota, p. 83.
76. 37 Ver também, com respeito ao tema da corrupção da polícia civil, Guaracy Mingardi, "Tiras, Gansos e Trutas, Cotidiano e Reforma na Polícia Civil", Editora Página Aberta Ltda. (1991).
77. 38 (Gilberto Demenstein, Democracia em Pedaços, Edit. Companhia das Letras, São Paulo, p.78, 1996).
78. 39 (Paulo Rogério M. Menandro e Lídio de Souza, Linchamentos no Brasil: A justiça que não tarda mas falha, p. 126).
79. 40 Há no Brasil duas justiças militares paralelas. A primeira, de âmbito federal, é regida pela Lei 8457, de 4 de setembro de 1992, e tem competência para processar e julgar originariamente, entre outros, os oficiais das Forças Armadas. A segunda é a justiça militar estadual que, de acordo com a Constituição Federal, pode ser criada pela lei estadual no respectivo Estado federado ou no Distrito Federal, por proposta do Tribunal de Justiça. Esta última é constituída, em primeira instância, pelos Conselhos de Justiça e, em segunda instância, pelo próprio Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal de Justiça Militar nos estados em que os efetivos da polícia tenham mais de vinte mil membros (artigo 125, parágrafo 3, da CF).
80.
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82. 43 Reinhart Maurach, Deutsches Strafrecht, ein Lehrbuch, Algemeiner Teil, Karlsruhe, 1971, seção 8,IVc, p. 93-4; "O direito penal especial de maior importância prática é o direito penal militar" (Das praktisch wichtigste Sonderstrafrecht ist das Wehrstrafrecht); Manzini, Diritto penale militares, cit., p.2; Giuseppe Ciardi, Instuzioni di diritto penale militare, Roma, s.d., V.1, p.12; Rodolfo Venditti, Il diritto penale militare nel sistema penale italiano, Milano, 1978, p. 23 a 25; e Heleno Cláudio Fragoso, Lições de direito penal; parte geral, Rio de Janeiro, 1980, p.5. Op. cit. Curso de Direito Penal, parte geral, Jorge Alberto Romeiro.
83. 44 Acredita-se que a política de segurança pública tenha raízes na Emenda Constitucional N.º 7, de 1977, chamada "Pacote de abril". De acordo com esse pacote, a estrutura do aparato repressivo do Estado baseava-se na doutrina da Segurança Nacional, que introduziu o conceito de "inimigo interno". "Inimigo interno" era todo aquele que fosse contrário ao regime. Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Por uma nova política de segurança e cidadania, Comissão Permanente de Justiça, Segurança e Questão Carcerária, Série Documento-1, p.9 (1994).
84. 45 Tanto no Estado de São Paulo como nos demais Estados em que se criou uma Justiça Militar, interpuseram-se múltiplas exceções de incompetência nos processos judiciais instaurados por esse tipo de delito. Ver Hélio Bicudo, Um Brasil Cruel e Sem Maquilagem, São Paulo, Ed. Moderna, p. 67 (1994). No caso n.º 2.800, sobre conflito de jurisdição, por exemplo, o Tribunal Supremo Militar estabelecer o seguinte:
1. A Lei poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça:
d) A justiça militar estadual, constituída em primeira instância pelos Conselhos de Justiça e, em segunda, pelo próprio Tribunal de Justiça, com competência para processar e julgar pelos crimes militares definidos na lei os membros das polícias militares (o grifo é da Comissão).
85. 46 A Emenda N 7 foi assinada pelo então Presidente do Brasil, General Ernesto Geisel.
86. 47 Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, Comissão de Direitos Humanos, Execuções Sumárias de Menores em São Paulo, p. 19 (1993). Ver também Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Por uma Nova Política de Segurança e Cidadania, Comissão Permanente de Justiça, Segurança e Questão Carcerária, Série Documentos-1, Benedito Domingos Mariano, Pe. Francisco Reardon O.M.I. e Carlos Weiss, p.13, supra, p.4.
87. 48 Carta do Centro Santos Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo à Secretaria da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (29 de junho de 1994).
88. 49 A Constituição de 1988 não recolheu as preocupações de certos setores que propiciavam a desmilitarização da polícia e a criação de uma força policial única integrada para tratar os cidadãos (infratores ou não) e não soldados ou inimigos em tempo de guerra. Democracia x Violência, Reflexões para a Constituinte, Severo Gomes... et.al., organizadores Paulo Sérgio Pinheiro e Eric Braun, Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 154 (1986). Ver também Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Por uma Nova Política de Segurança e Cidadania, Comissão Permanente de Justiça, Segurança e Questão Carcerária, Série Documento-1, p.13 (1994).
89. 50 J.D.Loureiro Neto, Lições do Processo Penal Militar, São Paulo, Saraiva, p.102 (1992).
90. 51 Consta que, no final de 1992, havia 14.000 casos pendentes em quatro tribunais de São Paulo que dispunham de um fiscal unicamente. Human Rights Watch/Americas, Final Justice, Police and Death Squad Homicides Adolescents in Brazil, p. 41 (1994).
91. 52 Embaixada do Brasil, Society, Citizenship and Human Rights in Contemporary Brazil, p.19 (1995).
92. 53 Em março de 1982, a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, afirmava que a principal causa do aumento de mortes causados pelos policiais militares era a impunidade gerada pelo sistema especial de justiça utilizado para seu julgamento. (Folha de São Paulo de 7 de março de 1982). Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Por uma nova política de Segurança e Cidadania, Comissão Permanente de Justiça, Segurança e Questão Carcerária, Série Documento-1, p. 14 (1994).
93. 54 Ver Country Reports on Human Rights Practices for 1990, Report Submitted to the Committee on Foreign Afairs, House of Representatives, and the Committee on Foreign Relations, U.S. Senate by the Department of State, p.332 (1994).
94. 55 Ver Human Rights Watch/Americas, Final Justice, Police and Death Squad Homicides of Adolescents in Brazil, p. 41 e 42 (1994).
95. 56 Entende-se por instrução criminal a etapa processual destinada a recolher os elementos probatórios, a fim de que o Conselho de Justiça possa formar sua própria opinião a respeito dos fatos. Tem início com o interrogatório do acusado (artigo 404 do Código de Processo Penal Militar -CPPM) e prossegue até as alegações finais (artigo 428 do Código de Processo Penal Militar - CPM).
96. 57 Carta do Centro Santos Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, dirigida à Secretaria Executiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (29 de junho de 1994) (remetendo casos tratados pelo Centro).
97. 58 Michaels, Rio's Dead End Kids, Time, 9 de agosto de 1993, p. 37.
98. 59 Gazeta de São Paulo, 7 de novembro de 1993.
99. 60 Human Rights Watch/Americas, Final Justice, Police and Death Squad Homicides of Adolescents in Brazil, p.41 (1994). Isso parece confirmar-se num estudo realizado pelo Centro Santos Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, no qual se indica que, dos processos submetidos à Justiça Militar em São Paulo, para julgamento de crimes cometidos por policiais militares, foram absolvidos 95% dos processados. Hélio Bicudo, Um Brasil Cruel e Sem Maquilagem, São Paulo, Edit. Moderna, p.16 (1994).
100. 61 Human Rights Watch/Americas, Final Justice, p.51 (1994).
101. 62 Os Deputados Hélio Bicudo e Cunha Bueno apresentaram originalmente o projeto de Lei N.º 3.321, de 1992, anexando o projeto de Lei N.º 2.801, de 1992, que alterava as disposições dos Decretos Leis Nºs 1.001 e 1.002, de 21 de outubro de 1969, Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar, respectivamente, nos termos do artigo 235, parágrafo II, alínea d, do Regulamento Interno. Esse projeto não foi aprovado. Posteriormente, o Deputado Hélio Bicudo voltou a apresentar o projeto à Câmara dos Deputados, onde tampouco foi aprovado. Em vez deste, foi aprovado um projeto substitutivo que se transformou na Lei N.º 9.299, de 7 de agosto de 1996, alterando as disposições dos Decretos Leis Nºs 1.001 e 1.002, de 21 de outubro de 1969, Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar, respectivamente nos termos do artigo 235, parágrafo II, alínea d, do Regimento Interno. Em 16 de julho de 1996, o Deputado Bicudo voltou a apresentar o projeto (projeto de Lei N.º 2.190, de 1996, que altera as disposições dos Decretos Leis Nºs 1.001 e 1.002, de 21 de outubro de 1969, Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar, respectivamente), que se acha atualmente submetido à consideração da Câmara dos Deputados.
102. 63 Constituído pelas seguintes entidades: Procuradoria Geral dos Direitos do Cidadão, Ordem dos Advogados do Brasil, Conferência Nacional de Bispos do Brasil, Comissão Pastoral da Terra, Amnesty International, CONTAG, INESC, Movimento dos Sem Terra, CMI e MNDH.
CAPÍTULO IV
AS CONDIÇÕES DE RECLUSÃO E TRATAMENTO NO SISTEMA PENITENCIARIO BRASILEIRO
A. A REALIDADE CARCERARIA
Antecedentes
1. Ultimamente, a Comissão vem recebendo informações de que as condições de detenção e prisão no sistema carcerário brasileiro violam os direitos humanos, provocando uma situação de constantes rebeliões, onde em muitos casos os agentes do governo reagem com descaso, excessiva violência e descontrole.
2. A Constituição Federal e as leis brasileiras contem prescrições avançadas com relação aos direitos e ao tratamento que deve ser dispensado aos presos, e também no tocante ao cumprimento da pena.(1) O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão subordinado ao Ministério da Justiça no âmbito federal, dita as políticas e diretrizes quanto a prevenção de delitos, a administração da justiça criminal, a execução das penas, as medidas de segurança e a elaboração do programa nacional penitenciário(2) A administração dos centros penais esta a cargo do Poder Executivo de cada estado da Federação, por meio das Secretarias de Justiça ou de Segurança Publica, e a supervisão externa do sistema penitenciário cabe aos Poderes Judiciais estaduais.(3)
3. Em 1994, um censo oficial indicou que dos 297 estabelecimentos penais existentes no Brasil, 175 se encontravam em situação precária e 32 em construção. A população carcerária gira em torno dos 130 mil presos, dos quais 96,31% são homens e 3,69% são mulheres. Quanto aos motivos da detenção, 51% dos presos cometeram furto ou roubo, 17% homicídio, 10% tráfico de drogas e o restante outros delitos.(4) É importante observar que 95% dos presos são indigentes e 97% são analfabetos ou semi-analfabetos. A reincidência na população penal é de 85%, o que demonstra que as penitenciárias não estão desempenhando a função de reabilitação dos detentos.
4. Como resultado de sua visita in loco, e também de outros antecedentes, a Comissão considera que os grandes problemas de que padece o sistema penitenciário brasileiro são os indicados a seguida.
Superpopulação Carcerária
5. A capacidade das penitenciárias brasileiras está estimada oficialmente em 51.639 vagas. Isso significa que, com um universo de 130 mil internos, existe atualmente um déficit de cerca de 75 mil vagas e que cada vaga atual esta sendo ocupada por 2,5 presos em média.(5) De acordo com esses números oficiais, é necessária a criação de pelo menos 150 novos presídios para mitigar a situação do déficit de vagas. Outras fontes apresentam uma situação numérica muito mais grave, indicando que as prisões estão abrigando entre 5 a 6 vezes mais detentos do que permite sua capacidade real.(6) e 7
6. Essa falta de espaço, o amontoamento e a superpopulação foram constatados pela Comissão sobretudo na visita a Casa de Detenção de Carandirú(7) e ao 3º Distrito Policial da cidade de São Paulo. Um funcionário policial deste último centro afirmou que a delegacia era um verdadeiro "depósito de presos". É tamanha a superpopulação e a promiscuidade ali existentes que a Comissão pode comprovar que em um espaço de três metros por quatro (12 m2), destinado a alojar seis presos, se alimentavam e dormiam, sem leitos, nem qualquer comodidade por mínima que fosse, muitas vezes sentados ou de pé por falta de espaço, quase 20 presos.(8) 0 pátio central, a que esta Comissão teve acesso, oferecia um quadro impressionante, com presos de pé, sujos e seminus ocupando praticamente cada centímetro de sua superfície. Era tal a falta de espaço que, para que os membros da Comissão pudessem se movimentar e conversar com os detentos, eles tinham de se comprimir para abrir caminho. Segundo se informou a Comissão, esse pátio serve de moradia para muitos deles, que dormem amontoados, as vezes sentados, de pé ou até pendurados nas grades, expostos a chuva e as intempéries. Alguns presos mostraram ferimentos nas pernas, causados pela posição em que eram obrigados a dormir no chão.
7. Chamou especialmente a atenção da Comissão o fato, confirmado pelo censo penitenciário, de que, como conseqüência da falta de estabelecimentos penais e de espaço dentro destes, 48% dos presos judicialmente condenados cumprem pena nas cadeias dos distritos policiais, que são prisões de caráter provisório ou de transito, o que implica que muitas vezes detentos simples, suspeitos e/ou presos primários são colocados juntos com outros condenados por graves delitos, o que constitui, como se verá mais adiante, uma aberta violação das normas internacionais, e acarreta graves prejuízos para certas categorias de presos.
8. 0 atual Governo é consciente do problema, da superpopulação carcerária e isso está refletido no Programa Nacional de Direitos Humanos. Seus objetivos a curto prazo são: 1) criar novos estabelecimentos e aumentar o numero de vagas, utilizando para tanto recursos do Fundo Penitenciário Nacional; 2) apresentar projeto de lei com a introdução de sentenças alternativas as penas privativas de liberdade para os crimes não-violentos; e, a médio prazo, 3) incentivar a agilização dos procedimentos judiciais para reduzir o numero de detentos a espera de julgamento.
9. No caso especifico de Carandirú o Governo informou a CIDH do convênio entre o governo federal e o governo do Estado de São Paulo para a desativação do Complexo Penitenciário de Carandirú. Serão construídos, em curto prazo, nove presídios - seis de segurança média e uma casa de detenção para presos sem condenação definitiva (cada um com capacidade para abrigar 600 presos). A segunda fase do plano prevê a construção de mais 25 presídios, também dotados de 600 vagas cada um.
10. Segundo o Governo, a construção de novos presídios resolverá o problema de vagas e permitirá a criação de um ambiente propício para a re-socialização dos internos. Em São Paulo, onde o problema é mais grave, o governo do estado já vem adotando outras medidas para evitar que a superlotação e a existência de rebeliões leve a repetição de incidentes como o do Carandirú, onde 111 presos morreram durante ação policial. Nas rebeliões ocorridas recentemente, a disposição do Governo para atuar com rigor, embora com respeito aos direitos humanos, evitou mortes em situações tão ou mais complexas do que aquela enfrentada no Carandirú. Esse resultado foi obtido graças a medidas de controle do uso da força: a autoridade responsável pela ordem de invasão dos presídios e repressão da rebelião está sempre a frente da tropa e apenas os oficiais mais graduados portam armas de fogo. As rendições são freqüentes porque há garantia de que não ocorrerão represálias e torturas. Há também maior treinamento das tropas de choque.
11. Com vistas a diminuir a pressão sobre o sistema penitenciário brasileiro e contribuir para uma rápida recuperação dos internos, o Executivo Federal enviou projeto de lei ao Congresso nacional estendendo a aplicação de penas alternativas a privação de liberdade. O objetivo é atingir sobretudo aquelas pessoas que tenham cometido crimes contra o patrimônio publico, fazendo com que elas reconstituam o que foi destruído ou devolvam aos cofres públicos o que retiraram indevidamente Atualmente as penas alternativas são aplicadas apenas aos condenados a penas de até um ano de prisão, mas caso o projeto seja aprovado, o benefício alcançará os condenados a até cinco anos.
12. A comissão teve a oportunidade, em Julho de 1997 de visitar os estabelecimentos do sistema penitenciário brasileiro, onde pode observar um esforço sério e científico de se concretizar novos modelos para o tratamento e reabilitação dos reclusos.
Um deles é o centro Penitenciário de Papuda, no Distrito Federal, onde alem de um aceitável cumprimento dos standards internacionais de tratamento existem ainda programas de reinserção através do trabalho produtivo, dentro e fora do estabelecimento penal, o qual atinge uma parcela substancial da população carcerária. Também pude apreciar outras iniciativas( atelier de pintura, teatro, aprendizagem, biblioteca) que tendem a cumprir o objetivo de reabilitação, o qual deveria ser a norma para todos os estabelecimentos.
Em outros estabelecimentos visitados , merece também ser mencionado o Hospital Penal em Niterói, Estado do Rio de Janeiro, vinculado com a Secretaria de Justiça e Interior deste estado. Estabelecimento este onde se realiza de maneira sistemática atendimento médico, curativo e preventivo, aos reclusos em sua jurisdição, utilizamdo-se de recursos modernos e desenvolvendo iniciativas experimentais de grande potêncial.
Higiene e Saúde
13. A Comissão teve a oportunidade de constatar as condições higiênicas precárias e deficientes em que vivem os presos e a falta de atendimento médico e tratamento psicológico adequados a que estão submetidos. Segundo declarações dos próprios presos, em caso de brigas entre eles ou doenças, eles próprios tem que tratar dos feridos ou enfermos.(10)1 A Comissão, ao visitar a Penitenciária Feminina de São Paulo, recebeu queixas das reclusas quanto à falta de atendimento médico, sobretudo ginecológico e dental, e à inexistência de veículos para o transporte das internas ao médico ou hospital. Nesses recintos, as instalações sanitárias coletivas eram totalmente inadequados e anti-higiênicas.
14. A Comissão teve igualmente a oportunidade de visitar um pavilhão de doentes de AIDS, que jaziam em seus catres, praticamente abandonados e com falta de higiene. Esta grave enfermidade afeta sobretudo os presos dos grandes centros urbanos, e aproximadamente 25% dos presos das cadeias dos distritos policiais e das prisões publicas são portadores do vírus HIV. Quando a doença chega a seu estado terminal, é difícil encontrar quem queira socorrer as vitimas ou levá-las aos hospitais.(11)2
15. Nas visitas da Comissão a Casa de Detenção de Carandirú e ao 3º Distrito Policial, muitos presos se queixaram de que doenças gástricas, urológicas, dermatites, pneumonias e ulcerações não eram atendidas adequadamente, afirmando que muitas vezes nem sequer havia remédios básicos para tratá-las.
16. A Comissão recebeu igualmente queixas de que, quando os presos doentes precisam ser transladados a postos de saúde ou hospitais para receber um tratamento médico determinado ou de urgência, a Policia Militar (órgão encarregado de escoltar ou transportar os reclusos aos hospitais) a vezes se nega a faze-lo ou adia sem qualquer justificação a escolta, o que muitas vezes resulta na piora do estado de saúde do doente.(12)3
Alimentação, roupa e cama
17. Nos diferentes centros penitenciários que a Comissão visitou, numerosos presos se queixaram da insuficiência da comida que Ihes era servida, de que passavam frio, de que quando chovia se molhavam e não tinham muda de roupa, sendo obrigados a ficar com a roupa molhada e úmida por muitos dias.
18. Da mesma forma, foi-nos informado que os presos que possuem recursos podem conseguir mais comida e agasalho. Chamou ainda a atenção da Comissão, de acordo com os estudos realizados sobre a questão e com os depoimentos por ela recebidos, a freqüência com que nos centros penitenciários ocorre o "desvio de comida". Nesses casos, a comida é comercializada pelos guardas ou por outros que podem ser subornados, fora do estabelecimento, o que acarreta um aumento no clima de violência no interior dos presídios(14)5, com as conseqüências trágicas que são apresentadas neste capítulo.
Assistência judicial e requerimento dos benefícios dos presos
19. Quase sem exceção, os membros visitantes da Comissão receberam queixas dos presos com relação à lentidão da tramitação burocrática quando requerem os benefícios a que tem direito por lei e à complexidade dos processos judiciais para consegui-los, o que é agravado ainda pela falta de assistência legal adequada.(16)7 Esses benefícios legais são, entre outros, a transferência para regimes abertos e semi-abertos, a redução ou compensação da pena (um dia de desconto da pena para cada três de trabalho) e, ainda mais grave, a decisão de libertar os reclusos depois de terem cumprido suas respectivas penas.
20. Segundo deram a entender os presos com quem a Comissão se reuniu, cerca de 80% dos internos já cumpriram um sexto da pena e, portanto, teriam direito a cumprir o restante em um regime semi-aberto, e cerca de 50% teriam direito a passar para um regime aberto de acordo com o tempo cumprido. Todavia, os procedimentos são longos e complicados, o que os obriga a continuarem em regime de reclusão. Informou-se igualmente à Comissão que pelo menos 50% dos presos do Rio de Janeiro poderiam obter liberdade condicional, o que não conseguem por falta de advogados para fazer o competente requerimento.(17)8
Vínculos e visitas familiares
21. A Comissão recebeu queixas da parte dos reclusos de que era praticamente impossível desfrutar da intimidade com seus cônjuges ou familiares por ocasião das visitas. Observou-se igualmente que muitas vezes os agentes penitenciários cobravam dinheiro dos familiares dos presos para permitirem as visitas.
Reabilitação,(19)0 falta de oportunidade de trabalho (20)1 e recreação (21)2 nointerior das prisões
22. Uma das funções que a pena deve cumprir é a reabilitação do indivíduo, para que este possa reintegrar-se o mais harmoniosamente possível na sociedade. O trabalho produtivo na penitenciaria é considerado como uma mecanismo indispensável para se alcançar esse objetivo.(22)3
23. Sem embargo, muitos dos presos entrevistados pela Comissão se queixaram de que não há trabalho nas prisões, o que os obriga a passar o dia todo dormindo ou andando de um lado para o outro.4 0 censo penitenciário revelou que 89% dos presos não desenvolvem qualquer trabalho, pedagógico ou produtivo, sendo esse um dos fatores mais decisivos para as tensões e revoltas nas penitenciárias. Deve-se ressaltar que a maioria dos detentos tinhám emprego produtivo antes de ir para a prisão.5
24. 0 fato de a população carcerária do Brasil ser significativamente jovem (68% dos reclusos tem menos de 25 anos) torna ainda mais imperativo o desenvolvimento de políticas efetivas de reabilitação dos reclusos e de possibilidades de trabalho. Trata-se, de fato, de uma população que pode ter uma longa vida produtiva pela frente e que, de outra maneira, se verá condenada a uma marginalidade permanente.
25. A Comissão recebeu ainda queixas constantes dos reclusos entrevistados com relação à ausência quase total de atividades recreativas, situação que também ajuda a aumentar o clima de violência existente (ver Rebeliões e Massacres nos Centros Penais).
Separação dos reclusos por categorias
26. A Comissão pode verificar também, por declarações dos presos, as quais foram confirmadas pelas autoridades penitenciárias, que em muitos centros penais não se dividem os internos de acordo com a natureza do delito nem pela idade. Pelo contrario, em estabelecimentos destinados a detenções temporárias convivem presos condenados por diferentes delitos (primários e reincidentes), menores, adultos, detentos em prisão preventiva, presos em flagrante e outros que aguardam os resultados de investigação.7
27. Uma das principais razões da necessidade de se separar os reclusos por categorias é de evitar, entre outras coisas, que aqueles que tem um passado de crime exerçam influência nociva sobre delinqüentes primários ou submetidos a processos de investigação, além de facilitar a readaptação social e garantir a segurança física dos detentos. A Comissão foi informada, tanto por agentes penitenciários como por reclusos, que as prisões estavam se transformando em verdadeiras escolas do crime nas quais delinqüentes com experiência ensinam os mais jovens a perpetrar diferentes ilícitos penais, estabelecendo vínculos e dependências orientadas para o delito em um mundo de ilegalidade do qual é difícil sair e para o qual o sistema carcerário de fato estimula .
Sanções disciplinares
28. A Comissão pode comprovar também que ainda existem as chámadas "celas fortes", ou solitárias, nas quais, segundo se informou, depois de um procedimento sumário se encerram os presos que cometeram faltas disciplinares. A reclusão e de até trinta dias e de acordo com as declarações dos presos, são ainda sujeitos a punições adicionais.
Agentes penitenciários
29. No desempenho de sua tarefas, os agentes penitenciários devem respeitar e proteger a dignidade humana, bem como manter e defender os direitos humanos de todas as pessoas.8 A Comissão recebeu depoimentos de que os agentes penitenciários muitas vezes tratam os presos de maneira desumana, cruel e prepotente, o que se traduz em torturas e corrupção.9 Isso se deve basicamente à falta de treinamento especializado desses funcionários no que diz respeito aos direitos humanos e ao tratamento de presos, além da escassez e má remuneração dos funcionários. Outro fator que contribui é a falta de supervisão e controle adequado, o que acaba gerando impunidade.0
30. 0 sistema penitenciário brasileiro padece da falta de agentes carcerários. Segundo o censo penitenciário, existem 11 presos para cada funcionário, longe da relação recomendada pelas Nações Unidas, que é de três presos por funcionário.
31. A Comissão vê com bom grado os planos do Governo para melhorar o treinamento dos agentes penitenciários,1 como parte do projeto mais amplo de recrutamento, treinamento e melhoria das condições de trabalho dos funcionários penitenciários. E espera que esse venha a se concretizar.
Falta de recursos
32. Os agentes penitenciários informaram à Comissão que um dos principais problemas que aflige o sistema e a falta de uma adoção orçamentaria adequada para o sistema penitenciário, fato este que impede um serviço melhor. Em 1992, por exemplo, o Departamento de Assuntos Penitenciários solicitou a inclusão da soma de US$22.743.000 no orçamento federal, mas o Congresso Nacional só aprovou o montante de US$5.091.000, dos quais só foram efetivamente gastos US$1.873.650.32
B. AS REBELIÕES E OS MASSACRES NOS CENTROS PENAIS
33. Nos centros penais brasileiros ocorrem em media duas rebeliões e três fugas por dia. 3 As causas para isso são muito variadas. Os presos apontam como tais as condições materiais, a má alimentação, a falta de assistência jurídica, médica e religiosa; a superpopulação, a ausência das condições mínimas de tratamento, a violência carcerária por parte dos agentes penitenciários e a ineficácia dos organismos responsáveis pelo controle e encaminhamento das queixas. Por sua parte, alguns agentes penitenciários consideram as rebeliões como mecanismos de tentativa de fuga em massa usados pelos presos.
34. As rebeliões no interior dos presídios tiveram em muitas ocasiões conseqüências trágicas, custando a vida de muitos presos e de guardas penais. A esse propósito, os fatos indicam que, sempre que as autoridades penitenciárias decidiram não negociar com os rebeldes e esmagar as rebeliões com violência, ocorreram mortes de guardas e detentos, ao passo que, quando houve negociação, foi bem menor o numero de vitimas fatais. Um estudo comparou com uma amostra de rebeliões o resultado das diferentes estratégias seguidas. Comprovou-se que, para 11 rebeliões ocorridas entre setembro de 1986 e abril de 1988, em nenhuma das seis em que se negociou houve mortes; já nas cinco ocasiões em que não se negociou e os rebeldes foram reprimidos com violência, ocorreram 47 mortes entre guardas e detentos.4
35. Um dos massacres ocorreu em 2 de outubro de 1992 na Casa de Detenção de Carandirú, na cidade de São Paulo. A investigação judicial demonstrou que, no Pavilhão 9 da prisão, a Policia Militar disparou contra presos nús e indefesos, que não opunham resistência. Como resultado desse ato de violência, 111 presos foram mortos, crivados pelos disparos dos policiais militares protegidos por escudos.5
36. Com relação ao grande numero de mortes ocorridas no interior das prisões devido ao uso irracional e indiscriminado da força, a Comissão deseja observar que o uso da força por parte dos agentes penitenciários só deve ser aplicado em casos excepcionais, observando-se estrita obediência aos critérios de que seja proporcional ao perigo e razoavelmente necessária, de acordo com as circunstâncias, para a prevenção de delito e que seja proporcional à ameaça e ao risco.6
A negociação deve ser o instrumento idôneo e hábitual, para o qual se deve treinar o pessoal e desenvolver técnicas e especialistas apropriados. O uso de armas de fogo é considerado uma medida extrema, devendo-se fazer todo o possível para se evitar seu uso. Como regra geral, não se devem usar armas de fogo a não ser no caso em que o suposto delinqüente ofereça resistência armada ou ponha em perigo a vida de outras pessoas e não seja possível dominá-lo ou detê-lo com aplicação de medidas menos extremas.
C. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
37. 0 propósito das penas privativas de liberdade, entre outros, é o de separar os indivíduos perigosos da sociedade para protege-la contra o crime e a readaptação social dos condenados. Para isso, o regime penitenciário deve empregar os meios curativos, educativos, morais, espirituais e de outra natureza, e todas as formas de assistência de que possa dispor, no intuito de reduzir o máximo possível as condições que enfraquecem o sentido de responsabilidade do recluso ou o respeito à dignidade de sua pessoa e a sua capacidade de readaptação social.
38. Da analise que fizemos da realidade carcerária no Brasil, conclui-se que em muitas prisões os detentos se encontram em condições sub-humanas, o que constitui violação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros instrumentos internacionais de direitos humanos. Na pratica, os presos no Brasil são, em sua maioria, maltratados e desamparados, o que minimiza a possibilidade de sua reforma e readaptação, dadas as condições físicas e humanas das prisões e do pessoal responsável pelo sistema penitenciário.
39. Diante dessa grave situação, a Comissão considera que os esforços que o Governo Brasileiro se propõe a realizar, no setor penitenciário a curto, médio e longo prazo, conforme as diretrizes traçadas no Programa Nacional de Direitos Humanos, são indispensáveis. Mas requerem toda a energia política, técnica e financeira necessárias, e devem ser encarados com absoluta urgência.
40. A Comissão, além de incentivar o Estado brasileiro a tornar realidade seu programa penitenciário, se permite recomendar-lhe que, no referente a:
Aplicação de medidas carcerárias
Sejam adotadas todas as medidas adequadas para melhorar a situação de seu sistema penitenciário e o tratamento que os presos recebem, para cumprir plenamente as disposições de sua Constituição e leis, bem como os tratados internacionais de que o Estado brasileiro é signatário. Sob esse aspecto, recomenda-se que se apliquem efetivamente como instrumento-guia as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos e as Recomendações Relacionadas das Nações Unidas.
Condições carcerárias físicas
Seja consideravelmente ampliada a capacidade de vagas do sistema penitenciário, com o objetivo de solucionar o grave problema atual de superpopulação e, simultaneamente, sejam criadas condições de abrigo físico, higiene, trabalho e recreação de acordo com as normas internacionais.
Higiene e saúde
Sejam melhoradas as condições de higiene e saúde nos estabelecimentos penitenciários e nas cadeias das delegacias policiais.
Seja oferecido aos detentos e presos, sem qualquer distinção, o atendimento médico de que necessitem de maneira oportuna e eficaz e, quando for o caso, seja realizado, sem qualquer demora, seu transporte aos centros de assistência médica.
Sejam estabelecidos os serviços de atendimento necessários para os doentes de AIDS e portadores de HIV, proibindo-se toda discriminação imprópria a sua condição.
Alimentação e roupas:
Seja fornecida aos reclusos uma alimentação suficiente e balanceada, com o valor adequado de calorias. Sejam tomadas as medidas cabíveis para se evitar o desvio de alimentos que favorece ilegalmente a alguns reclusos e/ou resulte na corrupção administrativa.
Assistência judicial:
Sejam adotadas todas as medidas necessárias para a prestação de uma assistência jurídica real, efetiva e gratuita aos que dela necessitem e não tem como paga-la durante todas as etapas do processo judicial.
Sejam concedidos e reconhecidos de maneira eficaz e oportuna aos presos os benefícios e privilégios a que tem direito nos termos da lei, em particular quanto a redução de penas, a indultos, a visitas familiares, etc.
Sejam acelerados os processos judiciais que mantém em reclusão réus não condenados e sejam libertados os que cumpriram o máximo autorizado legalmente.
Sejam efetivamente consagradas na legislação normas referentes ao cumprimento alternativo de penas.
Reabilitação e separação dos detentos por categorias
Sejam os detentos em prisão preventiva separados dos condenados, e estes últimos agrupados de acordo com o tipo e gravidade do delito e a idade dos reclusos.
Sejam oferecidas oportunidades de trabalho aos presos, além de programas de educação, reabilitação e recreação que contribuam para a sua readaptação e reinsercão na sociedade.
Sanções disciplinares
Sejam eliminadas as solitárias ou "celas fortes", pois elas estão em contravenção às normas internacionais.
Sejam estabelecidos mecanismos efetivos e oportunos de controle interno no sistema penitenciário para punir os agentes penitenciários responsáveis por abusos e atos de violência contra os presos.
Agentes penitenciários
Sejam criados programas adequados de formação e especialização para os agentes responsáveis pela segurança, administração e supervisão das prisões, bem como para o pessoal médico do sistema carcerário.
Seja aumentado o numero de guardas penitenciários em relação ao numero de presos, de acordo com a proporções estabelecidas internacionalmente.
Dotação de recursos
Sejam alocados nos orçamentos federais e estaduais os recursos financeiros e materiais necessários para que o sistema penitenciário possa desenvolver plenamente os planos e metas traçadas pelo Programa Nacional de Direitos Humanos, e possa alcançar o mínimo de condições e segurança requeridas de acordo com os instrumentos internacionais.
Controle de situações de violência
Sejam desenvolvidas políticas, estratégias e técnicas, para evitar situações de violência, entre os reclusos.
NOTAS AO CAPÍTULO IV
(25)
E as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos das Nações Unidas dispõem:
"15. Exige-se dos reclusos asseio pessoal, e para tal fim disporão de água e dos artigos de higiene indispensáveis a sua saúde e limpeza."
"22. 1) Todo estabelecimento penitenciário disporá pelo menos dos serviços de um medico qualificado, que devera possuir alguns conhecimentos psiquiátricos [...] 2) Será providenciado o translado dos doentes cujo estado requeira cuidados especiais a estabelecimentos penitenciários especializados ou a hospitais civis [...] 3) Todo recluso deve poder utilizar os serviços de um dentista qualificado."
"23.1) Nos estabelecimentos para mulheres deverão existir instalações especiais para o tratamento das reclusas grávidas [...]."
11 A Pastoral Carcerária informa a este respeito que ficar doente na prisão é perigoso porque são muito poucos os presídios que dispõem de assistência médica adequada. Além disso, os hospitais públicos são renitentes em atender aos presos doentes porque achám que eles ocupam as vagas do cidadão honesto e trabalhádor. Normalmente, nas enfermarias das prisões não há remédios nem para uma simples dor de cabeça. Op. cit. at 21.
12 Idem at pag. 21.
13 Presos com problemas oftalmológicos simples teriam ficado cegos por não terem sido levados ao hospital público. As vezes, uma pequena infeção do dedo de um pé termina na amputação da metade da perna porque a escolta policial militar (PM) não atende ao chámado ou chega tarde e se perde o horário marcado no hospital. "0 pior é que ninguém tem poder sobre a PM, que faz o que quer". Idem, pag. 87.
14 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos das Nações Unidas dispõem a respeito: "20. 1) Todo recluso receberá da administração, nas horas costumeiras, uma alimentação de boa qualidade, bem preparada e servida, de valor nutritivo suficiente para a manutenção de sua saúde e de suas forças. 2) Todo recluso devera ter a possibilidade de se abastecer de água potável quando dela precisar." "17.1) Todo recluso a quem não é permitido vestir suas próprias roupas recebera outras apropriadas ao clima e suficientes para mante-lo em boa saúde [...]."
15 Ver ops. cit. at 4, 6, 9.
16 A Convenção Americana em seu articulo 8 (2) (e) dispõe:
"Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se estabelecer legalmente sua culpabilidade. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, as seguintes garantias mínimas:"
"E direito irrenunciável de ser assistido por um defensor oferecido pelo Estado, remunerado ou não segundo a legislação interna, se o acusado não se defender por si próprio nem nomear defensor dentro do Prazo estabelecido por lei".
Da mesma forma, o artigo 25 da Convenção dispõe que toda pessoa tem o direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo perante os juizes ou tribunais competentes, que a ampare contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, por lei ou pela presente Convenção.
17 A maioria dos presos necessita de assistência judicial para recuperar a liberdade e obter os benefícios legais a que tem direito. Dada a indigência da grande maioria dos presos, a assistência legal deve ser gratuita e integral, conforme garante a Constituição. Em vez disso, segundo foi informado a Comissão e aparece corroborado por outras fontes, o Estado designa uns poucos advogados para atender as necessidades judiciais de todos os presídios e cadeias. Op. cit. at 9, pag. 20-21.
18 0 que se expôs e confirmado pela conclusão do Relatório Final sobre o Sistema Penitenciário Brasileiro, preparado pela Câmara dos Deputados do Brasil, no qual se observa que mais de 50% dos presos estão cumprindo pena irregularmente. Op. cit. at 6, pag. 92.
19 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos dispõem a respeito:
"79. Zelar-se-ia particularmente pela manutenção e pela melhoria das relações entre o recluso e sua família, quando estas forem convenientes para ambas as partes."
20 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos dispõem a respeito:
"65. 0 tratamento dos condenados [...] deve ter por objetivo [...], inculcar-lhes a vontade de viver conforme a lei, sustentar-se com o fruto de seu trabalho e criar neles a aptidão para faze-lo. Esse tratamento visará fomentar neles o respeito por si próprios e desenvolver o sentido de responsabilidade."
"77. 1) Tomar-se-ao providências no sentido de melhorar a instrução de todos os reclusos capazes de tirar proveito dela, incluindo a instrução religiosa nos países em que isto for possível; a instrução dos analfabetos e a dos reclusos jovens será obrigatória e a administração deverá dispensar-lhes atenção especial."
21 A Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos das Nações Unidas dispõem a respeito:
"71. 1) O trabalho penitenciário não devera ter caráter aflitivo. 3) Proporcionar-se-a aos reclusos um trabalho produtivo, suficiente para ocupa-los pela duração normal de uma jornada de trabalho. 4) Na medida do possível, este trabalho devera contribuir por sua natureza para manter ou aumentar a capacidade do recluso de ganhár honradamente sua vida depois de sua libertação. 5) Dar-se-a formação profissional em algum oficio útil aos reclusos que tenhám condições de tirar proveito dela, sobretudo aos jovens [...]".
22 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos dispõem a respeito:
"78. Para o bem-estar físico e mental dos reclusos organizar-se-ao atividades recreativas e culturais em todos os estabelecimentos."
23 0 artigo 5 (6) da Convenção Americana dispõe a respeito que "as penas privativas da liberdade terão como finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados".
24 De acordo com um estudo, 85% dos presos consomem maconhá. (Câmara dos Deputados, op. cit.)
25 0 Dr. Vinícius Caldeira Brant, em um estudo realizado sobre o perfil dos presos, entrevistou uma amostra representativa da população carcerária de São Paulo e concluiu que a maioria dos detentos se encontrava trabalhándo na época de sua prisão e que apenas 1 % da população entrevistada nunca tinhá trabalhádo. Camara dos Diputados, op. cit., p.26.
26 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos dispõem a respeito:
"8. Os reclusos pertencentes a categorias diversas deverão ser alojados em diferentes alojamentos ou em diferentes sessões dentro dos estabelecimentos, segundo o sexo e a idade, os antecedentes, os motivos da detenção e o tratamento que Ihe deverão ser aplicados. Ou seja: a) Os homens e as mulheres deverão ser recolhidos, na medida do possível, em estabelecimentos diferentes; no estabelecimento em que se receber homens e mulheres, o conjunto destinado as mulheres devera ser completamente separado; b) Os detidos em prisão preventiva deverão ser separados dos que estão cumprindo condenação; c) As pessoas presas por dividas e os demais condenados a alguma forma de prisão por razoes cíveis deverão ser separadas dos detidos por infração penal; d) Os detidos jovens deverão ser separados dos adultos."
27 0 artigo 5 (4) da Convenção Americana dispõe que "os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstancias excepcionais, e serão submetidos a um tratamento adequado a sua condição de pessoas não condenadas".
28 Código de Conduta para Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a Lei, artigo 2.
29 Segundo relatório da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, os presos recebem pancadas, surras, insultos, choques elétricos, "corredor polonês", etc. Este tratamento faz parte da rotina de muitos presídios e delegacias. Os carcereiros, guardas, delegados e diretores da prisão muitas vezes abusam respaldados na impunidade. A corrupção também esta presente e eles por vezes cobram pedágio às famílias, "passando a mão no que a família traz para o preso". Op. cit., at. 9, pag. 21
30 A Convenção Americana em seu artigo 5 (1) (2) dispõe que: "1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral", "2. Ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cureis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade será tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano".
31 Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, Op. cit., at 9 pag 15.
32 Idem, pag. 8.
33 Op. cit. at 5, pag. 13.
34 Pastoral Carcerária da Arquidiocese de São Paulo, "Elementos para uma reflexão em busca de pistas na questão de rebeliões e reféns 1986-1988", maio 1988, pag. 5.
35 0 caso do massacre de Carandirú (n 11.219) encontra-se atualmente em tramitação junto à Comissão e, portanto, qualquer referencia que se faça a ele e descritiva e não implica prejulgar a essência da questão, que esta sendo objeto de estudo por parte da Comissão.
Para mais informações sobre esse caso, ver AMERICAS WATCH, "Brasil: Prison Massacre in São Paulo", 21 de outubro de 1992; AMNESTY INTERNATIONAL, "Brazil, Death Has Arrived, Prison Massacre at Casa de Detenção. São Paulo", agosto de 1993.
36 0 artigo 3 do Código de Conduta para Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a Lei dispõe: "Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei somente poderão usar a força quando for estritamente necessário e na medida que o requeira o desempenho de suas tarefas."
CAPÍTULO V
VIOLÊNCIA CONTRA OS MENORES
1. O estudo do tema dos menores foi iniciado no Capítulo III, no contexto mais geral da violência policial e dos esquadrões da morte, cujas vítimas principais são justamente as crianças e os adolescentes. Antes, na análise dos direitos sócio-econômicos (Capitulo II), foram apresentados dados que mostram as condições de pobreza e marginalidade em que uma substancial percentagem de crianças brasileiras nasce e se desenvolve na infância. No presente capítulo, serão analisados os compromissos legais do Brasil nesse campo, o tema das execuções extrajudiciais, o maltrato policial a menores, sua situação nos estabelecimentos de bem-estar e proteção, e sua exploração sexual e no trabalho.
A. AS OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS DO BRASIL PARA COM A INFÂNCIA
2. As crianças brasileiras estão legalmente protegidas tanto pela legislação interna quanto pelos tratados internacionais aos quais o Brasil se comprometeu.(26)es eêundação para o Bem Estar do Menor (FEBEM), que não está preparada para atender aos menores infratores, tanto na Capital, como no interior e o fato de que nos estabelecimentos da FEBEM não há separação dos infratores primários dos reincidentes, criando um clima em que os primários são contagiados pelo mal exemplo dos reincidentes.
3. A Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil, e que a Comissão considera como marco referencial, estabelece que os Estados partes terão, entre outras coisas, a obrigação de respeitar toda criança e garantir-lhe, dentro de sua jurisdição, os direitos estabelecidos na Convenção sem distinção de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas, nacionalidade, origem étnica ou social, propriedade, incapacidade, nascimento ou outro status da criança, de seus pais ou responsáveis legais (artigo 2).
4. A Convenção das Nações Unidas estabelece ainda a obrigação que têm os Estados partes de assegurar a criação de instituições e serviços destinados a seu cuidado (artigo 18) e de adotar as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas para proteger as crianças de toda forma de violência física ou mental, lesão corporal, ou abuso, tratamento negligente, maltrato ou exploração, incluindo abuso sexual, enquanto permanecerem sob o cuidado dos pais, responsáveis legais ou de outras pessoas que as tenham sob seus cuidados (artigo 19).
B. OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA LEGISLAÇÃO INTERNA
5. A ampla campanha de mobilização da opinião pública que levou à reforma constitucional de 1988, sensibilizada pelos sérios problemas por que passava a infância brasileira, refletiu-se no artigo 227 da Constituição, que estabelece:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão e que o Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente.
6. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90), uma das leis mais avançadas em matéria de proteção dos menores, substituiu o Código de Menores anterior, de índole correcional, e à igualmente repressiva Política Nacional de Bem-estar do Menor. Dessa forma, o novo Estatuto, em vez de ser um instrumento de controle represivo, considera a criança e o adolescente como seres humanos em formação, "sujeitos de direitos", introduzindo inovações na política de promoção e defesa de seus direitos em todas as dimensões: física (saúde e alimentação), intelectual (direito à educação, direito à formação profissional e à proteção no trabalho), emocional, moral, espiritual e social (direito à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e à convivência comunitária). O Estatuto diferencia entre "criança", toda pessoa com menos de 12 anos de idade, e "adolescente", toda pessoa entre 12 e 18 anos de idade.
7. O Estatuto proclama também o direito das crianças e dos adolescentes a terem sua vida e saúde protegidas mediante a execução de políticas sociais públicas (artigo 7) e garante à mãe grávida, por meio do Sistema Único de Saúde, todo o atendimento necessário pré- e pós-natal (artigo 8).
8. A Comissão constata com satisfação a criação pelo Estatuto, de uma instituição potencialmente valiosa. Trata-se do Conselho Tutelar, órgão permanente e autônomo, não-jurisdicional, que deve existir em todo município para zelar pelos direitos da criança e do adolescente. Compõe-se de cinco membros eleitos pelos cidadãos locais para um mandato de três anos reelegíveis. São atribuições do Conselho Tutelar, entre outras, aplicar medidas de proteção ou de índole social e educativa, e atender e aconselhar aos pais ou responsáveis. Esta atribuição inclui a faculdade de determinar aos pais ou responsáveis que se submetam a tratamento psicológico ou psiquiátrico; obrigá-los a matricular os menores na escola; ordenar que lhes providenciem tratamento especializado; fazer advertências; determinar a perda da guarda ou tutela e a suspensão ou perda do pátrio poder. Entre as atribuições desses conselhos se encontram também: promover a execução de suas decisões; passar ao Ministério Público informações sobre fatos que constituam infração administrativa ou penal contra os direitos da criança e do adolescente; e encaminhar à autoridade judicial os casos de sua competência.
9. Cabe observar, todavia, que até setembro de 1994, ou seja, decorridos mais de 4 anos depois da publicação do Estatuto no Diário Oficial, apenas cerca de 27% dos municípios tinham criado seus Conselhos Tutelares.
10. Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente representar inegável progresso no campo da proteção à infância, sua aplicação prática tem encontrado resistência em alguns setores da população. Essa resistência diz respeito, sobretudo, à reorganização das práticas de atendimento direto às crianças e aos adolescentes que vivem da prática de delitos e em situação de risco social. Conquanto esses menores necessitem de atenção e cuidados especiais, esses setores consideram que sua situação deve ser tratada como problema de segurança pública e defende, portanto, sua reclusão longe da sociedade e repressão por meio de enérgica ação policial.
11. O Ministério da Justiça, que exerce a presidência do Concelho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente(CONANDA), reconhece que a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente é ainda incipiente, e convocóu a II Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente(Brasília, 17 a 20 de Agosto de 1997), com objetivo de avaliar e fazer recomendações sobre a implementação e o funcionamento dos conselhos de direitos e conselhos tutelares.
12. Informa o Governo que, com a implementação do UNICEF, O Ministério da Justiça formulou e está executando o "Plano de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente", buscando operacionalizar as recomendações do Programa Nacional de Direitos Humanos. Todos os estados da Federação elaboraram, em 1996, planos similares na sua esfera de competência, convalidados pelos respectivos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente. Os estados estão recebendo apoio técnico e financeiro do Ministério da Justiça para a implementação dos referidos planos.
C. O DIREITO À VIDA À INTEGRIDADE DOS MENORES
Execuções extrajudiciais de crianças e adolescentes
13. Tanto a Convenção Americana como a Constituição da República Federativa do Brasil garantem a vida e integridade física, psíquica e moral das pessoas, e a Constituição contempla como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil o de:
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
14. A Constituição estabelece em seu artigo 227 que "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, ... à dignidade, ... além de colocá-los a salvo de toda forma de ... violência, crueldade e opressão". O Estatuto da Criança e do Adolescente reitera essas garantias. Isso significa que a legislação de menores no Brasil constitui um quadro formal adequado para proteger a vida e a integridade pessoal do menor, à luz das obrigações derivadas da Convenção Americana.
15. A realidade, lamentavelmente, oferece um panorama diverso. Com efeito, não obstante essas normas absolutamente claras, nas periferias das cidades brasileiras se encontram milhões de crianças e adolescentes moitos de elos em situação de risco pessoal e social, fazendo das ruas "seu espaço de luta pela sobrevivência" ou "seu espaço de moradia". Calcula-se que na cidade do Rio de Janeiro cerca de 30 mil crianças freqüentam diariamente as ruas e que cerca de 1.000 fazem delas sua casa. Em São Paulo, estima-se entre 5 mil a 20 mil o número de crianças que passam o dia nas ruas da Grande São Paulo, retornando a suas casas à noite.
16. Esses menores provêm geralmente de famílias que emigraram de zonas rurais empobrecidas para os centros metropolitanos, em cujas periferias passaram a morar em condições abaixo dos padrões mínimos de bem-estar e dignidade. Nesse quadro, os filhos menores muitas vezes são obrigados a trabalhar para contribuir para a subsistência familiar. Embora muitas destas crianças levam ou tentam levar uma vida normal e respeitam a lei, um percentual importante de "meninos nas ruas" e de "meninos de rua" vivem na delinqüência e em situações familiares críticas, subsistindo do produto de pequenos roubos ou da prestação de serviços (inclusive a traficantes de drogas). Suas vidas são em geral curtas, morrendo muitas vezes vítimas de grupos de extermínio, da própria polícia ou ainda, da violência em que sua situação os envolve.
17. De acordo com estatísticas do Estado do Rio de Janeiro, 424 menores de 18 anos foram vítimas de homicídio nesse Estado em 1992. No primeiro semestre de 1993, as vítimas foram 229. Por outro lado, dos 562 homicídios relatados no Estado de Pernambuco (localizado no Nordeste do Brasil) nos oito primeiros meses de 1995, 10% das vítimas eram menores de 18 anos.
Algumas investigações e exemplos de execuções sumárias
18. Em 1990, houve mais de 1.000 assassinatos de menores no Brasil resultantes de uma escalada da violência. Em 4 de agosto de 1991, o jornalista Roldão Arruda publicou no jornal O Estado de S. Paulo os resultados de uma pesquisa sobre as mortes de 30 menores ocorridas em São Paulo no mês de julho daquele ano. Com base em entrevistas com policiais, amigos e familiares das vítimas, o repórter chegou à conclusão de que 30% dessa mortes foram causadas pela polícia, 50% por assassinos profissionais que se autodenominavam "justiceiros" e os 20% restantes deveram-se a vinganças, disputas de quadrilhas ou motivos desconhecidos. Outros estudos realizados nos anos posteriores confirmam as conclusões deste relatório.
19. Devido a estas investigações jornalísticas e à escalada de violência contra a população adulta e a os menores, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, seção de São Paulo, por comunicação oficial de 28 de agosto de 1991, manifesta seu repúdio às execuções extrajudiciais e solicita às autoridades medidas enérgicas para combatê-las. Isto levou à criação da Comissão Especial de Investigação das Execuções Sumárias em São Paulo, que se estabeleceu em 29 de agosto de 1991 com a participação de diversas entidades de direitos humanos, membros da sociedade civil e várias autoridades governamentais.
20. Em seu relatório final, a Comissão Especial mencionava como causas da violência contra a criança e adolescente, entre outras, as seguintes: as dramáticas condições sócio-econômicas existentes nas periferias dos grandes centros urbanos, o reduzido papel da escola no combate a esta violência, em especial da escola pública da periferia; a falta de policiamento adequado na periferia, o que estimula o surgimento de grupos de extermínio; o foro especial militar para julgar os crimes comuns praticados por policiais militares; a falta de formação dos policiais, que muitas vezes confundem violência com energia, especialmente quando se trata de abordar a população marginalizada de crianças e adolescentes; a falta de educadores de rua em número suficiente para dar atenção às crianças e adolescentes, em especial, às crianças pequenas que perambulam pelas ruas de São Paulo, sem receber nenhuma atenção por parte do poder público; e a deficiência da Fundação para o Bem Estar do Menor (FEBEM), que não está preparada para atender aos menores infratores, tanto na Capital, como no interior e o fato de que nos estabelecimentos da FEBEM não há separação dos infratores primários dos reincidentes, criando um clima em que os primários são contagiados pelo mal exemplo dos reincidentes.
21. A Comissão selecionou dessas investigações, alguns casos ilustrativos:
a. Em 1991, na Lapa, dois policiais militares balearam na nuca e ao peito dois adolescentes que "pareciam suspeitos". Os menores, que tinham 16 anos, nunca haviam sido fichados pela polícia ou pelo Juizado de Menores.
b. Em 1991, três menores roubaram pães, cigarros, carvão deixando de pagar as cervejas que tomaram em uma padaria. Três homens armados detiveram um dos menores, levaram-no a uma quadra do local e o assassinaram com 16 tiros em represália.
c. Em 1990 em uma favela de Olinda, um jovem de 17 anos foi tirado a força de sua casa e assassinado junto com seu irmão de 19 anos. Eram conhecidos como drogados e ladrões, não violentos. A investigação revelou a existência de um grupo de extermínio, tendo um de seus integrantes confessado ter sido contratado por um comerciante e de ter sido seus cúmplices, dois policiais que balearam os jovens.
d. O filho de 15 anos de uma moradora de uma favela do Rio de Janeiro, famosa nacionalmente por ter acusado os policiais que entraram em sua casa e mataram seu irmão, foi assassinado anos depois juntamente com outros jovens, perto de sua casa, depois de terem sido detidos por policiais militares.
e. Uma madrugada de 1993, de dentro de um veículo vários homens abriram fogo contra crianças que dormiam do lado de fora da igreja da Candelária, matando instantaneamente quatro delas e ferindo outras quatro, que vieram a morrer mais tarde. Pouco depois, atiraram contra três sobreviventes, matando-os. Um lixeiro identificou-os. Três dos quatro homens eram policiais, que foram presos e seu Comandante afastado da força policial. O lixeiro foi assassinado vários meses depois. Este crime deu origem a uma investigação do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, a respeito dos esquadrões da morte.
f. Uma manhã de 1994, os corpos de três crianças ( duas meninas e um menino) de 12 a 15 anos de idade, dispostos em forma de uma cruz apareceram seminus e com múltiplas feridas de bala nas grades da igreja de Santa Cecília, no bairro Brás da Penha, do Rio de Janeiro. Estas crianças foram as décimas vítimas de execuções extrajudiciais no estilo dos esquadrões da morte em Cordovil, Brás da Penha e Vila da Penha, região do Rio de Janeiro em 1994.
22. A Comissão considera que a maioria dos casos citados como exemplos, bem como outros que teve a oportunidade de estudar mas que não foram incluídos no presente relatório, tem como característica comum denúncias de violência policial contra menores por parte da Polícia Militar e dos esquadrões da morte, que por vezes são integrados pelos próprios policiais, como se descreve no Capítulo sobre "Violência e Impunidade Policial".
23. Os menores, sejam eles delinqüentes ou não, têm direito a que o Estado lhes assegure o exercício de seus direitos humanos e, em especial, seus direitos à vida e à integridade pessoal. Nem a polícia nem particulares têm o direito de fazer justiça por suas próprias mãos. É dever do Estado brasileiro adotar medidas urgentes para assegurar o controle de suas forças policiais e a eliminação dos grupos contratados por terceiros para exterminar menores. Relacionado a isso, deve erradicar a impunidade que promove e dá alento à ação violenta dos policiais militares, o que exigirá a investigação efetiva dos fatos, um julgamento justo e a imposição das penas previstas por lei, obrigações estas derivadas do artigo 1.1 da Convenção Americana.
24. Não tomando as medidas necessárias destinadas a impedir as execuções extrajudiciais de menores bem como a terminar com a impunidade dos responsáveis, o Estado brasileiro acaba por fazer-se responsável pelas violações do direito à vida das vítimas, bem como da violação de seus direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (artigos 8 e 25 da Convenção Americana, respectivamente).
25. A Comissão reconhece o fato de que a Policia Militar dependa dos governadores dos Estados da Federação bem como, de que os Poderes Judiciário e Legislativo sejam independentes. Todavia, não pode eximir de responsabilidade o Governo Federal, embora conheça seus esforços e iniciativas no campo dos direitos humanos, posto que, conforme o artigo 28 da Convenção Americana, cabe ao Estado Federal cumprir a Convenção. Consequentemente, urge que o Governo Federal adote de imediato as medidas pertinentes, nos termos de sua Constituição e legislação, para que todo o aparato do Estado, incluindo as autoridades dos Estados da Federação, adotem as medidas cabíveis para o cumprimento da Convenção (Convenção Americana, artigo 28, inciso 3). Com esse objetivo, ele deverá apresentar projetos de lei e apoiá-los com energia, a fim de criar a legislação necessária para acabar com a impunidade dos delitos cometidos por seus agentes contra a vida dos menores.
Tortura e maus tratos a menores por parte da polícia "militar"
26. O artigo 5º da Convenção Americana estabelece que "toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral" e que "ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes". "Toda pessoa -- acrescenta esta disposição -- será tratada com o respeito devido à dignidade humana" (artigo 5º, incisos 1 e 2).
27. A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, ratificada pelo Brasil em 20 de julho de 1989, define a tortura como:
Todo ato realizado intencionalmente pelo qual se infligem a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, para fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer objetivo... (artigo 2).
28. A Constituição Federal proíbe a prática da tortura, ao estabelecer, em seu artigo 5, inciso III, que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, pune com penas de 1 a 30 anos de reclusão a tortura infligida a menores por aqueles que os têm sob sua custódia, vigilância ou autoridade.
29. Apesar das normas internacionais e internas que proíbem a tortura, a Comissão teve conhecimento de que houve casos de tortura de menores por parte de policiais militares. Essa informação provém de inquéritos parlamentares, organismos independentes, investigações jornalísticas e denúncias de cidadãos.
30 Exemplos dessa tortura apareceram publicados, entre outros, na imprensa brasileira:
a. Conforme o jornal "A Folha de São Paulo", de 1º de setembro de 1992, dois adolescentes, um de 17 anos e outro de 14 anos, foram torturados por onze policiais militares em outubro de 1992. Os policiais militares foram acusados de torturar as crianças com uma técnica conhecida como "afogamento", mergulhando a cabeça das vítimas em um tanque com água. Além disso, foram também acusados de agredi-las com socos e pontapés, com um pau e com o cano do revólver em suas costas e na cabeça.
b. Segundo a Pastoral da Arquidioceses de São Paulo, em 20 de abril de 1991 um jovem de 19 anos teve o rosto queimado com gás ácido por dois policiais das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA).
c. Conforme o "Correio Brasiliense" de 17 de outubro de 1990, em Gama, uma menor denunciou ter sido submetida a sessões de espancamentos por parte de policiais militares após ter solicitado sua ajuda para intervir em um tumulto na festa de aniversário da cidade, em um estacionamento do estádio de futebol Bezerrão. Segundo a menina, os policiais militares a espancaram, drogaram, tiraram sua roupa, causando-lhe desmaio. A menina despertou em um hospital.
d. Em Formosa, três meninos foram torturados pela Polícia Militar após terem tentado roubar uns tênis. A Polícia Militar levou os garotos à delegacia de polícia e, no pátio, em presença de outros policiais, obrigaram-elles a escolher quem iria espancá-los. Depois que foram espancados e torturados, foram enclausurados em uma cela, onde permaneceram toda a noite.
e. Segundo um padre missionário religioso, que se dedica a educar meninos de rua, cinco crianças foram espancadas e torturadas por dez policiais militares. As crianças foram obrigadas a deitar-se no chão, onde foram espancadas, enquanto os policiais, rindo, atingiam seus órgãos genitais. O padre missionário também teria sido espancado na mesma ocasião tendo sido acusado pelos agressores de colaborar com os delinqüentes.
31. Deve ressaltar a Comissão aqui, que as cifras da violência policial diminuíram sensivelmente desde 1993 em São Paulo e aumentaram desde maio de 1995 no Rio de Janeiro. (Ver capítulo sobre "Violência e Impunidade Policial")
Violência e tortura nos estabelecimentos especiais destinados a menores
32. A Comissão tomou conhecimento, ademais, de casos de violência e tortura em estabelecimentos destinados a menores, o que fere o artigo 5 da Convenção Americana e o artigo 2, entre outros, da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Também foi informada de que neles não se cumpre o disposto no Estatuto da Criança, posto que não se separam os internos de acordo com a idade e os delitos cometidos, o que fomenta a violência.
33. Conforme se informou à Comissão, a violência praticada nessas instituições é causada seja pelos próprios menores seja pelos funcionários encarregados de sua segurança e assistência. Muitas vezes, os menores são torturados ou assassinados por outros menores com a conivência dos próprios funcionários, que simplesmente deixam de adotar as medidas adequadas quando aqueles menores submetem outros a tortura. Outras vezes, os mesmos funcionários fornecem armas aos menores para que estes possam praticar atos de violência. Foi o caso de Fábio Alves da Silva, internado na Unidade de Integração Social do Instituto de Bem-estar Social do Menor (IESBEM), assassinado dentro do reformatório. Segundo funcionários da instituição, o assassinato foi cometido por outros dois internos, em represália por ter ele delatado uma tentativa de fuga ocorrida no dia anterior. Os guardas de turno não relataram o incidente.(27)Éæêo na condição de aprendiz (artigo 60). Com relação ao trabalho dos adolescentes, proíbe o trabalho noturno, perigoso, insalubre ou realizado em locais prejudiciais a sua formação e a seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social. Ademais, proíbe o trabalho realizado em horários e locais que não lhes permitam freqüentar a escola (artigo 67 do Estatuto da Criança e do Adolescente).
34. Outro exemplo é o fato denunciado em 27 de março de 1996 por um menor interno da Escola João Luiz Alves do Rio de Janeiro, destinada a menores delinqüentes do sexo masculino. O menor denunciou ao Ministério Público que fora forçado a cometer atos libidinosos com outros menores internos e que esses incidentes eram habituais na instituição. O menor contou ter sido obrigado a manter relações sexuais com outros menores sob ameaça de morte e que isso ocorreu com o consentimento dos funcionários da escola, que forneceram armas aos menores agressores para que pudessem praticar tais atos. O menor denunciou ainda que outros menores internos sofreram de igual tipo de violência e que, ademais, eram submetidos a sessões de tortura que incluíam queimaduras provocadas com espuma de colchões e espancamentos, além de ter sido fotografado por outro interno, na presença dos guardas, enquanto praticava os atos libidinosos.
35. Conforme denúncia do Jornal do Brasil, de 6 de dezembro de 1995, oito menores internas da Escola Santos Dumont do Rio de Janeiro, destinada a meninas delinqüentes, foram espancadas e submetidas a torturas na instituição. O principal acusado do espancamento de seis delas foi o diretor da unidade, Newton de Souza, técnico em serviço social. As internas foram submetidas a exame pelo Instituto Médico Legal, que confirmou o laudo. As meninas informaram que, além de terem sido espancadas com um cassetete pelo diretor da instituição, foram mantidas ao sol por várias horas seguidas, como forma de tortura. Uma das espancadas estava grávida de sete meses.
36. A Comissão considera que os direitos da criança, protegidos no Brasil tanto pelos compromissos internacionais assumidos pelo país bem como por sua legislação interna, na prática freqüentemente deixam de ser observados. De fato, os casos de tortura de crianças e adolescentes persistem e continuam sendo denunciados à comunidade brasileira e internacional. É responsabilidade internacional do Estado brasileiro, de acordo com a Convenção Americana, adotar medidas urgentes para prevenir esses atos de violência contra os menores. Diante das situações descritas anteriormente, a Comissão considera importante que a violência, as execuções extrajudiciais e as torturas contra os menores sejam tratadas como um problema prioritário dos direitos humanos no Brasil.
D. A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO DE MENORES
37. A Convenção Americana, em seu artigo 6, estabelece que ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e que ninguém deverá ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Essa proibição aplica-se com maior razão aos menores que, como dispõe o artigo 19, merecem proteção especial por sua própria condição.
38. A Constituição da República Federativa do Brasil proíbe o trabalho de crianças menores de 14 anos, salvo quando este se realiza em condições de aprendizado. Ao mesmo tempo, proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre para menores de 18 anos.
39. O Estatuto da Criança e do Adolescente reitera a proibição constitucional relacionada com o trabalho de menores de 14 anos, salvo na condição de aprendiz (artigo 60). Com relação ao trabalho dos adolescentes, proíbe o trabalho noturno, perigoso, insalubre ou realizado em locais prejudiciais a sua formação e a seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social. Ademais, proíbe o trabalho realizado em horários e locais que não lhes permitam freqüentar a escola (artigo 67 do Estatuto da Criança e do Adolescente).
40. Apesar de a legislação brasileira estabelecer essa proibições para o trabalho de adolescentes, a Comissão foi informada de que essa prática é muito comum, especialmente na indústria, na qual os adolescentes trabalham com produtos tóxicos, em condições insalubres ou em locais perigosos. As jornadas de trabalho são longas e muitas vezes em horário noturno, o que faz com que os menores trabalhadores percam aulas ou se vejam na necessidade de ter que abandonar a escola.
41. Em que pese as restrições legais que só o trabalho de crianças com autorização especial de um juiz, dados oficiais indicam que mais de três milhões de crianças de 10 a 14 anos( ou seja 4.6% da força de trabalho total) estão empregadas, muitas trabalhando junto com seus pais em tarefas agrícolas ou pequenas oficinas.
Acidentes, condições insalubres e esquálidas são comuns nas industrias açucareiras (trabalho da safra) em Pernambuco, frutíferas em São Paulo, em produção de carvão em Minas Geirais, Mato Grosso do Sul e Pará; em plantações de sisal na Bahia e Paraíba, em plantações de algodão no Paraná; em reflorestamento em Minas Geirais, Bahia e Espírito Santo, aonde são usados em muitos casos para aplicar produtos químicos tóxicos.
42. Esse tipo de trabalho normalmente é realizado em fazendas distantes dos grandes centros e em algumas usinas ou empresas afastadas, nas quais as crianças e os adolescentes executam trabalhos extremamente pesados, como cortar cana-de-açúcar ou bambú. As jornadas são comumentes de 10 a 12 horas diárias e o salário é baixo. E ainda são obrigados a pagar caro pelas mercadorias de que precisam para seu sustento. Isso os leva a contrair dívidas com seus patrões, que aumentam a cada dia e que obviamente não podem ser quitadas com sua baixa renda. Os fazendeiros, por seu lado, não lhes permitem abandonar o local de trabalho a menos que saldem previamente suas dívidas, e contratam pistoleiros para impedir que isso aconteça. Os pistoleiros usam da força para cumprir o que lhes é ordenado, não sendo raros os assassinatos. Tudo isso faz com que a situação dos menores se transforme em uma relação de servidão, pois, devido ao círculo vicioso de baixos salários e dívidas crescentes, eles na prática ficam hipotecados à fazenda pela vida toda. Cabe observar, além disso, que, de acordo com informações levadas à Comissão, esses menores manejam instrumentos e máquinas perigosas, sem qualquer tipo de proteção, sendo comuns acidentes graves de trabalho que em geral não são denunciados às autoridades por medo de represália da parte dos patrões.
43. A Comissão considera que o Estado deve impedir e punir rigorosamente essas condições de trabalho ilegal de crianças e adolescentes que, não o fazendo, estará violando compromissos oriundos da Convenção Americana, bem como da própria Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
44. Organizações privadas e o Governo estão realizando esforços e colaborando com medidas concretas para erradicar o trabalho infantil no Brasil. O presidente Cardoso, em setembro de 1996, firmou com oito governadores e diretores de várias ONGs, vários protocolos para tomar medidas com a finalidade de terminar com "a prática inaceitável" de trabalho infantil no Brasil.
45. Alguns programas experimentais estão sendo implementados para reduzir a preponderância da exploração do trabalho infantil em alguns Estados. Em 24 de janeiro de 1997, foi implementada a "Bolsa Cidadã Infantil" e a "Bolsa Criança Cidadã", que entrega uma soma mensal a famílias carentes com filhos entre 7 a 14 anos, soma esta que complementa a renda familiar para facilitar que as crianças freqüentem a escola. A entrega esta condicionada ao desempenho escolar das crianças e ao envolvimento da família em projetos de geração de empregos e rendimentos. O projeto foi iniciado em Pernambuco onde pretende beneficiar a 13.200 menores e estender-se a Bahia para auxiliar as famílias de outros 15.000 menores. No Distrito Federal esta bolsa atinge a 27.000 famílias e permite capitalizar as entregas no beneficio da continuidade dos estudos do beneficiario.
E. EXPLORAÇÃO SEXUAL DE CRIANÇAS
46. Segundo foi informada à Comissão, entre as diversas formas de exploração dos menores no Brasil se encontra a prostituição infantil. Esse fenômeno se atribui a diversas causas, entre as quais se destacam as sócio-econômicas, expressas na miséria familiar, no processo migratório das famílias, movidas pela esperança de escapar da pobreza, de regiões mais pobres do país para as grandes cidades; nas dificuldades para estudar e na situação familiar, que se caracteriza por lares desintegrados e circunstâncias familiares pouco definidas, nas quais muitas vezes as menores são vítimas de abusos, inclusive de violência sexual. Uma vez nas cidades, os adultos passam a engrossar as filas dos desempregados e, em muitos casos, as filhas menores de idade, diante da necessidade de se manter, acabam se prostituindo. Em troca de seus serviços, recebem alimentação diária mas, em compensação, sofrem abusos por parte de seus "protetores", que muitas vezes as mantêm em completo cativeiro.
47. Há denúncias de centenas de casos de meninas mantidas em estado de servidão em localidades remotas, nas regiões dos garimpas de ouro da Amazônia. O assunto do tráfico de meninas para os garimpos ganhou divulgação especial após a uma série de reportagens da Folha de São Paulo, nas quais se fazia referência às rotas desse tráfico e à sua vinculação com a polícia. Há informações de que, devido à grande repercussão daquelas reportagens, a Polícia Federal realizou uma batida na cidade de Cuiú-Cuiú, que culminou com a liberação de 70 prostitutas (22 das quais eram menores de idade) e com a prisão de 10 donos de discotecas e agentes da prostituição.
48. Exemplo dramático de uma situação generalizada nesse submundo da prostituição infantil é o caso de uma menina de 13 anos que, ao ser entrevistada, manifestou o desejo de deixar sua condição de prostituta e a impossibilidade de fazê-lo, porque tinha uma dívida pendente de US$27 com o bordel onde estava retida. Essa dívida era o saldo de outra de US$37 contraída por ter quebrado um relógio de pé pertencente ao dono do estabelecimento. Para pagar o prejuízo, ela teria de entregar-lhe o pagamento integral de 20 serviços sexuais, o que não era possível, pois precisava de dinheiro para pagar suas despesas, incluindo aquelas com roupa, casa e comida.
49. Segundo informações, foi descoberto que em algumas cidades do interior do Rio Grande do Sul, eram oferecidas propostas aos pais de algumas menores para convencê-los de que suas filhas iriam ter a oportunidade de receber educação se estes as deixassem ir para a cidade. Contrariamente ao que era prometido, ao chegarem à cidade grande as menores eram obrigadas a atuar como prostitutas, muitas vezes com a conivência da polícia civil.
50. Na Bahia, uma investigação parlamentar estadual descobriu, além da amplidão da prostituição infantil, a cumplicidade de motoristas de táxis e da polícia.
51. Há relatos ainda de que, nas regiões do Pará, de Rondônia, da Amazonas, do Acre e do Amapá, onde é intensa a atividade gorimpeira, as famílias entregam suas filhas menores de idade aos garimpeiros em troca de artigos de primeira necessidade. Outras vezes, as meninas são convencidas a trabalhar em restaurantes ou bares mediante a oferta de bons salários, mas ao chegarem lá descobrem que o trabalho consiste em oferecer serviços de prostituição. Desde o início, os patrões supostamente as informam de que lhes devem os custos de passagem, o que marca o início de um círculo vicioso em que as dívidas se acumulam e as menores só conseguem pagá-las dedicando-se à prostituição. Observe-se que nesse meio os donos de garimpo têm muito poder, que as autoridades adotam uma atitude passiva e que a sociedade, por seu lado, aceita esses fatos com indiferença.
52. Como conseqüência das denúncias em relação à prostituição forçada de meninas, as autoridades prepararam um documento oficial em que se admite que esse tipo de prostituição existe. Por sua vez, a Polícia Federal preparou um relatório em que se estudam em profundidade as denúncias sobre assassinatos e torturas de meninas em situação de servidão no Norte do país. Em novembro de 1992, a polícia libertou 92 adolescentes entre 12 e 18 anos e 30 menores de 12 anos em bordéis que funcionam em campos de mineração no estado de Rondônia. Por outro lado, o Congresso Nacional estabeleceu uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as denúncias de prostituição forçada de menores.
53. O relatório dessa Comissão Parlamentar de Inquérito verificou a participação da polícia na prostituição de menores e recomendou, entre outras coisas, o estabelecimento de mais programas sociais, a emenda do Código Penal e a aplicação efetiva do Estatuto da Criança e do Adolescente para proteger os menores submetidos a esse tipo de violência. Embora não tenha encontrado provas para apoiar a afirmação de que há 500 mil menores dedicadas à prostituição no Brasil, a Comissão de Inquérito constatou a existência desse fenômeno nos 10 Estados que visitou e recebeu informações confiáveis de que só na cidade do Rio de Janeiro pelo menos 500 meninas, entre 8 e 15 anos de idade, estavam envolvidas na prostituição.
54. Em fevereiro de 1997, o Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso lançou uma campanha vigorosa contra o "turismo sexual" no Brasil, sob o lema de "Cuidado, o Brasil está de olho", contra turistas que procuram se aproveitar da exploração sexual infantil. A campanha não é meramente publicitária-preventiva, pois inclui a repressão das empresas turísticas que as promovem e organizam, dos estabelecimentos, restaurantes e motoristas de táxis comprometidos, além da punição dos turistas (estrangeiros ou nacionais) infratores com todo o rigor da lei. No Brasil, a pedofilia tem penas que vão de 1 a 4 anos de prisão.
55. Além dessas medidas, o Governo com apoio de organizações civis passou a funcionar o "disque denuncia" o qual recebe denuncias de todo o Brasil. Junto a Associação Nacional dos Centros de Defesa(ANCED), O Ministério da Justiça facilita meios e treinamento para atender as vítimas e monitorar as denuncias. Também apoia os estados no estabelecimento de "Redes de combate à exploração sexual infantil".
56. A Comissão considera que esta campanha contra uma das formas de exploração de menores no Brasil é um valioso esforço do Estado brasileiro no sentido de cumprir seu dever de proteger a vida e a integridade dos menores, conforme os artigos 4 e 5 da Convenção Americana, lembrando que ele tem igualmente o dever de assegurar aos mesmos menores o direito de não serem submetidos a trabalho forçado ou em regime de servidão (artigo 6 da Convenção). Considera ainda que é de sua competência castigar severamente este abuso da violência e exploração sexual da criança e do adolescente, conforme estabelece também o artigo 227, seção 4, da Constituição da República Federativa do Brasil, e zelar para que se cumpra a proibição do trabalho para menores de 14 anos e do trabalho noturno, perigoso ou insalubre para menores de 18 anos.
F. DENÚNCIAS SOBRE DESAPARECIMENTOS DE MENORES
57. Em sua visita in loco realizada em dezembro de 1995, a Comissão recebeu denúncias das "Mães de Acari", habitantes da favela do mesmo nome no Rio de Janeiro. As mães relataram que 11 adolescentes desapareceram em agosto de 1990 e que seus corpos nunca foram encontrados. Com base em uma investigação, cinco policiais foram indiciados, mas não chegaram a ser denunciados pelo Ministério Público por falta de provas. Uma das mães foi assassinada em 1993, depois de ter promovido uma reunião com as outras mães para discutir o assunto. A Comissão também foi informada sobre o desaparecimento de meninas, que presumivelmente teriam sido seqüestradas e vendidas para o mercado da prostituição forçada.
58. A Comissão recebeu informações sobre o desaparecimento de crianças que ocorrem tanto nas grandes cidades como nas zonas mais distantes das capitais, como resultado de execuções extrajudiciais, seqüestros para fins de prostituição e outros objetivos similares. As crianças simplesmente desaparecem sem deixar pistas, e não se encontram seus corpos. A Comissão não está em condições de afirmar a extensão desta prática, mas dada a freqüência das informações e sua natureza, insta as autoridades a aprofundar as investigações a esse respeito e a tomar as medidas adequadas. Informações do Governo indicam que a maioria dos desaparecimentos ocorrem por problemas familiares (seqüestro pelos próprios pais, fuga das criança, etc.). Campanhas promovidas pelo governo juntamente com associações civis (incluindo canais comerciais de televisão) parecem ser relativamente exitosas para a recuperação ou localização das crianças.
G. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
59. Os testemunhos recolhidos durante seus visita in loco ao Brasil, além das informações recebidas antes, durante e depois da mesma, permitem à Comissão concluir que a situação do menor brasileiro se reveste de extrema gravidade. Os inegáveis progressos legislativos conseguidos nos últimos anos e a criação de novas instituições destinadas à proteção da criança e do adolescente não parecem refletir-se de forma efetiva na situação real dos menores, muitos dos quais continuam sendo objeto de diferentes formas de violência, em especial de execuções sumárias.
60. A Comissão reconhece o inegável compromisso do Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso em admitir com transparência e firmeza os problemas existentes no campo dos direitos da criança. É testemunha também da energia com que condena e enfrenta a violação desses direitos. Todavia, considera necessário assinalar que o Estado brasileiro ainda não conseguiu assegurar, de forma efetiva, os direitos humanos das crianças.
61. Consequentemente, a Comissão se permite recomendar ao Estado brasileiro que:
a. Cumpra, divulgue e coloque em prática sua legislação destinada a proteger as crianças e os adolescentes, em especial o Estatuto da Criança e do Adolescente, e adote medidas efetivas de controle para assegurar que os Estados, os Municípios e as demais autoridades responsáveis por sua aplicação a cumpram e respeitem. Fortaleça o CONANDA, único órgão de caráter nacional que formula políticas nacionais de promoção, atendimento e defesa dos direitos da criança e do adolescente;
b. Proteja a vida e a integridade dos "meninos de rua" e dos "meninos na rua" e adote medidas efetivas para promover sua educação, reabilitação e integração à sociedade;
c. Adote medidas protetoras e de controle para erradicar o trabalho escravo de crianças menores de 14 anos e o dos adolescentes quando se tratar de trabalho noturno, perigoso, insalubre ou realizado em locais prejudiciais à sua formação e a seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, e quando realizado em horários e locais que não lhes permitam a freqüência assídua à escola. Investigue efetivamente, julgue e puna os responsáveis pelo trabalho forçado dos menores;
d. Previna e erradique os atos de tortura e maus tratos a menores nas prisões e nos estabelecimentos de menores. Investigue, castigue e julgue os responsáveis por esses delitos e fortaleça os organismos governamentais e comunitários de supervisão da ação policial em relação a menores.
e. Erradique as situações de servidão e prostituição das crianças e adolescentes. Investigue efetivamente, julgue e castigue os exploradores e usuários; e aplique com toda severidade os objetivos e ações da campanha contra o "turismo sexual" infantil;
f. Promova e exija dos Estados e Municípios que cumpram com sua obrigação legal de criar Conselhos Tutelares, aproveitando a experiência positiva dos já existentes. Promova a participação da comunidade, em especial das igrejas, dos sindicatos, dos grupos de serviço e empresariado, para atuar em projetos conjuntos no campo da prevenção da delinqüência e do controle externo dos estabelecimentos destinados ao menor delinqüente ou desajustado, com vistas à construção de uma sociedade mais justa.
g. Crie programas de orientação familiar e programas governamentais, com o objetivo de capacitar as famílias para o exercício responsável da paternidade e maternidade e para a resolução de conflitos familiares de forma não violenta e promova a adoção de crianças abandonadas com o objetivo de tirá-las das ruas, onde são vítimas e agentes da violência.
h. Aloque recursos às escolas a fim de que, juntamente com as instituições especiais para menores, se organizem programas de prevenção da delinqüência e do absenteísmo das escolas públicas, sobretudo da periferia. Construa e organize estabelecimentos adequados para abrigar e reabilitar os menores infratores, separando os primários dos reincidentes. Treine pessoal técnico para cuidar desses menores; adote medidas orientadas para sua educação, reabilitação e reintegração à sociedade. Puna severamente as autoridades e funcionários desses estabelecimentos que cometam abusos e atos de violência contra eles.
NOTAS AO CAPITULO V
A necessidade de dispensar atenção especial à situação dos menores foi reconhecida originalmente na Convenção de Genebra sobre os Direitos da Criança de 1924 e depois na Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959, nos instrumentos gerais de direitos humanos e nas agências especializadas. Em 1989, aprovou-se nas Nações Unidas a Convenção sobre os Direitos da Criança. Essa Convenção define "criança" como todo ser humano menor de 18 anos, salvo nos casos em que, de acordo com a lei aplicável, a maioridade seja alcançada antes. Neste capítulo, em muitos casos se distingue entre as crianças (que em geral se referem aos pré-púberes, aproximadamente menores de 12 anos) e os adolescentes.
De acordo com a mesma disposição, essas medidas devem incluir procedimentos efetivos para o estabelecimento de programas sociais destinados a dar à criança e aos responsáveis por ela o apoio necessário para a identificação, denúncia, investigação, tratamento e acompanhamento das formas de violência antes mencionadas, e para a intervenção judicial.
Ver O Trabalho e a Rua, nota 13, págs. 10-14.
Essa disposição introduziu na Constituição os elementos essenciais contidos na Convenção sobre os Direitos da Criança, cujo texto já era conhecido no Brasil antes de sua ratificação em 1990. Ver O Trabalho e a Rua, nota 13, págs. 10-14.
Artigos 7 a 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90).
Artigos 53 a 69 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90).
Artigo 15 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90).
Suas disposições se referem ao desenvolvimento físico (saúde e alimentação, artigos 7 a 14), intelectual (direito à educação, à formação profissional e à proteção no trabalho, artigos 53 a 69), emocional, moral, espiritual e social (direito à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e à convivência comunitária).
O Estatuto da Criança e do Adolescente foi publicado originalmente no Diário Oficial do Brasil de 16 de julho de 1990, sofrendo depois uma emenda publicada no Diário Oficial de 16 de outubro de 1991.
Pesquisa do "Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência", setembro de 1994.
A conferência é precedida de reuniões preparatórias nos níveis municipal e estadual. O Departamento da Criança e do Adolescente (DCA) do Ministério da Justiça está dando apoio técnico-financeiro à instalação e funcionamento de conselhos em diversos municípios. Para fortalecer a atuação dos conselhos de direitos da criança e do adolescente foi realizado, por meio de convênio com a Associação Brasileira de Tecnologia e a Universidade de Brasília, projeto de capacitação de conselheiros à distancia. O DCA fornece ainda apoio técnico e financeiro aos estados para capacitação de recursos humanos.
Estes meninos são muitas vezes fruto de gestações complicadas ou indesejadas, e passam pela infância e adolescência rejeitados, violentados, incompreendidos, sem freqüentar a escola e sem ter trabalho. São menores que muitas vezes acabam assassinados em circunstâncias dramáticas nos centros urbanos da sociedade brasileira. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, SEÇÃO DE SÃO PAULO, COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS; EXECUÇÕES SUMARIAS DE MENORES EM SÃO PAULO (1993) P.153.
AYRTON FAUSTO, CERVINI RUBEN, O Trabalho e a Rua: Crianças e adolescentes no Brasil urbano dos anos 80. Textos selecionados de estudos e pesquisas apoiados pela UNICEF e FLACSO, pág. 9. São Paulo: Editorial Cortez, 1991.
COUNTRY REPORTS ON HUMAN RIGHTS PRACTICES FOR 1994. Report Submitted to the Committee on Foreign Affairs, House of Representatives, and the Committee on Foreign Relations, U.S. Senate, by the Department of State, pág. 349 (1995).
15 Ver O Trabalho e a Rua, supra nota 13, pág. 10.
16 Uma pesquisa realizada com crianças e adolescentes na cidade de Fortaleza revela que cerca de 60% dos entrevistados precisavam trabalhar para ajudar as famílias. Direitos Humanos no Brasil (1992-1993), COMISSÃO JUSTIÇA E PAZ, ARQUIDIOCESE DE BRASÍLIA, Edições Loyola, São Paulo pág. 64 (1994). Ver também O Trabalho e a Rua, supra nota 13, pág. 75.
17 Contrariamente ao que se pensava antes, a maior parte dos menores que vivem nas ruas têm famílias e vivem com os pais; uma parte considerável vive com a mãe e um pequeno grupo mora nas ruas e perdeu o contato com a família ou o mantém de forma ocasional. Por isso, a partir de 1980 se começou a distinguir entre os meninos que vivem sua casa mais pasam a moior parte do día na rua e que são denominados de "meninos de rua" e os que vivem na rua e são denominados de "meninos nas ruas". De qualquer forma, fortaleceu-se a convicção de que se trata de crianças e adolescentes pobres, que têm a responsabilidade de participar do orçamento familiar. Ver O Trabalho e a Rua, supra nota 13, págs. 76-77.
18 Ver, por exemplo, MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, pág. 41 (1994).
19 A Comissão Parlamentar de Inquérito do Estado de Rio de Janeiro informou que 90% dos menores assassinados não tinham antecedentes criminais. Brazil Street Children Murders (Internet).
20 COUNTRY REPORTS ON HUMAN RIGHTS PRACTICES FOR 1995. Report Submitted to the Committee on Foreign Affairs, House of Representatives, and the Committee on Foreign Relations, U.S Senate, by the Department of State, pág. 349 (1995). Um estudo sobre as mortes de menores ocorridas entre 1991 e 1993 faz referência aos motivos que levam esses menores à vida de violência nas ruas. O estudo, de 1993, foi feito com base em investigações policiais referentes a 1991 e relatórios da Secretaria da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro referentes a 1992-93. O estudo conclui, entre outras coisas, o seguinte: que a maioria dos mortos não eram "meninos de rua" (ou seja, que moravam efetivamente nas ruas), mas adolescentes do sexo masculino, de aproximadamente 17 anos, mortos nas proximidades de suas casas; que todos eram pobres e sem identificação étnica particular (embora o estudo reconheça que os mais vulneráveis são os negros e os mestiços, que historicamente são os mais afetados pela distribuição desigual da riqueza e pela discriminação socio-econômica); que a violência parece estar ligada principalmente à criminalidade geral e ao tráfico de drogas, atividade extraordinariamente hábil em recrutar e envolver menores; que esse mundo lhes oferece, entre outras coisas, trabalho, dinheiro, poder, valores, padrões de conduta, proteção, "status" social e o sentimento de pertencer a algo; que encontram insegurança, temor, desconfiança e até terror, e que não é necessário estar vinculado à droga ou a práticas ilegais para perder a vida nesse círculo de violência, pois para isso basta ser chegado, parente, vizinho ou amigo dos que estão de fato envolvidos nesse mundo. Ver C. MILITO, H. R. SANTOS SILVA, E. SOAREZ, Murders of Minors in Rio de Janeiro State (from 1991 through July 1993) págs. 17, 18 (1993), Report Research Conducted as part of Project "If This Street Was Mine" (FASE, IBASE, IDAC, ISER).
21 A reportagem concluiu, entre outras coisas, que: não existia uma campanha de extermínio de adolescentes criminosos na cidade; a maioria dos mortos integravam famílias numerosas, de até 14 filhos; as mortes ocorreram na periferia da cidade de São Paulo, a distâncias que variam de 30 a 50 quilômetros do centro; 86% eram negros ou mulatos; dos 30, 25 oscilavam entre os 16 e 17 anos; a maioria das famílias dos menores mortos vivia em pequenas construções de alvenaria, de teto baixo, sempre em estado de construção, com tijolos e ferros à vista; as casas estavam levantadas em áreas sem valor imobiliário; os menores pertenciam a famílias migrantes, que tinhamn chegado há cerca de 15 ou 20 anos do Nordeste, do interior ou de estados vizinhos, como Minas Gerais e Paraná. Para poder realizar as entrevistas, o jornalista percorreu 2.300 quilômetros na periferia da cidade. "As perssoas têm muito medo". "...a morte está presente em seu dia-a-dia", escreveu o repórter. Ver Relatório Final da Comissão Especial de Investigação para o exame das execuções sumárias em São Paulo, 16 de setembro de 1992, ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, SEÇÃO DE SÃO PAULO, COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS, EXECUÇÕES SUMÁRIAS DE MENORES EM SÃO PAULO, págs. 135-139 (1993). No que se refere á reportagem do jornalista Roldão Arruda, publidado em O Estado de São Paulo, ver pág. 38.
22 Diário Popular, 11 de novembro de 1993.
23 Artigo 227, parágrafo 3, inciso I da CF.
24 Artigo 7, inciso XXXIII da CF.
25 Artigo 7, parágrafo XXXIII da CF.
26 Ver MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, p. 50 (1994).
27 Ver, sobre esse assunto, Diário Popular, 8 de julho de 1993.
28 JOHN DREXEL, O.M.I. e LEILA RENTROLA IANNONE, Criança e Miséria, Vida ou Morte?, pág. 74 (1989).
29 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, p. 51 (1994).
30 GILBERTO DIMENSTEIN, Democracia em Pedaços: Direitos Humanos no Brasil, São Paulo. Ed. Companhia das Letras, pág. 161 (1996). Ver também MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, p. 51 (1994).
31 GILBERTO DIMENSTEIN, Democracia em Pedaços: Direitos Humanos no Brasil, São Paulo. Ed. Companhia das Letras, pág. 161 (1996).
32 Ver Relatório Azul - Garantias e Violações dos Direitos Humanos No. RS - 1994, Comissão de Cidadania e Direitos Humanos - AL\RS), págs. 25, 26, 27-28.
33 Levantamento da Situação de Direitos Humanos com Enfoque na Situação de Direitos Humanos da Criança e do Adolescente no Rio de Janeiro para a Comissão dos Direitos Humanos - Centro de Defesa, Garantia e Promoção de Direitos Humanos, 1995, pág. 134.
34 Ver Comissão Parlamentaria de Inquérito, Congresso Nacional, Relatorio sobre Prostituição Infantil, 1993, pág. 82, 4º par.
35 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, p. 51 (1994).
36 COUNTRY REPORTS ON HUMAN RIGHTS PRACTICES FOR 1995. Report Submitted to the Committee on Foreign Affairs, House of Representatives, and the Committee on Foreign Relations, U.S. Senate, by the Department of State, pág. 349 (1995).
CAPÍTULO VI
OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL
A. ANTECEDENTES JURÍDICOS E HISTÓRICOS
Antecedentes gerais
1. Aproximadamente 330.000 cidadãos brasileiros indígenas conformam os 206 povos originários, ancestrais do território da União. Suas organizações, características de vida e gozo de direitos humanos são variados: há os que mantêm uma cultura selvática auto-suficiente, com mínimo contato com o exterior, ao passo que outros, através da agricultura e de outras formas de produção, estabeleceram intensas relações com o mundo não-indígena.
2. Os povos indígenas reivindicam direitos legais sobre 11% do território nacional e têm obtido importantes reconhecimentos dos mesmos. Em sua grande maioria, as terras indígenas (aproximadamente 95%) situam-se na Amazônia, ocupando cerca de 18% da região, e nelas vivem pouco menos de 50% dos indígenas brasileiros. Em contraste, outros 50% dos indígenas são habitantes de áreas do sul do Brasil, cuja superfície é inferior a 2% do total dos territórios indígenas.
3. Nos últimos 30 anos, os povos indígenas brasileiros intensificaram sua participação na vida política, aumentando, em conseqüência, o reconhecimento geral dos seus direitos. Um fator essencial para tal foi, paradoxalmente, a expansão da infra-estrutura econômica moderna para o interior do Brasil, iniciada a partir do fim da Segunda Guerra Mundial e acelerada nas décadas de 60 e 70, sob os regimes militares. Em resposta a essa expansão, que avançava para o interior das suas áreas ancestrais, iniciaram-se grandes mobilizações de indígenas e de organizações que defendiam e promoviam seus direitos humanos.
4. A partir de 1987, o Plano Calha Norte, baseado no princípio de ocupação territorial segundo princípios militares de segurança, pretendeu reduzir os grandes territórios indígenas contíguos, excluí-los de uma faixa de segurança de 62 km a partir das fronteiras e enfatizar a classificação dos indígenas em "silvícolas" e "aculturados", com diferentes direitos segundo cada categoria. Em relação aos "aculturados", as obrigações do Estado desapareciam ou, ao menos, eram sensivelmente reduzidas.
Direitos constitucionais
5. Em face dessa situação, numerosos setores brasileiros e internacionais apoiaram as reivindicações indígenas, tal como manifestado na Assembléia Constituinte de 1988, na qual a discussão passou dos foros estaduais, em que prevaleciam interesses locais geralmente contrários às reivindicações indígenas, para o nível nacional, em que a defesa dos direitos indígenas foi apoiada por outros grandes setores sociais. A Constituição de 1988, no seu Capítulo VIII, consagra uma das posições normativas mais avançadas da legislação comparada. Suas disposições diretamente relacionadas aos direitos dos indígenas superam a doutrina de "assimilação natural" previamente aceita. Por outro lado, são reconhecidos como permanentes os direitos originais inerentes aos povos indígenas por sua condição de primeiros e contínuos ocupantes históricos de suas terras.
6. No seu Capítulo VIII, "DOS ÍNDIOS", dispõe a Constituição de 1988:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nestas existentes.
§3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§5º É vedada a remoção de grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção do direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3º e 4º Art .
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
Título IX. Das disposições constitucionais gerais.
Art.67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição. [5 de outubro de 1988].
7. Ao considerar os direitos indígenas como direitos "originais", a Assembléia Constituinte aceita o princípio de que os indígenas eram os proprietários originais das terras e, portanto, que seus direitos antecedem todo ato administrativo do governo. Além disso, a Constituição estabeleceu que o Ministério Público Federal deve defender os direitos dos indígenas perante os tribunais, e que os grupos indígenas podem, por si mesmos, promover ações judiciais.
8. Em princípio, compete à justiça federal dirimir as controvérsias referentes aos direitos dos indígenas ou de suas comunidades. A pesar que a constituição estabelece que cabe a Justiça Federal dirimir disputas sobre interesses indígenas, existem diversas interpretações com relação a questões penais. Assim é que alguns juizes estaduais se entendem competentes em casos em que a vítima ou réu sejam indígenas. Com muita freqüência, confundem-se disputas territoriais com ilícitos penais e as questões de competência postergam indefinidamente as decisões. Uma unidade especial do Ministério Público Federal, a Coordenadoria da Defesa dos Direitos e Interesses das Populações Indígenas, é responsável pela defesa de suas comunidades. Quanto à tarefa legislativa sobre direitos indígenas, esta é da competência do Congresso Nacional, inclusive no tocante a decisões sensitivas como a de autorizar a exploração de recursos naturais de áreas indígenas. Não obstante, em muitos casos, decisões de Assembléias Legislativas estaduais referentes, por exemplo, à criação de novos Municípios que se inserem em áreas indígenas, são conflitantes com essa competência e invadem a competência privativa federal estabelecida na Constituição.
Regulamentação dos direitos dos índios
9. Muitos desses direitos constitucionais dependem de regulamentação. Atualmente, permanece em vigor o Estatuto do Índio (Lei 6.001, de 1973) que segue os preceitos integracionistas da antiga Convenção 107 da OIT, e o Código Civil Brasileiro de 1916, além de outros instrumentos jurídicos específicos como, por exemplo, a lei e o decreto referentes à demarcação de terras indígenas.
10. O Estatuto do Índio estabelece, em seu Artigo 3º, que é "índio ou silvícola todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional".
11. Os indígenas estão classificados pelo Código Civil Brasileiro, de acordo com o seu grau de aculturação, em silvícolas ou adaptados. Os "silvícolas" estão incluídos na categoria dos "relativamente incapazes, juntamente com o grupo de maiores de 16 e menores de 21 anos (CCB, Art. 6º). De acordo com a doutrina, essa incapacidade relativa deveria ser uma proteção e não uma restrição. Essa incapacidade legal não impede que eles possuam os direitos comuns, de propriedade, reunião, trânsito, etc.; e eles estão protegidos por presunção da lei. Tal incapacidade se extingue na medida em que os índios "silvícolas" se adaptam à "civilização do País".
12. O Estatuto do Índio, que regula essa incapacidade (Lei 60.001, de 1973), considera que os índios estão 'integrados' quando são incorporados à comunidade nacional e reconhecidos como em pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem os usos, costumes e tradições característicos da sua cultura. Nesse caso, cessa a sua capacidade relativa como "silvícolas".
13. Além disso, o Estatuto, em seu Art. 4º, subdivide os indígenas em "isolados", "em vias de integração" e "integrados". Todos os indígenas, tanto individualmente como comunidades ou como organizações, podem ser partes em juízos em defesa dos seus direitos e interesses, cabendo ao Ministério Público intervir, em todos os casos, em caráter tutelar. A FUNAI exerce, por lei, a representação total dos "silvícolas".
14. O Estatuto do Índio inclui disposições que visam a fazer respeitar os valores, usos e costumes indígenas. O Estatuto indica, por exemplo, que a assistência aos menores para fins educacionais deve ser prestada, quando possível, sem separá-los da sua convivência familiar ou tribal. Estabelece, igualmente, que é crime contra a cultura indígena utilizar o índio ou a comunidade indígena como objeto de propaganda turística ou de exibição com finalidade de lucro (EI:art. 58,II).
15. No processo de integração do índio, corresponde à União, aos Estados e aos Municípios, bem como a outros órgãos, respeitar a comunidade nacional, a coesão das comunidades indígenas, seus valores culturais, tradições, usos e costumes (EI:Art.2,VI). O Estatuto dispõe, igualmente, que se deve garantir aos índios a permanência voluntária no seu habitat próprio, provendo-os de recursos para seu desenvolvimento e progresso (EI:Art.2, V). Também é crime contra a cultura indígena ridicularizar uma cerimônia, rito, uso costume ou cultura tradicional indígena, vilipendiá-la e perturbar, de qualquer forma, a sua prática (EI:Art.58,I).
16. O Estatuto do Índio de 1973, contudo, tal como se encontra, contraria o estabelecido na Constituição de 1988, em muitos dos seus dispositivos. O principal contraste está em que hoje não existe mais a perspectiva integracionista que é o espírito do Estatuto de 1973.Foi uma grande conquista dos índios e organizações que os apoiam, que a Constituição de 1988 abolisse a idéia de que os índios devem ser assimilados culturalmente. Atualmente está em trâmite no Congresso Nacional, um projeto de lei, o Estatuto das Sociedades Indígenas, que regulamenta as relações do índio com a sociedade nacional, de acordo com o estabelecido na Constituição.
B. A INTERVENÇÃO FEDERAL EM RELAÇÃO AO ÍNDIO. A FUNAI
17. O Estado brasileiro realiza numerosas ações de defesa e promoção dos indígenas e de seus direitos. O principal órgão nesse campo é a Fundação Nacional para o Índio (FUNAI), que detém jurisdição tutelar sobre as áreas indígenas, mantém postos de saúde e educação nas áreas indígenas e intervém nos processos judiciais em que esteja envolvido um índio ou uma comunidade indígena.
18. A FUNAI também é o organismo técnico central no processo de demarcação de terras indígenas e de mobilização de outros órgãos para o cumprimento das responsabilidades do Governo brasileiro em relação aos povos indígenas.
19. Em 1996, a Administração federal do Presidente Fernando Henrique Cardoso adotou uma importante iniciativa educacional visando acabar com os preconceitos e o racismo e a fazer com que a história e a cultura dos povos indígenas fossem corretamente tratadas e apresentadas. Com o apoio do Ministério da Educação, através da Comissão de Educação Escolar Indígena, iniciou-se um programa de promoção e divulgação de material didático e pedagógico de nível elementar, secundário e superior, para todos os estudantes brasileiros desses respectivos níveis, destinado a desenvolver uma apreciação adequada e a divulgar conhecimentos a respeito dos povos indígenas brasileiros.
C. OS DIREITOS SÓCIO-ECONÔMICOS E CULTURAIS DOS POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS
20. Os indígenas brasileiros estão passando por um momento crucial em suas relações com o mundo moderno e com o sistema econômico global. Além dos problemas legais, políticos e de terras com que se defrontam, sua situação de saúde e nutrição é deficitária.
21. Em novembro de 1995, O Instituto de Estudos Sócio-Econômicos, o Museu Nacional da Bahia e o Banco do Nordeste produziram o "Mapa da Fome entre os Povos Indígenas", cuja publicação foi apresentada em audiência pública perante autoridades da Câmara dos Deputados. O estudo baseou-se num levantamento de 297 áreas indígenas, que abrangiam uma população de 311.000 índios. O estudo inclui, entre outras áreas, os Estados de Rondônia e do Maranhão, o sul do Pará, a área de influência da Rodovia Transamazônica, a Hidrelétrica de Tucuruí e o Projeto Grande Carajás.
22. De acordo com esse estudo, a situação das comunidades indígenas em matéria de saúde, alimentação e educação e especialmente a situação imobiliária, é grave. Em 198 das 297 áreas estudadas, constataram-se problemas de sustento alimentar. Desses 198 áreas, 102 estavam legalmente regularizadas, 15 homologadas, 30 delimitadas e 25 identificadas. Quase todas têm problemas de invasão, destruição do meio ambiente, como poluição causada por restos de mercúrio utilizado por garimpeiros, exploração ilegal de madeira e da agropecuária e terras de tamanho insuficiente para prover o sustento.
23. A expectativa de vida dos índios brasileiros é de 45,6 anos, menor do que a da média da população. Isto representa um agravamento em relação à taxa correspondente a 1993, que foi de 48,3 anos, e reflete um aumento de doenças infecciosas. No Estado do Mato Grosso, a expectativa média de vida do indio baixou ainda mais, e agora é de 38 anos. Um relatório da FUNAI citado nesse estudo indica que, no período 1993-1994, a principal causa de morte (22.3%) foi a falta de assistência médica a pacientes de doenças previsíveis e curáveis, especialmente entre crianças.
24. Ainda existem grupos isolados de indígenas no Brasil, com os quais não se manteve contato. Em setembro de 1995, um especialista vinculado a um grande empréstimo internacional para "o desenvolvimento de recursos naturais" em Rondônia indicou a funcionários governamentais que não existiam grupos indígenas não contactados em Rondônia. Dois dias mais tarde, um técnico da FUNAI estabeleceu contato com 11 sobreviventes de duas aldeias de canoés e Mequéns. Segundo a informação dos índios, nos últimos 10 anos os criadores da região haviam eliminado a maior parte de ambos os grupos e destruído suas fontes naturais de subsistência na selva, a fim de abrir terreno para a pecuária. Há evidências de que ainda existem cerca de 22 localizações de grupos indígenas isolados no Brasil. Embora a maioria deles esteja em áreas já declaradas indígenas, outros parecem estar em situação semelhante a dos mencionados Canoés e Mequéns.
D. AS TERRAS INDÍGENAS
Regime jurídico: o status do direitos indígena sobre suas terras
25. As áreas indígenas do Brasil são bens da União, tal como expressamente determinado na Constituição Federal (CF Art. 20,XI). Por essa razão estão sujeitas à competência da justiça federal. Ao mesmo tempo, a Constituição reconhece o conceito de "originalidade" dos direitos dos índios em relação às terras que ocupam, ou seja, que os direitos não nascem de um ato de outorga do Estado e sim, das circunstâncias históricas de ocupação original e utilização ancestral. A Constituição também reconhece que cabe aos índios a posse permanente das terras que ocupam por tradição e o usufruto exclusivo do solo, dos rios e dos lagos, bem como a participação nos benefícios da sua exploração das riquezas do subsolo, riquezas hídricas, e energéticas.
26. As áreas indígenas podem ser assim classificadas: as de que eles são usufrutuários (áreas "ocupadas" e áreas "reservadas") e as de que são legítimos proprietários, ou seja, as que são de propriedade integral do índio ou da comunidade indígena.
27. O Estatuto do Índio (art. 17) assinala que são áreas indígenas 1) as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas; 2) as áreas reservadas; e 3) as áreas de domínio das comunidades indígenas ou silvícolas.
O processo de reivindicação de terras. Antecedentes históricos
28. A grande expansão populacional e econômica para ocupar o território central e amazônico do Brasil, iniciada na década de 50 e acelerada nas décadas de 60 e 70 exerceu duas grandes conseqüências sobre a vida dos indígenas. Por um lado, gerou um esforço no sentido de esclarecer a condição jurídica das terras do interior do país, cujo status era confuso ou ambíguo, decorrente dos requisitos de segurança jurídica de uma economia agrária moderna, o que resultou na intensificação do processo de demarcação e titulação de áreas indígenas. Por outro lado, levou à introdução, nessas áreas, de novos grupos populacionais não-indígenas, que destruíram a antiga ecologia para implantar a agricultura, a pecuária e outras explorações, e devastaram o habitat e, em certos casos a própria vida de muitas comunidades indígenas.
A situação atual
29. Os 94.600.000 hectares quadrados (946.000 km2) de terras indígenas no Brasil, em sua maioria na Amazônia, abrangem uma áreas três vezes maior do que todos os demais tipos de terras protegidas não-indígenas (parques, matas nacionais e reservas extrativas).
30. No momento, existem 205 áreas indígenas registradas como tais nos cadastros gerais ou especiais (Serviço do Patrimônio da União), abrangendo cerca de 30 milhões de ha. Essas áreas são de propriedade integral juridicamente reconhecida. Existem outras 261 áreas com certo nível de reconhecimento jurídico, abrangendo 32 milhões de ha. Isso implica um progresso jurídico/administrativo de reconhecimento que é significante, já que, em 1967, ano de fundação da FUNAI, apenas 10% dessas terras haviam recebido algum grau de reconhecimento como terra indígena.
31. Atualmente, em julho de 1997, cerca de 123 áreas indígenas estão em processo de demarcação, que consiste na identificação da área pela FUNAI, no estabelecimento de seus limites mediante portaria do Ministério da Justiça, na demarcação física, na ratificação por decreto presidencial e no seu registro no cadastro imobiliário. O processo de demarcação de terras está quase concluído, já que as terras ainda sem reconhecimento mínimo representam uma extensão equivalente a 10% das já reconhecidas, quer em processo de demarcação quer já demarcadas ou registradas.
32. Entre 1990 e 1995, a superfície de área indígena com documentação legal concluída quadruplicou, indicando não apenas a crescente capacidade política das organizações pró-indígenas, como também uma vontade real do Estado em reconhecer esses direitos.
33. Entretanto, na realidade, a demarcação e o registro legal das terras indígenas constituem apenas um passo inicial no seu estabelecimento e na sua defesa real. Essa propriedade e posse efetiva vê-se continuamente ameaçada, usurpada ou reduzida por diferentes causas. Em primeiro lugar, pelas invasões e intrusões ilegais para extração de madeira, a mineração e a agricultura ou para assentamentos de núcleos não-indígenas. Juntem-se a isto os ataques judiciais e políticos à estabilidade dos direitos já estabelecidos ou ao seu processo de consolidação. Citem-se, finalmente, as decisões no sentido de estabelecer infra-estruturas rodoviárias, energéticas ou de obras públicas, sem o devido acordo das populações indígenas afetadas.
34. A partir de 1993, os tribunais, principalmente no Sul e no Noroeste, começaram a proferir decisões contrárias aos direitos dos indígenas. A primeira sentença desse tipo foi emitida em relação às terras dos Jacarés, em São Domingos, Estado da Paraíba, que foram adjudicadas a um proprietário não-indígena que apresentou títulos registrados no início do século. Caso semelhante ocorre em relação às terras dos Guaranis, no Sul, cuja posse foi contestada em juízo por proprietários com escrituras outorgadas neste século.
35. A estratégia legal dos terceiros ocupantes foi contestar o Decreto 22/91, que estabelecia os procedimentos de demarcação e registro de terras indígenas, sob a alegação de que este não outorgaria direito de defesa a possíveis ocupantes ou titulares de direitos em face de atos administrativos de governo que reconheciam os direitos dos índios. O direito de revisão dos atos administrativos do Estado está consagrado na Constituição Federal.
36. A fim de neutralizar esse possível desafio legal, o Governo emitiu o Decreto 1775/96, que estabelece um procedimento relativamente sumário destinado a evitar um possível obstáculo legal à clareza jurídica dos títulos indígenas. Mediante o Decreto 1775/76, acresceu-se um recurso às normas para a fixação dos direitos indígenas sobre suas terras. Esse recurso habilitou particulares e autoridades governamentais locais ou estaduais a contestar a criação ou demarcação de terras indígenas por meio da apresentação de evidências que negassem a ocupação prévia pelos indígenas ou que demonstrassem direitos de terceiros sobre essas terras. Esse decreto aplica-se a todas as terras, inclusive as que contam com reconhecimento federal e ainda demarcadas, bem como áreas indígenas homologadas por decreto presidencial, excetuando-se apenas as registradas em cartório imobiliário e como patrimônio da União.
37. O Decreto 1775/96 foi denunciado como atentatório a direitos inerentes aos indígenas, cujo reconhecimento vinha sendo por estes reivindicado durante décadas e, em muitos casos, com êxito. Por sua vez, o Ministério da Justiça sustentou que tal recurso era necessário para garantir o devido processo a terceiros e a entidades governamentais, de modo que os reconhecimentos territoriais posteriores em favor dos indígenas gozassem de imunidade em relação a argüições de inconstitucionalidade, dando-se assim transparência ao processo. O Ministério argumentou que, se o Supremo Tribunal considerasse inconstitucional o procedimento do Decreto 22/91 em casos submetidos à sua competência (i. e., o caso dos Jacarés), todas as terras demarcadas, mas não registradas, estariam sujeitas a esse recurso, com o conseqüente risco para os indígenas. Fontes governamentais defenderam o Decreto, explicando que o seu mérito reside na legitimação das áreas demarcadas e ratificadas pelo citado processo, em face de futuras argüições de inconstitucionalidade dessa demarcação, ajuizadas por terceiros, sob a alegação de que não se concedeu direito de defesa dos seus alegados direitos de posse.
38. Mais de 545 recursos, referentes a 45 territórios indígenas, foram tempestivamente impetrados antes do prazo de abril de 1996, nos termos do Decreto 1775/96, afetando aproximadamente 35% das terras demarcadas ou em processo de demarcação. O maior número de recursos nos termos do Decreto 1775/95 ocorreu no Estado de Roraima. Somente em relação às terras indígenas de São Marcos, impetraram-se 573 recursos. A própria Assembléia Legislativa de Roraima ofereceu assistência jurídica gratuita aos reclamantes, e o Estado apresentou seu próprio recursos em relação a terras indígenas.
39. Em julho de 1996, a FUNAI concluiu o exame dos recursos e a decisão sobre os seus méritos. A FUNAI comprovou que os recursos abrangiam 42 áreas indígenas distintas e submeteu seu parecer à decisão do Ministro da Justiça, rechaçando a grande maioria das reclamações de não-indígenas. Este endossou os pareceres da FUNAI referentes a 34 das 42 áreas questionadas e devolveu, para fins de nova análise, os expedientes relativos a oito áreas, entre as quais as dos Macuxí, em Roraima.
E. DIFICULDADES DE RECONHECIMENTO E CONSOLIDAÇÃO DAS ÁREAS INDÍGENAS
40. Os obstáculos que dificultam a firme aplicação dos preceitos constitucionais e legais referentes a terras indígenas possuem diferentes formas.
41. Além das dificuldades já assinaladas, cumpre destacar ainda outras: a criação de novos municípios em áreas indígenas, mediante decisões estaduais; as dificuldades legais para reaver terras ocupadas ilegalmente por terceiros; e a introdução de infra-estrutura (estradas, barragens) que destróem e agridem a integridade física e cultural das áreas indígenas.
A municipalização de terras indígenas
42. Um novo problema, que se superpõe à falta de demarcação e às invasões de terras indígenas, é o da criação da sede dos municípios total ou parcialmente inseridos em terras reclamadas e/ou demarcadas como áreas indígenas. Estabelece-se, assim, uma nova jurisdição que não apenas erode a limitada soberania indígena reconhecida pela Constituição, como também faz surgir uma fonte de atritos entre as autoridades indígenas e as municipais, já que estas últimas dependem do sistema político estadual. Exemplo desses atritos é a criação da sede de dois municípios nas áreas de Raposa/Serra do Sol e São Marcos no Estado do Roraima.
43. Essa forma de criação de municípios atua, na verdade, como instrumento de divisão entre os povos indígenas locais, já que o processo serve para atrair ou subornar algum líder local para que participe do governo municipal, desprezando-se a estrutura interna de governo indígena e provocando uma cisão. A estrutura municipal e suas relações de poder também tendem a favorecer a instalação, nessas áreas, de pessoas não-indígenas e de autoridades e serviços públicos que competem com os proporcionados ou aceitos pelos líderes indígenas.
As dificuldades legais para o despejo de ocupantes intrusos
44. Na maioria das áreas indígenas, instalaram-se ilegalmente ou continuam a instalar-se intrusos, quer para se dedicar à pecuária ou à agricultura, quer para explorar recursos naturais. Estas intrusões contam com o apoio e a conivência de autoridades civis ou policiais locais e, além de resultarem em ocupação e uso ilegais de terras, são fontes de conflitos e confrontações armadas.
45. Um caso típico é o dos Xucuru de Orugaba, no município de Pesqueira, situado a 220 km de Recife, Estado de Pernambuco. Há mais de um século, segundo a tradição local, os Xucurus aceitaram seu engajamento no Exército brasileiro para lutar na Guerra do Paraguai em troca do reconhecimento de suas terras, que nunca se concretizou. Finalmente, em 1992, o Presidente Itamar Franco assinou a Resolução que reconheceu o estudo da FUNAI, de acordo com o qual esses indígenas tinham direito a 26 980 ha de terras ancestrais, o que corresponde a um quinto das terras que possuíam antes da conquista. Desses 26 980 ha reconhecidos, a ocupação de fato dos indígenas chega a 12% da área, já que o restante é ocupado por 281 fazendas e madeireiras que, por sua vez, utilizam mão-de-obra indígena. Há aproximadamente 6.000 Xucurus. A demarcação das terras está sendo realizada pela FUNAI, em meio a um clima de insegurança geral e com um mínimo de recursos.
46. Outro caso que exemplifica as dificuldades legais para garantir a propriedade indígena é o dos Guarani-Kiowa, um agrupamento de 26.000 índios organizados em duas grandes comunidades no Estado de Mato Grosso do Sul. O Estado reconheceu 22 áreas, no total de 40.000 ha, como de propriedade dos Guarani. Essas áreas estão superpovoadas e têm servido de cenário para contínuos episódios de suicídio cujo total, em 1995, foi duas vezes superior ao do ano precedente e que, em proporção, são 30 vezes maiores do que a média de suicídios entre a população brasileira. São fatores centrais para esse fenômeno as ações de particulares, que obtêm apoio judicial para suas reivindicações de escrituração de terras, pese o fato de a Constituição de 1988 dispor que os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse de terras indígenas "são nulos e extintos". A insegurança jurídica gerada por essa situação é agravada pelos despejos com uso de violência, quando os índios reocupam terras que foram reconhecidas como suas.
A introdução de infra-estrutura física
47. Durante a sua visita, a Comissão ouviu continuas reclamações a respeito da construção e penetração de rodovias locais, nacionais e internacionais em áreas indígenas. A reclamação central sustenta que a construção e a existência dessas estradas servem para introduzir doenças e facilitar a chegada de intrusos nas áreas indígenas, com as conseqüências negativas sobre a sobrevivência cultural e física dos índios. Durante a sua permanência no Brasil, a Comissão recebeu informações sobre um conflito ligado à construção da BR-174, no Estado do Amazonas. Naquela área, o Corpo de Engenharia e Construção que estava asfaltando a estrada suspendeu as obras no trecho de 47 km que atravessa a reserva indígena dos Waimiri Atroari até que os índios, a FUNAI e o Governo do Amazonas chegassem a um acordo.
F. A SITUAÇÃO DOS MACUXÍS EM RORAIMA
48. A Comissão teve a oportunidade de visitar as comunidades da área de Raposa/Serra do Sol, no norte do Estado de Roraima. Vivem nessas comunidades cerca de 12 000 pessoas, em 97 aldeias distribuídas por uma área de 1.678.000 ha. que se estendem até a fronteira com a Guiana e Venezuela. Segundo denúncias dos líderes Macuxi, nos últimos anos em conseqüência dos esforços dessas comunidades no sentido de que as suas terras fossem demarcadas, bem como da sua oposição à entrada de não-indígenas, fazendeiros locais teriam desencadeado uma campanha de terror, com o apoio da polícia e de autoridades estaduais. Os ataques denunciados incluem não apenas despejos ilegais e violentos de indígenas que ocupam terras ancestrais, mas também homicídios, torturas, violações e castigos, que em geral não são investigados nem tao pouco processados. As terras ancestrais dos Macuxi, Ingaricós, Wpixanas, Taurepangues e Patamonas foram identificadas pela FUNAI em maio de 1993 (Despacho N.º 9, publicado no Diário Oficial da União em 21 de maio de 1993). Essa identificação coincide com o consenso dos índios a respeito das terras que ocupam.
49. O Governo de Roraima, apesar de ter participado do grupo de identificação da FUNAI, formulou protesto contra a mesma junto ao Ministério da Justiça. Após considerarem o protesto, a Procuradoria Geral da República e a FUNAI decidiram manter a demarcação tal como fora realizada.
50. A demarcação também foi enviada ao Ministro Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, que opinou contra a mesma por entender que "os habitantes dessas áreas de fronteira devem ter uma consciência cívica ainda maior do que a dos demais brasileiros e, além disso, um sentimento patriótico mais arraigado" (Aviso N.º 03157-EMFA) e que, portanto, os indígenas não se qualificavam em relação a essa consciência de sentimento patriótico. Essa justificação esdrúxula das Forças Armadas estabelece uma gradação em matéria de liberdade de pensamento que viola a igualdade de todos os cidadãos, já que deixa de ser exigida aos habitantes não-indígenas de outras zonas de fronteira, em relação aos seus títulos de propriedade. Por outro lado, a Comissão, em suas visitas e suas prolongadas conversações com os líderes Macuxis e Yanomamis, pôde comprovar a sua autopercepção como brasileiros e o seu interesse em consolidar ao máximo essa nacionalidade.
51. A citada opinião das Forças Armadas levou o Ministro da Justiça a encaminhar o processo à Advocacia Geral da União, a qual, por sua vez, entendeu que deveria encaminhá-lo aos ministérios militares, ao Ministério das Relações Exteriores e à Secretaria de Planejamento. Decorridos dois anos de trâmite administrativo, o Ministério da Justiça ainda não havia assinado a Portaria de Demarcação. Atualmente, essa demarcação deve ser efetuada dentro do prazo previsto no novo Decreto 1775/96 para reclamações de supostos ocupantes não-indígenas. Foram apresentadas 46 contestações, de fazendeiros, de uma mineradora e do governo do estado. Em dezembro de1996 cedendo a pressões dos políticos do estado de Roraima, o Ministro da Justiça determinou à FUNAI que diminuísse a terra indígena, não reconhecendo como posse permanente dos índios cinco vilas de garimpo, fazendas com título expedido pelo INCRA( Órgão Fundiário Federal) a partir de 1980, e estradas que cortam as terras indígenas, reduzindo cerca de 20% da área e afetando diretamente 20 aldeias. Esta decisão provocou vários protestos, confirmou os temores dos que são contrários ao decreto 1.775/96, de que o decreto permite demarcar terra indígena em base a critérios políticos e não técnicos , e, por fim, ainda não é definitiva , pois a portaria de Demarcação ainda não foi assinada.
52. Segundo informação em poder da CIDH, existem dentro da área identificada como terra Macuxí cerca de 1 500 garimpeiros e 100 fazendeiros, alguns destes últimos lá estabelecidos desde o começo do século. Em geral, os conflitos têm sua origem em disputas entre índios e não-índios, pelo uso de recursos naturais (rios, lagos, pastagens, igarapés, buritizais e outros). Nos últimos sete anos, 12 índios de Raposa/Serra do Sol foram assassinados em razão desses conflitos.
53. De acordo com um documento apresentado à delegação da CIDH, contendo 450 assinaturas de membros dessas comunidades reunidos em assembléia geral em Matucurá, em 3 de dezembro de 1995, os intrusos apresentaram-se como amigos dos indígenas e declararam inicialmente que sua única intenção era criar gado; contudo, não tardaram a desfechar ataques contra os índios, impedindo-os de criar, pescar e caçar onde o faziam tradicionalmente. Além disso, os intrusos demoliram as casas e arrasaram os cultivos indígenas. Por sua vez, os garimpeiros trouxeram para a área indígena doenças, o alcoolismo, a prostituição, a destruição do meio ambiente e a contaminação dos rios.
54. A partir de 1993, com a intensificação da atividade da FUNAI e das comunidades indígenas, 62 das fazendas foram abandonadas por seus posseiros. Correlativamente, aumentou de 85 para 95 o número de aldeias de índios nessa área.
55. Em agosto de 1993, os habitantes da aldeia de Matucurá, com o apoio de outras aldeias da região das serras, organizaram um bloqueio a fim de impedir o acesso de veículos que transportavam combustível e alimentos para os garimpos do rio Maún, distantes três quilômetros da aldeia. O bloqueio prolongou-se por mais de um mês, fazendo com que 240 garimpeiros, que causavam grandes danos à população de Maturucá, abandonassem o lugar. Contudo, alguns garimpeiros continuam a explorar outros locais.
56. Em março de 1994, as comunidades indígenas organizaram um bloqueio para impedir a continuação do garimpo ilegal praticado nos rios Mau, Cocingo e Quino, localizados na zona de Raposa/Serra do Sol. Embora tenha atraído a atenção pública, o bloqueio não alcançou o seu propósito de expulsar os garimpeiros.
57. Existem pelo menos denúncias a respeito de 31 índios assassinados em Roraima de 1988 a 1994. Na área de Raposa/Serra do Sol, ocorreram 12 homicídios de Macuxis nesse período. Umdos processados, já julgado foi absolvido por haver agido supostamente em legítima defesa, em que pese ter sido provado que disparou um tiro na nuca de um dos índios. O Conselho Indígena de Roraima estima que, de 1991 a 1994, ocorreram pelo menos seis tentativas de homicídio, oito violações, 15 maus tratos físicos e sete ameaças de morte contra índios. Agentes policiais foram implicados em dez desses crimes. Dois índios morreram sob custódia policial: um, depois de haver sofrido maus tratos, e o outro alvejado na cabeça por um policial.
58. Em 1988, o índio macuxi Donaldo William foi assassinado a tiros na maloca de Canawapai. Em 1990, na maloca de Santa Cruz, dois índios, Damião Mendes e Mário Davis, foram assassinados e o homicida absolvido. No processo contra vários policiais pela morte de Ovelário Tames, um menor macuxi, ocorrido em 1989, o processo continua à espera de instrução há seis anos. Somente depois de cinco anos o principal acusado foi intimado em juízo. O júri desses casos penais é formado por não-indígenas, que habitualmente decidem pela inocência dos réus acusados de homicídio de indígenas.
59. Em fins de 1994, o Governo do Estado deu início à execução das obras de uma central hidroelétrica no centro da área indígena Macuxé. Várias comunidades Macuxés foram violentamente desalojadas pela polícia, o que despertou grande atenção entre o público. Em conseqüência desses fatos, o Departamento de Água e Energia Elétrica (federal) determinou a suspensão das obras até que o Congresso Nacional as autorizasse, tal como previsto na Constituição, por se tratar de terra indígena.
60. Cumpre observar que, dos 215.000 habitantes do Estado de Roraima, (IBGE 1991), 140.000 residem em Boa Vista, a capital, e aproximadamente metade dos outros 75.000 habitantes são índios. O Estado abrange 23 milhões de ha, e o total ocupado por povos indígenas corresponde a 42% da superfície do Estado.
61. As comunidades indígenas de Raposa/Serra do Sol estão desenvolvendo atividades agrícolas apropriadas às terras que possuem. Criam cerca de 10.000 cabeças de gado e cultivam a terra. Existem professores índios em quase todas as 95 aldeias da área, algumas delas atendidas pela Secretaria Estadual de Educação. A Assembléia de Líderes indicou à CIDH que necessita de serviços de educação, saúde e transportes, e que está interessada em desenvolver suas comunidades e participar ativamente do desenvolvimento geral do Estado de Roraima.
62. A Comissão também foi informada de que, embora seja unânime a opinião dos Macuxés e de outros povos da área de Raposa/Serra do Sol a respeito da necessidade de completar a demarcação de suas terras, uma percentagem prefere que estas não sejam demarcadas de forma contínua, mas como blocos descontínuos. Desta maneira, as "ilhas" indígenas ficariam cercadas por áreas não-indígenas, reduzindo-se sensivelmente a sua superfície total e fragmentando-se a continuidade físico-cultural desses povos. Essa posição favorável ao reconhecimento de áreas menores e descontínuas foi apresentada à delegação da CIDH pelo Governador de Roraima e coincide com a opinião do líder de uma aldeia contao e presidente da Sociedade Indígena do Norte de Roraima, em depoimento prestado a uma comissão da Câmara de Deputados. A Assembléia de Líderes e o Conselho Indígena de Roraima sustentam, porém, que tais declarações se devem a tentativas de dividir a liderança indígena por meio de embustes e de ofertas de compensação material.
G. OS YANOMAMIS. A FRAGILIDADE DA SUA CULTURA E CONDIÇÕES DE SOBREVIVÊNCIA FÍSICA E CULTURAL
Situação geral
63. Os Yanomami e sua luta pela sobrevivência individual e como povo exemplificam os problemas sofridos pelos povos indígenas tropicais silvícolas na defesa nacional e internacional dos seus direitos. Os Yanomanis, que habitam por pelo menos 2000 anos a área adjacente ao rio Orinoco no que hoje são a Venezuela e o Brasil, somam, no Brasil, cerca de 10.000 pessoas, agrupadas em 150 comunidades. Essas comunidades são autônomas entre si e não possuem uma estrutura única de governo, mantendo uma relativa estabilidade econômica de auto-suficiência e relação com o seu meio ambiente. Ao mesmo tempo, uma crescente comunicação entre as aldeias indígenas e os usos tradicionais da terra têm possibilitado a sobrevivência física e cultural dos Yanomani, assim como a proteção da ecologia. Essa estabilidade dos Yanomani está ameaçada pela sucessiva penetração de instituições estranhas, algumas delas ilegais, como os garimpeiros, que prejudicam suas vidas, sua sobrevivência, sua cultura e o meio ambiente.
64. Os Yanomami ocupam, no Brasil, uma área indígena de 9,4 milhões de hectares de matas tropicais nos Estados de Roraima e do Amazonas, que já foi demarcada e definitivamente homologada. Embora continua a ser invadida incessantemente por garimpeiros.
65. Para compreender a frágil situação dos direitos humanos dos Yanomami no Brasil, é importante recordar fenômenos relativamente recentes que resultaram na perda de um significativo número de vidas. Entre 1974 e 1976 iniciou-se a construção da rodovia Perimetral Norte, para o transporte de minerais. A rodovia chegou a penetrar 225 km na área Yanomami; devido ao fato de os operários da empresa construtora não estarem vacinados e de não terem sido fornecidas vacinas aos indígenas, a população Yanomami de 13 aldeias ao longo dos primeiros quilômetros de construção foi assolada por epidemias que resultaram na morte de um em cada quatro índios. A incidência de conflitos entre colonos e indígenas intensificou-se, resultando num número desconhecido de mortes.
66. Sucessivas descobertas de jazidas de minerais valiosos e tentativas de exploração, principalmente por garimpeiros exploradores de ouro e minerais preciosos, por sua vez financiados, abastecidos e politicamente apoiados por grupos de capacidade financeira e peso político na região, introduziram novas doenças, entre as quais de malária, a tuberculose, a varíola e outras infeções contra as quais os índios não tinham defesa genética desenvolvida. Em 1976, o Ministério do Interior determinou a remoção dos mineiros. Segundo as estimativas, as doenças introduzidas pelos garimpeiros vitimaram, na época, 15% da população Yanomami (cerca de 1.500 pessoas). Entre outras doenças introduzidas, hoje a malária infecta 40% da população.
67. Em dezembro de 1980, a Comissão recebeu denúncia de atos tais como a construção de estradas, a concessão de licenças de mineração, a falta de vacinação dos indígenas e tentativas de redução do direito às suas terras por meio de medidas governamentais, tudo isso em transgressão aos direitos dos indígenas garantidos pela Convenção Interamericana. Após diversos trâmites processuais, incluindo audiências com peritos e representantes governamentais, a Comissão emitiu, em 5 de março de 1985, uma resolução em que assinalava a ocorrência de graves violações dos direitos humanos dos Yanomamis, especialmente na época da construção da Perimetral Norte. A resolução também reconhecia as importantes medidas adotadas nos últimos anos pelo Governo do Brasil, especialmente a partir de 1983, no sentido de proteger a vida, a segurança e a saúde dos índios Yanomamis. A resolução também recomendava o prosseguimento das medidas preventivas e curativas em benefício dos índios; a demarcação das fronteiras do Parque Yanomami; e a realização de consultas com pessoal científico, médico e antropológico para o desenho de programas de assistência a esses índios (CIDH, Relatório Anual, 1985, pp. 24-34).
68. De 1987 a 1990, no contexto da implementação do Projeto Calha Norte, o território amazônico ancestral dos Yanomanis, que era de 9,5 milhões de hectares, sofreu uma redução de 70% e foi dividido em 19 territórios isolados entre si. Dois terços do território original foram abertos à exploração mineira, especialmente de ouro. Os garimpeiros penetraram aos milhares no território Yanomami. Em 1987, segundo as estimativas, havia 45 000 garimpeiros naquela área.
69. A partir de 1988, os tribunais federais decidiram favorecer, em diversos casos, os direitos dos Yanomami. Em primeiro lugar, anularam a desintegração da sua área contínua em "reservas" separadas ("arquipélagos"). Os tribunais também se pronunciaram a favor do direito deste e de outros grupos, de que seus territórios não sejam objeto de usurpação por garimpeiros e madeireiros ilegais, e determinaram a adoção de medidas para desalojá-los.
70. A partir da consagração dos direitos dos índios na Constituição de 1988, os órgãos federais começaram a controlar intrusão nessa área e, no início dos anos 90, reduziram a uns poucos milhares o número de intrusos.
71. Em anos subseqüentes, a Comissão foi informada de que as recomendações que formulara em 1985 haviam sido implementadas e que, fundamentalmente, a demarcação e homologação definitiva da área Yanomami fora completada. Na sua visita, a Comissão pôde comprovar a existência de postos de saúde e de vigilância de órgãos federais na área indígena, bem como a eficiente ação de proteção do território e defesa contra incursões clandestinas de garimpeiros que vinha sendo desenvolvida pela Polícia Federal.
72. Em sua visita de dezembro de 1995, a Comissão ouviu depoimentos coincidentes de distintas fontes, inclusive de agentes estaduais, segundo os quais o número de garimpeiros era inferior a 330 na área Yanomami brasileira, existindo um número indeterminado de garimpeiros em território Yanomami venezuelano, em sua maioria brasileiros, abastecidos a partir do Estado de Roraima.
73. Contudo, a vigilância do território Yanomami exercida pela FUNAI e por órgãos federais sofre contínuos percalços. No começo de março de 1996, a vigilância da Polícia Federal com o uso de helicópteros foi suspensa; no dia seguinte, aviões voltaram a introduzir garimpeiros e maquinaria naquela área. Segundo os cálculos, existem atualmente cerca de 2.000 garimpeiros assentados e 24 pistas clandestinas como resultado dessa operação. No fim de março, autoridades do Ministério da Justiça informaram que seria reiniciada uma campanha de expulsão e vigilância; porém, à época da preparação deste relatório, a campanha não havia sido reiniciada e os intrusos não haviam sido expulsos.
A situação da saúde na área Yanomami. A malária
74. A introdução da novas cepas de malária e outras doenças, especialmente pelos garimpeiros, exerceu efeitos deletérios sobre a situação geral de saúde dos Yanomamis. Entre essas doenças, a mais alastrada é a malária, que dizimou, em conjunto com as doenças do pulmão, importante percentagem de Yanomamis e que, ainda hoje, é epidêmica. Segundo dados oficiais, a incidência de malária entre os Yanomamis aumentou 44% em 1995. Essas cifras coincidem com o crescimento da malária entre a população geral do Estado de Roraima, que foi de 52% no ano citado.
75. Não obstante, na área Yanomami em que está sendo executado um projeto auspiciado pela Comissão Pró-Yanomami, uma organização não-governamental, se logrou que a incidência da malária decline 14% em 1995. Nas comunidades Yanomamis abrangidas por esse projeto, a população aumentou 10,3% nos últimos quatro anos.
76. A Comissão comprovou o interesse das comunidades Yanomanis visitadas em manter suas valores culturais e seu estilo de vida, respeitando por sua vez a sua pertinência para a sociedade brasileira, para a qual estão dispostas a contribuir com seus conhecimentos e exemplos. Recebeu, igualmente, constantes expressões de temor em face da introdução de elementos da vida exterior sem as devidas precauções, dada a fragilidade da sua cultura e da sua situação sanitária.
77. Em particular, os líderes referiram-se à contínua pressão dos garimpeiros, com suas seqüelas de doenças, atritos e envenenamento dos seus cursos d'água. Porém, referiram-se também a construção, dentro de suas terras, de vias de acesso à área Yanomami, fato que, segundo sua experiência, só serve para introduzir doenças, intrusos de todo o tipo (garimpeiros e outros), a extração ilegal de recursos madeireiros e costumes que desorganizam a vida comunitária.
78. Esses perigos concretizaram-se com a suspensão a partir de março de 1996 do uso de helicópteros pela Polícia Federal que protegiam as áreas Yanomamis.
H. VIOLÊNCIA CONTRA OS INDÍGENAS E IMPUNIDADE
79. Em 1993, de acordo com as cifras do CIMI, registraram-se 43 homicídios de indígenas, 32 dos quais cometidos por não-indígenas. Deste grupo, oito foram de autoria de garimpeiros, sete resultaram de conflitos sobre terras, três foram cometidos por madeireiros, um por vingança e três por motivos desconhecidos. De todos esses casos, à junho de 1994 só fora efetuada uma prisão e só foram abertos sete inquéritos policiais. Além disso, registraram-se 85 tentativas de homicídio, sete violações, 29 agressões e 18 detenções ilegais
80. Em 1993, 16 índios Yanomamis foram assassinados por um grupo de garimpeiros em Haximu. Em dezembro de 1996, cinco garimpeiros foram condenados por genocídio, mas apenas um se encontra preso.
81. A Comissão pôde comprovar que nos Estados em que existem grupos indígenas, seus defensores estão permanentemente expostos a ameaças. A respeito, a Comissão recebeu informações de que Paulino Baldassari, da Ordem dos Servos de Maria, defensor dos direitos dos índios, teria sido ameaçado por madeireiros na região de Rio Branco, no Acre, passando a receber proteção do Governo. No Estado do Pará, Humberto Mattle, defensor dos índios e de outros grupos vulneráveis, foi assassinado em 10 de outubro de 1995 em Xingu, Altamira. Segundo informaram os jornais, os assassinos confessaram a autoria do crime ao serem detidos, mas indicaram que seu alvo era outro, já que a intenção era assassinar o Padre Francisco, outro ativo defensor dos indígenas. Algum tempo antes, em meados de 1995, o Bispo Erwin Krautler, ex-presidente do CIMI sofreu atentados e ameaças.
I. CONCLUSÕES
82 Com base no exposto a Comissão conclui que:
a. Os povos indígenas do Brasil na última década obtiveram avanços significativos em relação aos seus direitos, inclusive à demarcação e posse de suas terras; embora sua integridade cultural, física e referente a suas terras sejam continuamente ameaçadas e agredidas tanto por indivíduos, por grupos particulares que atrapalham suas vidas e usurpam suas possessões, bem como por algumas tentativas de autoridades de vários Estados para reduzir seus direitos políticos, civis e econômicos. Embora o Plano Nacional de Direitos Humanos inclua medidas positivas para combater esta situação, informações recebidas em princípios de 1997 mostram que suas medidas ainda não haviam sido significamente implementadas.
b. A situação referente aos cidadãos indígenas do Brasil com relação à saúde, alimentação e acesso a serviços públicos é preocupante. Os índices denotam condições claramente discriminatórias em relação aos padrões e serviços da população em geral.
c. As garantias de segurança que todo o estado deve prover a seus habitantes e que, no caso dos povos indígenas no Brasil requer medidas especiais de proteção, são insuficientes para prevenir e solucionar a permanente usurpação de seus bens e direitos.
d. Foram realizados significativos avanços no reconhecimento, demarcação e outorgamento da posse territorial dos povos indígenas. Apesar disso , há alguns casos, especialmente no Estado de Roraima, onde a Comissão pôde com comprovar a ocorrência de ações estatais que tendem a deteriorar a segurança e vigência dos direitos humanos dos povos indígenas.
e. A procrastinação e dificuldades no reconhecimento da integridade do povo Macuxi e da plena posse de suas terras, assim como a criaçao de municípios que se sobrepõem às mesmas e que debilitam suas autoridades e estruturas tradicionais, denotam a incapacidade do Estado brasileiro para defender estes povos das invasões, abusos de terceiros e de combater as pressões políticas e de policiais estaduais para reduzir sua plena segurança e gozo de direito.
f. O povo Yanomami obteve o reconhecimento pleno de seu direito à posse de suas terras. sua integridade tanto como povo e como pessoa é continuamente agredida por garimpeiros invasores bem como pela poluição ambiental que estes geram. A proteção do estado contra estas contínuas pressões e invasões, é irregular e fraca, mantendo uma permanente situação de perigo assim como a contínua deterioração de seu habitat.
J. RECOMENDAÇÕES
83. Em consequência a Comissão recomenda:
a. Acelerar e aprofundar o cumprimento dos objetivos de curto e médio prazos estabelecidos no Plano Nacional de Direitos Humanos. Estabelecer procedimentos para promover com plena participação e controle dos povos indígenas interessados e de acordo com suas tradições e autoridades próprias, medidas compensatórias nas áreas de educação e saúde.
b. Dotar a FUNAI de todas as formas de recursos a fim de que possa cumprir sua função, no que diz respeito tanto a completar a demarcação de terras, bem como a prestação de assessoria e defesa legal dos povos indígenas.
c. Paralisar toda decisão de municipalização que atinja terras indígenas, inclusive daquelas em processo de demarcação e homologação; e estabelecer procedimentos que tendem a manter sua integridade e autonomia, de acordo com os preceitos constitucionais vigentes.
d. Completar e homologar legalmente as terras correspondentes os povo Macuxi no Estado de Roraima, com pleno respeito a suas propriedades e suas instituições e costumes ancestrais.
e. Tomar medidas de proteção federal sobre as terras indígenas ameaçadas por invasores, com particular atenção às dos Yanomami e na Amazônia em geral, incluindo o aumento da vigilância, o julgamento e punição severa dos autores materiais e intelectuais de tais delitos, assim como dos agentes estatais cúmplices ativos ou passivos.
NOTAS AO CAPITULO VI
1 A população indígena, que corresponde a 0,2% da população total do Brasil, vive em 546 áreas do país e fala 170 línguas. Após um declínio constante, que chegou a um total mínimo nos anos 70, seu número começou a aumentar. Segundo as cifras do censo especial, a população em 1990 era de 230 000 pessoas, e o seu total de 330 000 em 1995 implica um importante aumento.
2 A primeira organização nacional indígena (UNI) foi criada em 1980 e outras surgiram desde então, assim como surgiram líderes indígenas conhecidos internacionalmente, como Ailton Krenak, Paulo Paiakan e Davi Yanomami. A partir dessa época, intensificou-se a ação de diferentes grupos indígenas e não-indígenas em defesa da sua sobrevivência, seus direitos e seu desenvolvimento. Em 1967 criou-se a FUNAI, órgão governamental encarregado de aplicar as políticas indígenas, que continua a desempenhar papel central em relação à situação dos direitos humanos dos povos indígenas.
3 Os incisos 3 e 4 do Artigo 174 referem-se à atividade de prospeção e extração de ouro e metais preciosos em escala menor (garimpagem), e seu texto é o seguinte:
174....3. O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.
174....4. As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra de recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei [Competência da União].
4 Jornal "A Crítica", Manaus, 19 de novembro de 1995.
5 Estudo do Instituto de Medicina Tropical de Manaus, 1995.
6 Destas, 13 estão identificadas, aguardando portaría declaratótia; 83 estão delimitadas aguardando demarcação física; 13 estão demarcadas, aguardando homologação; e 14 estão homologadas, aguardando registro. Outras 254 terras já estão registradas. Restam por indentificar 179 casos.
7 As 307 reservas indígenas do Brasil (de um total de 554) que ainda estão submetidas ao laborioso processo legal de identificação, demarcação, aprovação e registro são as vulneráveis às reivindicações de proprietários, madeireiros, empresas de mineração e setores políticos que os apoiam.
8 Julio Gaiger, da FUNAI. Citado em "CCPY Update", maio de 1996.
9 Entrevista da Comissão com o Governador de Roraima; apresentação da Assembléia de Líderes; entrevistas com funcionários da FUNAI e com autoridades da Polícia; Federal, Delegacia de Roraima (Dezembro 1995).
10 CIMI, publicado em "Porantim", setembro de 1995.
11 A FUNAI imformou a CIDH que o índice de suicídios entre aqueles indígenas caiu para menos da metade nos primeiros meses de 1997, em comparação com o mesmo período de 1996, o que atribui à implementação de projetos de agricultura e á demarcação de novas terras.
12 A respeito, ver também neste capítulo o caso da represa hidrelétrica na área Macuxé de Raposa/Serra do sol and Northern Roraima from 1988 to 1994." Washington, junho de 1994.
13 Human Rights Watch/Americas: "Brazil. Violence Against the Macuxi and Wapixana Indians in Raposa Serra do sol and Northern Roraima from 1988 to 1994." Washington, junho de 1994.
14 Apresentação à CIDH. Assembléia Geral de líderes da área de Raposa-Serra do Sol, 3 de dezembro de 1995. Em dezembro de 1995, cerca de 15 000 pássaros de diferentes espécies morreram envenenados por pesticidas indiscriminadamente usados, segundo as alegações, em terras indígenas invadidas por um ex-deputado e um grande produtor de arroz da área de Raposa-Terra do Sol. Vários indígenas da aldeia javari distante 5 km do local em que ocorreu a fumigação também resultaram intoxicados e tiveram que ser hospitalizados. Um dos responsáveis pela aplicação ilegal de pesticidas foi detido, mas imediatamente posto em liberdade. A Polícia Federal e o IBAMA apreenderam o avião e os produtos químicos utilizados na fumigação. CIMI Newsletter 191, janeiro de 1996.
15 Human Rights Watch, Violence against Macuxi, Relatório, Washington, D.C., 1994.
16 Apresentação da Assembléia de Líderes à CIDH, dezembro de 1996. Entrevista com o Bispo de Roraima, 5 de dezembro de 1995.
17 Datos para 1991, Instituto Brasileiro de Geografia & Estadistica.
18 Entrevista do Governador de Roraima, Neu De Campos, com a Delegação da CIDH, dezembro de 1995. "O Diário", Boa Vista. Roraima, 7 de dezembro de 1995. Apresentação da Assembléia de Líderes macuxis, aldeia Maturucá, 3 de dezembro de 1995.
19 Entrevista com o Governador Neu De Campos, Boa Vista, 6 de dezembro de 1995.
20 Outros 12.500 yanomamis vivem em áreas indígenas venezuelanas que abrangem cerca de 10 milhões de hectares.
21 A denúncia original foi apresentada pelas seguintes entidades: American Anthropological Association, Anthropology Resource Center, Indian Law Resource Center, Survival International e Survival International USA, esta representando também a Comissão de Cooperação do Parque Yanomami CCPY.
22 CCPY, Update, maio de 1996.
23 Conselho Indígina Missionário (CIMI): "A violência contra os Povos Indígenas no Brasil em 1993". Brasília, 1994.
24 A CIDH tramita um caso sobre esta situação.
25 Publicación "Porantim", setembro de 1995.
CAPÍTULO VII
A PROPRIEDADE DE TERRAS RURAIS E OS DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES RURAIS
A. O DIREITO À PROPRIEDADE DA TERRA NO BRASIL
Antecedentes e situação
1. O Brasil possui um extenso território, com grande capacidade produtiva e de assentamento social; contudo, por razões históricas, a distribuição da propriedade das terras é extremamente desequilibrada, gerando em conseqüência, condições propícias para enfrentamentos sociais e violações de direitos humanos.
2. Autoridades do Ministério do Meio Ambiente assinalaram que o Brasil tem um sistema de distribuição de terras extremamente desigualitário. Aproximadamente 1% da população, ou seja, 1,5 milhões de pessoas, controla 47% de todas as propriedades imobiliárias. Altas autoridades(1) indicaram que existem 120 milhões de hectares de terras cultiváveis não-aproveitadas e, portanto, constitucional mente sujeitos à desapropriação. Em todo o Brasil, existem 10.735 imóveis com mais de 80.000 hectares cada um (ou seja, 20 km x 40 km). Somente em relação aos imóveis com área superior a 50.000 hectares, existem 35 milhões de hectares improdutivos. O Movimento dos Sem Terra (organização não-governamental) assinala que existem 12 milhões de pessoas, ou seja, 4,5 milhões de famílias de agricultores sem terras; o Ministério da Reforma Agrária calcula que 2 milhões de famílias estão nessa situação. O déficit total de emprego urbano e rural no Brasil é de 15 milhões de posições.
3. A situação não é homogênea no vasto território do país. Em geral, no Sul, onde o desenvolvimento econômico é mais avançado, a predominância do latifúndio e de terras improdutivas é muito menor. A maior incidência de latifúndio e de terras improdutivas corresponde à região Amazônica e ao Noroeste.
4. De acordo com um levantamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agraria (INCRA) , somente no Estado de Roraima, em relação a imóveis com área superior a 5.000 hectares, existem 2.394.686 ha de terras improdutivas. No Estado do Pará, existem 265 imóveis com área superior a 10.000 hectares, perfazendo um total de 16.547.651 hectares; destes imóveis, 175 são improdutivos, correspondendo a uma área de 14.552.549 hectares. Nesse Estado do Pará, os imóveis improdutivos abrangem uma extensão quatro vezes e meia maior do que a superfície da Bélgica.(2)
5. Em que pesem a rápida urbanização dos últimos anos e o crescimento do setor industrial como principal atividade econômica, cifras oficiais indicam que um quarto da população economicamente ativa vive da agricultura (14 milhões do total de 62 milhões). Desses 14 milhões, quatro milhões não auferem renda fixa e, em muitos casos são forçados a aceitar condições de emprego inferiores aos padrões mínimos de trabalho ou acabam por unir-se a grupos de inconformados que recorrem a medidas desesperadas para solucionar a questão do acesso à terra.(3)
6. Organizações não-governamentais religiosas(4) assinalam que, em 1995, ocorreram 554 conflitos rurais noticiados, dos quais 440 deveram-se a problemas de terras, 21 a trabalhos forçados e 93 a disputas trabalhistas ligadas ao fenômeno das secas ou à reforma agrária. No total, houve 69 conflitos a mais do que em 1994, envolvendo 3.250.731 pessoas. Em razão desses conflitos, 39 pessoas foram assassinadas ou perderam a vida de forma violenta. Outras fontes (5) indicam que mais de mil trabalhadores morreram na última década em conseqüência de conflitos ligados à reforma agrária e à distribuição de terras.
Antecedentes constitucionais
7. A Constituição Federal incorpora o conceito de reforma agrária e permite a desapropriação, pelo Estado, de terras que não cumpram uma função social. A lei define a unidade produtiva de posse da terra como aquela em que 80% da área é plena e efetivamente utilizada, em que os recursos naturais são adequadamente usados, em que as normas ecológicas e de trabalho são respeitadas e em que o uso se considera de benefício comum de proprietários e trabalhadores. A Constituição prevê a desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, com prévia indenização em dinheiro (CF Art. 5º, XXIV) e autorizando, como exceção constitucional no caso de reforma agrária, a indenização em títulos da dívida agrária (Art. 184), com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até 20 anos, a partir do segundo ano de sua emissão.(6) Em geral, a desapropriação deve referir-se a minifúndios ou latifúndios, já que a própria Constituição considera insuscetíveis de desapropriação a pequena e média propriedade rural(7). A Constituição de 1988 prevê também o reconhecimento da propriedade das terras dos "quilombos", para comunidades negras que se organizaram autônomamente no interior, no século passado.
Ações governamentais
8. O Governo informou a CIDH que "a pesar de condicionantes decorrentes da reforma do Estado e da preservação da estabilidade econômica, o presente governo desapropriou, ate fevereiro de 1997, cerca de 4 milhões e 500 hectares de terras - área mais extensa do que o território da Bélgica - e mantém o objetivo de alcançar a cifra de 14 milhões de hectares de terras desapropriadas". Também remarca que em 1993 transcorriam em media 518 dias entre a desapropriação e o assentamentos e que hoje são 130 dias e a meta é chegar a 80 dias. Junta, ainda, a todos estes esforços a conclusão do Primeiro Censo Nacional da Reforma Agraria.
9. Em dezembro de 1996 foram aprovadas novas leis para estimular o uso racional da terra e incentivar a venda com fins de reforma agraria, de grandes propriedades improdutivas, especialmente através do aumento do imposto de grandes propriedades e a extinção da diferenciação segundo a localização geográfica. O Congresso Nacional aprovou a chamada "Lei do Rito Sumario" que reduz ao mínimo o período de maior incidência de conflitos fundiários a saber, o lapso entre a desapropriação e a emissão de posse.(8) Outras medidas de reforma financeira, como facilitação creditaria e desenvolvimento regional e fundiário tendem segundo o Governo, também a conferir maior fluidez e transparência a reforma agraria, descentralizando sua implementação e desestimulando as invasões.
10. A Comissão deseja ressaltar a aprovação, em fevereiro de 1997, da lei 9437/ que passou a definir como crime, e não mais como contravenção , o porte ilegal de armas; e que permite, em conseqüência, operações de desarmamento em massa no campo, tanto de fazendeiros como de sem terras.
A luta pela reforma agraria e suas vitimas
11. Segundo informações recebidas pela Comissão, o orçamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) foi de 1,25 bilhões de dólares em 1995. Com esses recursos, o INCRA esperava assentar naquele ano, aproximadamente 40.000 famílias. O governo atual indicou que pretende assentar 280.000 famílias durante os quatro anos do seu mandato.
12. Para esse fim, o Governo criou, em maio de 1996, o cargo de Ministro Extraordinário da Reforma Agrária. O Ministério informou à CIDH que mantinha contínuas relações de diálogo com as organizações representantes dos reclamantes de terras, a Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas e o Movimento dos Sem Terra.
13. O plano que o INCRA implementa no momento, outorga um título provisório correspondente às terras distribuídas que serve de base para a obtenção automática de um crédito de U$ 3.000 para alimentação, habitação e plantio iniciais e, no segundo ano, de um crédito de U$ 7.500 por família (ou de U$ 15.000 se a família estiver associada a uma cooperativa), para plantação e equipamento. Amortizados esses créditos, os agricultores obtêm a escritura definitiva de propriedade.
14. Ao mesmo tempo, indicou que a situação agrária é "aguda" e que existem numerosos conflitos e ocupações em agosto de 1996, envolvendo 50.000 famílias de agricultores instaladas em acampamentos precários nas áreas invadidas e enfrentando problemas de saúde, trabalho e educação, e confrontos com proprietários e forças policiais.
15. Tal como mencionado acima, essa situação de tensão entre o panorama real e as disposições constitucionais sustenta um alto grau de instabilidade, verificando-se contínuos enfrentamentos relativos à propriedade e ao usufruto de terras.
16. Em abril de 1996, em Eldorado de Carajás, 650 km ao sul de Belém do Pará, 19 pessoas perderam a vida e 40 resultara feridas em conseqüência de um conflito motivado pela invasão de uma fazenda por agricultores sem terras. Para evitar sua expulsão e chamar a atenção para o seu problema, os agricultores bloquearam um trecho da rodovia PA-150, que une Curionípolis e Marabá. Para fazê-los sair da estrada, a Polícia Militar do Estado, usando táticas de guerra, após disparar para o ar, abriu fogo direto contra os manifestantes e contra aqueles que se encontravam em áreas circundantes. Alguns soldados também foram atacados a pedradas pelos manifestantes, resultando feridos. O Presidente da República reconheceu a tragédia e a responsabilidade policial pelos abusos cometidos e expressou sua indignação com o incidente, condenando as ações deste tipo. Patologistas forenses declararam que dez dos mortos haviam sido executados quando já estavam feridos(9). O Governador do Estado determinou, na mesma noite, a "prisão disciplinar" do Coronel de Polícia que liderou a chacina.
B. DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES RURAIS
Trabalho forçado e servidão
17. Em seu artigo 6, assinala a Convenção Americana sobre Direitos Humanos:
Proibição da escravidão e da servidão
a. Ninguém pode ser submetido a escravidão ou servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.
b. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório....(10)
18. Por sua vez, o Código Penal do Brasil (Art. 149) sanciona a redução de uma pessoa a condições análogas à de escravo com pena de dois a oito anos de prisão; sanciona o aliciamento de trabalhadores com o fim de levá-los para outra localidade do território nacional com pena de dois meses a dois anos de prisão (Art. 207); e sanciona a frustração, mediante fraude ou violência, do gozo de direito assegurado pela legislação do trabalho com pena de multa e prisão (Art. 203).
19. Um renomado sociólogo da Universidade de São Paulo que tem estudado este tema calculou que, em 1993, o número real de vítimas de trabalho forçado (ou em condições de escravidão) era de 60 000(11).
20. Em 1991 a Comissão Pastoral da Terra documentou 27 casos de trabalhos forçados ou semi-forçados, envolvendo 4 883 trabalhadores; 18 casos em 1992, envolvendo 16 442 trabalhadores; 29 casos em 1993, envolvendo 19 940 trabalhadores; e 28 casos em 1994, envolvendo 25 193 trabalhadores. O Governo reconheceu a seriedade do problema, mas não conseguiu, por exemplo, investigar mais do que dois casos, entre mais de dez denunciados em 1995.
21. A forma típica dessa prática de servidão forçada consiste em aliciar os trabalhadores, geralmente em outro Estado onde existam condições de extrema pobreza e desemprego rural, como o Maranhão e Tocantins, e oferecer um salário atraente para trabalhar em outro Estado.
22. Ao chegarem à plantação onde deverão trabalhar, os trabalhadores verificam que já são "devedores" dos empreiteiros, a título de transporte e alimentação durante a viagem, que além disso, também devem pagar as refeições e a habitação no estabelecimento rural e que as condições de trabalho são muito piores do que o prometido e, em geral, ilegais. Seja porque o salário é menor do que o prometido, seja porque se mede o hectare trabalhado e as condições são mais difíceis do que se lhes havia indicado, o salário real não chega a cobrir as "dívidas" que lhes são atribuídas. Ao mesmo tempo, são advertidos de que não podem abandonar a fazenda sem efetuar previamente o pagamento da dívida. Nos casos em que tentam sair do lugar, sicários dos empreiteiros os detêm brandindo armas de fogo, e se a ameaça não surte efeito, disparam. Como as fazendas são isoladas, essas tentativas de recuperação da liberdade são difíceis e arriscadas e, em muitos casos, significam a morte.
23. Delitos deste tipo, em que os trabalhadores são transportados entre Estados, competem à Justiça Federal e à intervenção direta da Polícia Federal, que tem demonstrado não estar sujeita às restrições políticas que debilitam a ação das Polícias Estaduais.
24. Tal como apresentado no Capítulo "Violência contra Menores", na seção "Exploração do Trabalho do Menor", documentos oficiais denunciam que dois milhões de menores na faixa etária dos 10-13 anos trabalham em condições ilegais e alguns deles em tarefas agrícolas sob situação de servidão forçada.
Ações do Governo
25. A Comissão foi informada pelo Governo que, consciente de que somente a legislação não é suficiente para a erradicação do trabalho forçado, este vem pondo em marcha diversos mecanismos de repressão ao trabalho forçado. Nesse contexto, o Grupo pra Erradicaçâo do Trabalho Forçado (Gertraf), composto por representantes dos Ministérios do Trabalho, do Meio ambiente, da Agricultura, da Política Fundiária, da Previdência e Assistência Social da Justiça e da Industria, Comercio e Turismo, vem elaborando, colocando em pratica e supervisionando programas integrados de repressão ao trabalho forçado. Gertraf também propõe atos normativos e coordena a ação dos órgão competentes para combater o trabalho forçado e articula-se com os Ministérios Públicos da União e dos Estados, com o Ministério Publico do Trabalho e com a Policia Federal.
Dialoga, ainda em reuniões mensais, com o "Fórum Nacional contra a Violência no Campo"; entidade colegiada integrada por representantes governamentais, e da sociedade civil, a Comissão Pastoral da Terra e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) - ocasião em que são apresentadas denuncias e discutidas estratégias de fiscalização.
26. Para reforçar o sistema de fiscalização e garantir a investigação sistemática de denuncias sobre trabalho forçado, esta em atividade, desde março de 1996, o Grupo Móvel de Fiscalização (GMF). Subordinado a Secretaria Nacional de Fiscalização do Trabalho, o GMF é constituído por equipes de agentes de inspeção do trabalho especialmente treinadas e com autonômia para realizar ações de fiscalização em qualquer parte do território nacional. Nas 83 empresas fiscalizadas em 1995 foram alcançados 26.242 trabalhadores. No ano de 1996, com a intensificação das ações, foram fiscalizadas 239 empresas, num total de 82.395 trabalhadores. Todos os relatórios da fiscalização sobre denuncias de trabalho forçado são encaminhados ao Ministério Público Federal.
27. Um importante instrumento para o combate a pratica da exploração de trabalho forçado reside na aplicação da ordem No. 101, de janeiro de 1996, do Ministério do Trabalho. Segundo esta norma, ao ser comprovada pela fiscalização móvel a reincidência, por parte do empregador, da submissão de trabalhadores a formas degradantes de trabalho, caracteriza-se o desvirtuamento da função social da propriedade, e então enviará informação detalhada ao Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agraria.
28. A Secretaria Nacional de Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Justiça, criou ainda o subgrupo de normalização, em atividade desde julho de 1996, que propôs os estabelecimento de mecanismos para a agilização do projeto de lei 929/95, que define como crimes as condutas que favoreçam ou configurem a exploração do trabalho forçado ou degradante. Este projeto de lei, está atualmente em discussão pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados(12).
A Situação no Sul do Estado do Pará. Trabalho forçado, ataques aos dirigentes trabalhistas, inoperancia judicial, e impunidade.
29. Diferentes denúncias gerais perante a Comissão e relatório sobre trabalhos forçados em algumas áreas do Brasil levaram a Comissão a investigar o assunto e a visitar zonas em que, segundo alegava, esse problema era extenso e crônico, principalmente no sul do Pará. A respeito, a Comissão recebeu amplos testemunhos de autoridades executivas e judiciárias do Estado, entre as quais o Governador, o Presidente do Tribunal de Justiça do Estado, juizes, promotores, advogados, líderes de trabalhadores rurais e familiares das vítimas. Os membros da delegação também tiveram acesso a autos e audiências judiciais referentes a estes tipos de casos.
30. Somente para citar o caso de 11 municípios do sul do Pará, a Comissão recebeu, de organizações religiosas e sindicais, informações que documentam a ocorrência de 148 denúncias, entre 1969 e 1995, contra 95 fazendas da região. Destas denúncias, formuladas à política e à justiça federal, tem-se conhecimento de apenas 47 fiscalizações efetuadas por agentes estaduais, quer através da Polícia Federal, da Delegacia Regional do Trabalho ou da Polícia Civil. Das 47 fiscalizações efetuadas por agentes(13) estaduais, não se identificou trabalho forçado em 18 casos; constatou-se esse delito em 14 casos; e houve discrepância entre órgãos estaduais em um caso. Desconhece-se a conclusão referente a 14 casos.(14)
31. As citadas denúncias contra 95 fazendas no sul do Pará, referentes ao período 1969-95 e documentadas judicialmente na maioria dos casos, referem-se a 13.322 trabalhadores em situação de semi-escravidão ou trabalho forçado, dos quais 904 conseguiram fugir, pelo menos 90 foram assassinados e 746 foram libertados pelas autoridades.
32. No período 1994-1995, documentaram-se 10 denúncias em 10 fazendas, indicativas da existência de 2 744 trabalhadores forçados. Em relação a seis dessas denúncias, 387 trabalhadores conseguiram fugir; cinco foram mortos; e cinco são tidos como desaparecidos. Em cinco procedimentos, 171 trabalhadores foram libertados pelas autoridades. Em sua maioria, os trabalhadores forçados foram contratados no Maranhão e outros no Pará. Não se efetuou qualquer detenção em relação aos casos denunciados em 1994 e 1995 e ninguém foi processado.
33. A Comissão pôde constatar, em documentos judiciais e em entrevistas com autoridades judiciais e advogados, vários casos que exemplificam a situação. Em março de 1989, foram levados para trabalhar numa fazenda do município de Conceição do Araguaia. 72 trabalhadores procedentes de São Luiz (Estado do Maranhão.) Lá chegados, foram submetidos a condições de trabalho forçado e impedidos de sair por jagunços armados. Em abril de 1990, 14 deles conseguiram fugir e denunciaram a situação. Apesar de todas essas denúncias e dos pedidos do Procurador da República, de defensores dos trabalhadores e de jornalistas, não foi efetuada nenhuma inspeção, em que pese o fato de os autores da denúncia haverem declarado que ainda existiam trabalhadores semi-escravizados dentro da fazenda. Não obstante a existência de testemunhas e as numerosas denúncias, a informação em poder da Comissão indica que o crime não foi objeto de qualquer sindicância judicial e que os responsáveis não foram punidos. Ao contrário: quando vários trabalhadores conseguiram escapar e formularam a denúncia, a Polícia os deteve durante dois dias.
34. Em outro caso, o da fazenda Espírito Santo, onde havia 40 trabalhadores em regime forçado em 1987, dois procuraram escapar. Um deles foi assassinado por jagunços da fazenda. O outro foi baleado e deixado como morto, mas sobreviveu e pôde formular a denúncia. Anos mais tarde, realizaram-se diligências policiais e sindicâncias judiciais, verificando-se a existência de trabalhos forçados. Alguns trabalhadores foram libertados. Até a data (dezembro de 1995), a investigação não havia sido concluída e ninguém fora processado.
35. Ainda em outro caso, o da fazenda Santo Antônio, em julho de 1986 agentes da Polícia Federal surpreenderam três homens que vigiavam trabalhadores forçados a fim de impedir sua fuga. Alguns desses trabalhadores, que haviam tentado escapar, foram recapturados e submetidos a torturas. A Polícia libertou-os. O Ministério Público só formulou a denúncia em 1994, ou seja, oito anos depois. Até a data, ninguém foi condenado ou detido.
36. Um exemplo da impunidade reinante é o caso de um empreiteiro, ex-vereador e prefeito municipal de Santana do Araguaia. A Comissão teve acesso a documentação que informa sua participação, nos últimos 15 anos, em 26 crimes referentes a trabalho forçado em 17 fazendas, cinco dos quais entre 1994 e 1995. Tramitam contra esse empreiteiro 5 processos, referentes a 5 dos 26 crimes. Em relação aos outros 21 crimes, não foram instaurados processos. Contra ele, correm também outros processos por homicídios. Em nenhum dos casos foi ainda proferida sentença definitiva. Detido a quase 10 anos depois de ter sido decretada a sua prisão preventiva, o empreiteiro continuou a agir delitivamente a partir da própria prisão e acabou por ser libertado. Em relação a vários casos, nem sequer se decretou sua prisão preventiva e, nos casos em que fora decretada, acabou por ser revogada com base em depoimentos que sustentavam a sua boa conduta e seu compromisso de se manter à disposição do juiz.
37. Em vários casos, o empreiteiro em questão foi processado juntamente com outros réus que agiram como seus cúmplices em vários casos de homicídio e trabalho forçado. Alguns dos seus cúmplices, depois de detidos, evadiram-se facilmente das prisões estaduais.
38. Outro caso de impunidade e inação judicial é o da fazenda Vale do Rio Cristalino, no município de Santana do Araguaia, de propriedade da empresa Volkswagen do Brasil. Em 1983 e 1984, várias centenas de trabalhadores foram contratados para obras de nivelação e acabaram trabalhando na condição de escravos, sem receber salário, ameaçados de morte em caso de fuga e maltratados e torturados quando tentavam fugir. A situação foi denunciada por trabalhadores fugitivos e uma delegação interpartidária de deputados estaduais visitou a empresa e comprovou as denúncias, que foram documentadas no relatório "Escravidão em Rio Cristalino", preparado por um deputado estadual. O juiz competente recebeu as denúncias em 1984 e determinou a intervenção policial. O delegado de Polícia de Santana do Araguaia comprovou a veracidade das denúncias, mas ninguém impetrou processo contra ninguém. Em 1983, o próprio Secretário de Segurança Pública do Estado solicitou ao Governador a urgente instauração de novo inquérito policial. Apesar da transcendência nacional e internacional do caso, em razão da importância da firma proprietária, decorridos 13 anos dos fatos não existe qualquer evidência ou informação de haver sido completado o inquérito e identificado ou processado quaisquer responsáveis, sejam estes os executores materiais ou os proprietários.
39. Também serve de exemplo um caso recente, ocorrido em 16 de julho de 1995. Fiscais de Delegacia Regional do Trabalho e agentes da Polícia Federal surpreenderam, flagrante delicto, a exploração de 52 trabalhadores em situação de trabalho escravo na fazenda Sucuapará, em Santa Maria das Barreiras, Estado do Pará. Os trabalhadores foram libertados. Segundo se alega, o empreiteiro envolvido era o mesmo já mencionado. Fiscais do Trabalho prepararam o relatório administrativo. Por sua vez, segundo os depoimentos prestados, a Polícia Federal não lavrou o flagrante e não abriu o correspondente inquérito. A Polícia Civil concluiu um inquérito e o Ministério Público ofereceu sua denúncia, iniciando o processo criminal que está em andamento. A prisão preventiva desta pessoa foi decretada em agosto de 1995 e revogada em outubro do mesmo ano, já que testemunhas atestaram sua boa conduta e seu interesse em manter-se à disposição do tribunal.
40. Na visita que realizou a essa região do sul do Pará, a Comissão, na presença e com a colaboração de delegados dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores, pôde comprovar que existe uma situação geral de atemorização da população e das autoridades, e de impotência em face da impunidade. Essa informação foi prestada unanimemente mediante depoimentos diretos de familiares, líderes sindicais, promotores de justiça, juizes, autoridades municipais, civis e religiosas. Tanto a população como numerosas autoridades indicaram à CIDH que a situação é atribuível à inação, à negligência e à incapacidade do sistema policial e judicial, às óbvias conexões entre delinqüentes e autoridades dos diferentes poderes e, além disso, à própria intimidação que estas sofrem.
41. As conseqüências desta situação de violação crônica dos direitos humanos excedem por larga margem a exploração dos trabalhadores e os assassínatos e ataques aos que querem libertar-se ou aos que os defendem. Três presidentes anteriores do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da região foram assassinados. O presidente atual, parente de uma dessas vítimas, foi ameaçado em várias oportunidades por pessoas vinculadas aos empreiteiros ilegais. Também sofrem ameaças permanentes os seus defensores, especialmente os religiosos da Comissão Pastoral da Terra, Padres Ricardo Rezende e Henri Burin des Roziers. Processos que não se iniciam durante anos e que, quando se iniciam, percorrem caminhos tortuosos e labirintos inconseqüentes, e acabam por serem arquivados. Responsáveis processados dezenas de vezes continuam a agir delitivamente sem dificuldade, exibindo, com o seu enriquecimento ilícito, o produto de suas atividades, e comprovando publicamente sua impunidade e sua capacidade de burlar a justiça.
42. Informações fidedignas chegadas à Comissão indicam que o Poder Judiciário do Estado do Pará atua de modo a facilitar a impunidade e a continuidade do crime organizado no sul do Estado. Entre os fatos mais salientes ocorridos nos últimos meses de 1996, estão a suspensão do processo contra o investigador Lucival Haroldo Sampaio Cruz, da Polícia Civil de Xinguara, acusado de facilitar a fuga de Wanderley Borges de Mendonça, assassino condenado pelo homicídio de um juiz em Goiás, e processado em Xinguara (sul do Pará) por outros dois homicídios. Wanderley trabalhava como gerente de Jerônimo Alves de Amorim, acusado de ser o chefe de uma organização de jagunços a serviço de proprietários de terras e empreiteiros e mandante de vários crimes, entre os quais o homicídio de Expedito Ribeiro de Souza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, ocorrido em 1991.
43. A suspensão do processo contra o policial a partir de julho de 1996 soma-se ao atraso da própria Polícia em executar o mandado de prisão do investigador que facilitou a fuga e que, durante esse tempo, continuou a integrar o quadro policial de Belém. Este clima de insegurança agravou-se em janeiro de 1997, quando pistoleiros notoriamente ligados a proprietários de terras locais assassinaram três trabalhadores rurais desarmados na fazenda Santa Clara, na localizada vizinha de Ourilândia do Norte.
44. Juizes e promotores cerceados pelas complexidades de um sistema processual inoperante e pelo temor de represalias, caso tomen decissões judiciais más efetivas; autoridades federais distantes e com um interesse objetivo inconstante a respeito do problema, sempre adotando medidas débeis e ineficientes; e uma população cuja capacidade de exercer seus direitos de reunião, associação, liberdade de comércio e trabalho e até política, são seriamente desafiados pela presença do poder paralelo dessas empresas perversas de exploração ilegal de trabalhadores.
C. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
45. Com base no exposto a Comissão conclui que:
a. Existe no Brasil uma situação historica de grave desigualdade na distribuição de terras e nas oportunidades econômicas nas áreas rurais. Apesar da capacidade constitucional do Estado e de Autoridades para resolver tal situação, esta se mantém. Embora a atual administração tenha iniciado programas para reduzir a gravidade do problema e facilitar o acesso a terra e credito aos pequenos produtores, o alcance de tais medidas e reduzido e, especialmente o Norte e Nordeste do pais mantêm situações de pobreza e desigualdade generalizadas no gozo dos direitos básicos.
b. Os atritos e as situações de tensão provocados pela desigualdade na distribuição de terras e de credito, dão origem a confrontos que criam condições para que sejam cometidos excessos na repressão e violações de direitos humanos.
c. A mesma situação de pobreza e de falta de oportunidades provocadas pela ma distribuição de oportunidades de acesso a terra e serviços, leva a exploração, em condições de servidão, dos trabalhadores rurais. A Comissão comprovou a existência no Pará, de grupos que se aproveitam dessas condições para conduzir trabalhadores desse e de outros Estados a situações de semi-escravidão, estabelecendo ainda, um clima de insegurança e ilegalidade através de agressões físicas tanto contra os trabalhadores como contra seus defensores. Sua impunidade está assegurada pela lentidão e inoperância do sistema judicial, bem como pela falta de eficácia das autoridades para prevenir e punir suas atividades.
d. A Comissão reconhece a série de medidas legislativas, administrativa e policiais adiantadas pelo presente Governo para resolver os problemas de direitos humanos relativos à posse e usufruto da terra, e a situação de trabalho em condições de servidão. Reconhece também a Comissão que essas medidas estão orientadas corretamente e que a magnitude destes problemas dificulta sua solução. Mas isso não pode fazer esquecer responsabilidade do Estado de resolve-los e a necessidade de uma vontade política plena do Governo para levar a fundo essas políticas e as medidas necessárias, assim como de todas as pessoas de compreender a urgência e importância de sua solução.
48. Em consequência, a Comissão recomenda:
a. Ampliar a ação do Ministério da Reforma Agrária e dos organismos de implementação da mesma para acelerar sua ação e oferecer possibilidades de acesso à terra e crédito às famílias de poucos recursos.
b. Ampliar e aprofundar as políticas, sistemas e medidas de negociação para reduzir os confrontos e situações de tensão e por sua vez acelera o processo anterior de redistribuição de terras e crédito. Implantar diretrizes firmes para o manejo das contínuas situações de protesto contra a desigualdade na situação rural, de maneira que se respeite o direito de expressão, de reunião, à vida, integridade e liberdade por parte das forças de segurança federais e estaduais.
c. Adotar legislação e políticas efetivas para por fim às situações de trabalho em condições de servidão e das ações de empreiteiros e criminosos que perpetuam sua existência. Criar condições especiais de segurança e plena vigência de direitos aos líderes sindicais e trabalhadores rurais, especialmente em áreas onde ocorrem maior número de denúncias a respeito da persistência de trabalho em condições de servidão rural.
d. Estabelecer normas e procedimentos especiais a respeito dos delitos ligados à exploração do trabalho humano em condições de servidão, assim como dos crimes, ameaças e associações ilegais realizadas para perpetrar e manter tais situações. Estabelecer ou implementar conforme o caso, legislação e medidas para a federalização de ditos delitos e sua severa repressão a todos os níveis policiais e judiciais.
e. Estabelecer medidas especiais de proteção para os defensores dos direitos humanos dos trabalhadores rurais, em regiões de maior desproteção, em particular na área do sul do Estado do Pará, assim como implementar medidas especiais para fazer mais efetiva a ação fiscalizadora, de investigação, de julgamento e punição dos que infrinjam a proibição da servidão, sejam eles autores intelectuais, sejam cúmplices diretos das mesmas.
OS DIREITOS HUMANOS DA MULHER BRASILEIRA
A. INTRODUÇÃO
1. Em conformidade com a Declaração da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos (Viena, 1993), "Os direitos humanos da mulher e da menina são partes inalienáveis, integrantes e indivisíveis dos direitos humanos universais". No sistema interamericano, os Estados membros reconheceram que o melhoramento da capacidade da mulher de exercer livre e plenamente seus direitos humanos é um desafio crucial para a consolidação dos sistemas democráticos no hemisfério.(15) A prioridade da melhoria do efetivo exercício da democracia em todo o hemisfério é um requisito prévio essencial para fazer avançar o respeito aos direitos humanos. Além disso, a democracia verdadeiramente participativa não pode prosperar até que todos os segmentos da sociedade participem plenamente da vida nacional.(16)
2. No Brasil, as organizações de direitos da mulher abriram novo espaço para a participação da mulher na vida nacional, trabalhando no contexto dos esforços iniciados no começo da década de 80 a fim de reorganizar a sociedade e fazer com que o exercício da democracia fosse cada vez mais eficaz. Em conseqüência dessa abertura, adotaram-se iniciativas importantes, tanto no setor público como no privado, para combater a discriminação contra a mulher e os seus efeitos. O movimento de mulheres no Brasil, apoiado pelas ações de centenas de organizações não-governamentais que trabalham na área dos direitos da mulher, tem exercido ativo lobbying em prol dos direitos da mulher e realizado grandes esforços no sentido de encontrar medidas concretas para proteger o direito da mulher a uma vida livre da violência. Por sua vez, o Governo tem aprovado e aplicado diversas iniciativas importantes, que visam a melhorar a observância dos direitos humanos da população feminina.
3. Apesar desses progressos e muito embora a lei proíba a discriminação por motivo de sexo, a Comissão tem recebido queixas e informações que detalham a persistência de discriminações de facto e de jure contra a mulher em diversas esferas, tal como o demonstra o fenômeno da violência contra a mulher(17). As recomendações contidas neste capítulo levam em consideração as iniciativas tomadas tanto no setor público como no privado, e refletem o fato de a sociedade brasileira ter compreendido a necessidade de adotar medidas adicionais para consolidar e impulsionar ainda mais os avanços já registrados.
B. A CONDIÇÃO DA MULHER NO BRASIL E O PROBLEMA DA DISCRIMINAÇÃO
4. No âmbito do sistema interamericano de direitos humanos, os Estados Partes da Convenção Americana comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos, "sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social". A Convenção Americana sobre Direitos Humanos requer que a proteção de todos os direitos e liberdades mencionados seja efetivada para que homens e mulheres desfrutem integralmente de seus direitos humanos" (Artigo 2). Quanto à igualdade, a Convenção Americana estabelece que todas as pessoas são iguais perante a lei e, por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei" (artigo 24), e que os Estados Partes devem especificamente, "tomar medidas apropriadas no sentido de que a igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento, durante o casamento e em caso de dissolução do mesmo" (Artigo 17.4). No que se refere às proteções por motivo de sexo, a Convenção proíbe o tráfico de mulheres (Artigo 6.1). O Brasil, além de ser parte na Convenção Americana e na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, ratificou em 1995 a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, "Convenção de Belém do Pará".(18)
5. Ao nível internacional, o Brasil é Parte na Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, bem como do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que incluem importantes proteções referentes aos direitos humanos da mulher.(19) Cumpre recordar que, apesar de o Brasil ter formulado certas reservas ao passar a ser uma das Partes na Convenção sobre Eliminação de todas as Formas e Discriminação contra a Mulher, em 1984, estas foram retiradas em 1994. O Brasil apoiou a Declaração da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, que condenou a violência contra a mulher; a Declaração sobre Eliminação da Violência contra a Mulher, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas; e a Declaração e Programa de Ação aprovados pela Quarta Conferência Mundial sobre Direitos da Mulher (Beijing, 1995).
6. O primeiro Conselho Estadual sobre a Condição da Mulher foi estabelecido em São Paulo, em 1983, com o fim de propor medidas a serem adotadas e formular recomendações sobre a integração da mulher na vida política, econômica e cultural do Estado. Essa iniciativa repetiu-se em todo o Brasil, tanto a nível estadual como no municipal. A Comissão sobre a Violência contra a Mulher desse Conselho, promoveu ativamente a criação da primeira Delegacia da Mulher, em São Paulo, em agosto de 1985.(20) Essa resposta específica e sem precedentes para delitos de violência contra a mulher serviu de modelo não apenas no Brasil, mas também em outros países.(21) O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) foi estabelecido pelo Presidente Sarney em 1985, através de iniciativa do Ministério da Justiça, com a finalidade de assegurar a adoção de políticas destinadas a acabar com a discriminação da mulher e facilitar sua participação na vida política, econômica e social do Brasil.
7. Como resultado da sintonia entre o setor não-governamental e o CNDM, a Constituição Federal de 1988 reflete vários avanços importantes em benefício dos direitos da mulher. O Artigo 5º estabelece a igualdade de todos perante a lei e que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (Seção I). É obrigação fundamental do Estado promover o bem de todos, sem discriminação (Artigo 3º, Seção IV). Além disso, a Seção XLI do Artigo 5º dispõe que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades individuais. Os direitos trabalhistas são assegurados pela Constitução Federal igualmente para homems e mulheres. O artigo 7 da Constitução, enumera ainda, direitos especificos das trabalhadoras mulheres, como licença maternidade e a proteçao do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos.
8. No âmbito do Programa Nacional de Direitos Humanos, as iniciativas propostas pelo Governo com vistas a melhorar os direitos humanos da mulher incluem, inter alia: o apoio ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e ao Programa Nacional para Prevenir a Violência contra a Mulher; esforços de apoio para prevenir a violência sexual e doméstica contra a mulher, prestar assistência integrada à mulher em situação de risco e educar o público a respeito da discriminação e da violência contra a mulher, e das garantias disponíveis; revogação de certas disposições discriminatórias do Código Penal e do Código Civil sobre pátrio poder; promoção do desenvolvimento de enfoques orientados para a condição de homem ou mulher na capacitação dos agentes do Estado e no estabelecimento de diretrizes para os currículos de ensino primário e secundário; e promoção de estudos estatísticos sobre a situação da mulher no trabalho. O Programa também recomenda que o Governo implemente as decisões consagradas na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
9. Apesar de várias iniciativas para modernizar a legislação interna e conformá-la às obrigações internacionais, como os compromissos da Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ainda permanecem vigentes, no texto da lei, uma série de disposições anacrônicas e discriminatórias(22). O Programa Nacional de Direitos Humanos identificou, para fins de revogação, várias disposições do Código Civil sobre pátrio poder e algumas disposições do Código Penal referentes à violação e agressão da mulher; outras disposições foram classificadas de anacrônicas e prejudiciais no relatório do Brasil preparado para a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995).(23) Por exemplo: certos delitos sexuais continuam a ser considerados como crimes contra os costumes, à diferença de outros delitos contra a pessoa.(24) A "honestidade" continua a ser um requisito legal para que uma mulher seja identificada como vítima de certos delitos, e o matrimônio entre o autor do crime e a vítima ainda pode cancelar o processo pela prática de certos delitos.(25) Muito embora seja reconhecido, há certo tempo, a necessidade de revogá-las, essas disposições permanecem vigentes na legislação brasileira.
10. Ao passo que a lei reconhece a igualdade entre homens e mulheres no Brasil, o Estado reconhece que "as mulheres brasileiras, que representam pouco mais de metade da população do país (50,1% em 1990), ainda se defrontam com dificuldades para participar plenamente de todos os aspectos da vida econômica e política nacional".(26) Cumpre adotar novas medidas com vistas a assegurar que as reformas legais ou de outra índole sejam devidamente aplicadas, para assegurar a livre e plena participação da mulher na vida nacional.(27)
C. A MULHER BRASILEIRA E O TRABALHO
11. Na esfera do trabalho, o Artigo 7º da Constituição proíbe, inter alia, diferenças de salário por motivo de sexo; estabelece certos incentivos para fomentar a participação da mulher no mercado de trabalho, proporciona licença remunerada à gestante por 120 dias e licença-paternidade de cinco dias. O Código Trabalhista contém estipulações adicionais a respeito dos direitos da mulher no local de trabalho.
12. Em setembro de 1996, estabeleceu-se o Grupo de Trabalho Governamental para Eliminar a Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação (GTEDEO), onde participa o Conselho Nacional dos Direitos da Mulhter (CNDM). Seu principal objetivo é à eliminação da discriminação por razões de sexo e à melhoria da implementação das disposições constitucionais contra a discriminação, da lei nacional e do Convênio 111 da Organização Internacional do Trabalho.
13. Embora a discriminação nos salários, nas contratações e no exercício de funções seja proibida por lei, o Governo reconheceu que "a discriminação por razões de sexo ainda persiste no mercado de trabalho".(28) Em fins de 1994, o Governo informou que as mulheres com educação e conhecimentos idênticos aos dos homens ganhavam 54% dos salários a estes pagos".(29) A Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística publicou os resultados de uma pesquisa segundo a qual, em termos gerais, os homens receberam sete vezes o salário mínimo, ao passo que as mulheres receberam três ou quatro vezes essa quântia. E o campo da educação profissional é de ressaltar que 42% das pessoas matriculadas nos cursos oferecidos são mulheres.
14. Apesar de a Constituição e a Consolidação das Leis do Trabalho proibirem a despedida de mulheres grávidas, informações recebidas pela Comissão indicam que isto continua a ocorrer e que alguns empregadores continuam a eliminar as candidatas a trabalho em estado de gravidez e as mulheres em idade fértil ou, em certos casos, exigem das mulheres provas de esterilização como condição de emprego. Uma das tarefas do GTEDEO é combater essa prática, assegurando a aplicação total da lei que a proíbe.
15. A prostituição forçada é uma complexa violação dos direitos humanos que pode implicar o uso ilícito de trabalho forçado, o tráfico de mulheres e meninas e a violência. A Comissão não pôde reunir informações suficientemente atualizadas para que o alcance desse problema no Brasil pudesse ser plenamente considerado. O Governo adotou algumas medidas iniciais para abordá-lo, tendo em vista os "relatórios sobre centenas de meninas que vivem em condições de servidão em lugares remotos de prospeção de ouro no Amazonas". Dentre essas iniciativas inclui-se, além da realização de diligências policiais para localizar e libertar algumas meninas, uma iniciativa para informar sobre a tortura e o assassinato de menores mantidas em escravidão no Norte, e a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito.(30) Tais indícios apontam para a provável existência de um padrão de graves violações de direitos humanos em certas localidades, que requerem resposta imediata e integrada para proteger as vítimas e assegurar a investigação, a abertura de processo e o castigo dos responsáveis por esse delitos. (O presente relatório também aborda o tema no capítulo "Direitos dos Menores").
D. O DIREITO DE PARTICIPAÇÃO NA POLÍTICA, NO PROCESSO DECISÓRIO E NA VIDA PÚBLICA
16. Em seu Artigo 23, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos dispõe que todos os cidadãos devem gozar dos direitos de "participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos", votar em eleições livres e justas e "ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país". A Constituição Federal dispõe que as mulheres e os homens têm idênticos direitos à cidadania e direito, em condições de igualdade, a votar, candidatar-se a cargos eletivos e ocupar cargos na administração pública.
17. Embora a participação da mulher na vida nacional e pública do Brasil tenha registrado grande avanço desde a Conferência de Nairóbi (1985),(31) é amplamente reconhecido que ela continua insuficientemente representada nas instituições do Estado e tem acesso limitado aos altos cargos do serviço civil e aos cargos por eleição popular.(32) O movimento feminino brasileiro tem procurado abordar essa situação por diferentes meios, entre os quais a promoção da reforma interna dos partidos políticos estruturados. Dada a reabertura do espaço para a atividade política ocorrida na década de 80, muitos partidos começaram a atentar para questões vinculadas aos direitos da mulher correligionária. Em 1981, as mulheres filiadas ao Partido dos Trabalhadores reivindicaram o estabelecimento de uma quota para assegurar 30% de participação feminina na liderança do PT.
18. Em termos gerais, as mulheres ocupavam 13,1% dos cargos eletivos do governo em 1995.(33) Em 1994, a percentagem de mulheres no Congresso era de 5,7%.(34) A mulher também está insuficientemente representada nas assembléias legislativas estaduais da Federação.(35) A primeira mulher Governadora de Estado foi eleita em 1994. No nível local, dados de 1992 indicam que havia 171 prefeitas municipais eleitas e 1 672 mulheres eleitas para as câmaras de vereadores dos 4 793 municípios do país.(36) Uma das medidas adotadas para aumentar a participação política das mulheres foi a aprovação da Lei 9100/95, segundo a qual todos os partidos políticos deveriam asseguram-se de que pelo menos 20% dos candidatos propostos às eleições de outubro de 1996 fossem mulheres.
19. No Poder Executivo, os dados referentes a 1995 indicam que 3,6% do cargos a nível ministerial e 14,7% dos cargos de nível subministerial eram ocupados por mulheres.(37) Antes do Governo atual, sete mulheres haviam sido titulares de ministérios. No Ministério das Relações Exteriores, as estatísticas relativas a 1994 indicam que três mulheres (2,94% do total) eram Ministros de Primeira Classe (a categoria mais alta no serviço diplomático).(38) No Poder Judiciário, apesar da introdução de um processo de seleção pública competitivo para as nomeações judiciais, quase nenhuma mulher em 1985, integrou os tribunais superiores. Nos tribunais superiores, por exemplo, dos 93 juizes integrantes em 1990, somente uma era mulher.(39) No Ministério Público, em fins de 1993, as mulheres ocupavam 26,9% dos cargos, o que representa aumento em comparação com os 20,4% correspondentes a 1986 e 11,1% em 1980.(40)
E. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
20. Nos países do hemisfério, as mulheres sofrem as conseqüências do tratamento injusto e discriminatório, expresso em violência, em todos os estratos sóci-econômicos, raciais e culturais.(41) A situação específica da violência contra a mulher no Brasil(42) gerou importantes ações dos setores governamental e não-governamental. No primeiro, uma das obrigações prioritárias do Conselho Nacional de Direitos da Mulher tem sido expor a questão da violência contra a mulher nos níveis políticos mais altos e levá-la ao debate público, trabalhando em prol das reforma de leis e apoiando os esforços que se realizam para assegurar que os responsáveis pelo cumprimento da lei e os servidores do Judiciário entendam as causas, a natureza e as conseqüências dessa violência.(43) Isso contribuiu para incorporar, no Artigo 26, VIII da Constituição de 1988, o compromisso explícito do Estado de criar mecanismos para abordar e combater a violência no âmbito familiar.(44) Em 1993, a Câmara dos Deputados instituiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito para estudar a situação da violência contra a mulher no Brasil.(45)
21. Como Estado Parte da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, "Convenção de Belém do Pará", o Brasil assumiu uma série de obrigações específicas que, partindo da base, complementam as disposições mais gerais da Convenção Americana. A Convenção de Belém do Pará define no nível regional a violência contra a mulher como "qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na privada",(46)
a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, que o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus tratos e abuso sexual;
b) ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local, e
c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra. "Toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada" (Artigo 3) e a que todos os seus direitos e liberdades fundamentais sejam protegidos e respeitados (Artigos 4, 5). É importante mencionar que o direito de toda mulher a uma vida livre de violência inclui o direito "de ser livre de todas as formas de discriminação" e "a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação" (Artigo 6).
22. Os Estados Partes da Convenção de Belém do Pará convieram em adotar, "sem demora", políticas destinadas a prevenir e erradicar a violência contra a mulher (Artigo 7). Isto significa que as Partes estão obrigadas a assegurar que os agentes do Estado respeitem o direito da mulher a uma vida livre de violência e a agir com o devido zelo "para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher (tanto na esfera pública como na privada), e que todas as vítimas da violência tenham acesso a procedimentos jurídicos justos e eficazes. As leis ou práticas jurídicas que "respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher" devem ser abolidas.(47)
23. Desde meados da década de 80, o Brasil tem estado na vanguarda da região em matéria de desenvolvimento e implementação de estratégias para proporcionar serviços às mulheres vítimas de violência. Existem atualmente mais de 150 Delegacias de Defesa da Mulher em todo o país, que prestam serviços especializados às vítimas. Além de contarem com policiais especialmente treinadas para o cumprimento de funções normais relacionadas com a aplicação da lei, essas delegacias também pretendem oferecer serviços sociais e psicológicos integrados.
24. A violência doméstica é, de fato, a forma mais comum de violência contra a mulher no Brasil, e inclui o assassinato de cônjuges, a agressão doméstica, o abuso e o estupro.(48) O primeiro refúgio para vítimas de violência doméstica no Brasil foi aberto como projeto piloto em 1986. Por meio de convênios com as Secretarias Estaduais de bem-estar Social, o Conselho de Direitos da Mulher oferece incentivos para promover o estabelecimento de refúgios adicionais para mulheres agredidas e seus filhos. Mais recentemente, em 8 de março de 1996, o Governo Federal lançou o Programa Nacional para Prevenir e Combater a Violência Sexual e Doméstica. O programa prevê ações em várias frentes, inclusive em relação a uma proposta no sentido de revogar a qualificação arcaica de crimes contra os "costumes", dada a certos delitos sexuais usualmente praticados contra a mulher.
25. Ainda que as Delegacias representem um avanço extraordinário no sentido de que abordam as causas e conseqüências específicas da violência contra a mulher, sua capacidade de proteção dos direitos da mulher continua a ser limitada em razão da falta de recursos humanos e materiais, da preparação insuficiente de pessoal especializado e não-especializado (nos quadros gerais da polícia) para tratar de casos de violência e de questões gerais da mulher, e da insuficiente coordenação com o restante da organização policial.(49) As policiais especializadas existentes não podem atender a todas as vítimas. Nas áreas rurais em particular, as mulheres contam com muito poucos recursos oficiais contra a violência e para obter ajuda.(50)
26. Além disso, mesmo onde existem essas delegacias especializadas, é freqüente que as queixas não sejam totalmente investigadas ou processadas. Em certos casos, as limitações tolhem os esforços envidados para dar resposta a esses delitos. Em outros casos, as mulheres não apresentam queixa formal contra os agressores. Na prática, limitações das leis e de outra natureza freqüentemente expõem a mulher a situações em que ela mesma de vê obrigada a agir. De acordo com a lei, as mulheres devem formular suas queixas numa delegacia e explicar os fatos a um policial para que este possa preparar uma "denúncia de incidente". Os policiais que não tenham sido suficientemente preparados talvez não estejam em condições de prestar os serviços requeridos e, segundo se informa, alguns deles continuam a tratar as vítimas de tal forma que estas se sentem envergonhadas e humilhadas. Para certos delitos, como o de estupro, as vítimas devem apresentar-se ao Instituto Médico Legal, ao qual cabe a competência exclusiva em matéria de exames médicos requeridos por lei para processar a denúncia. Algumas mulheres desconhecem esse requisito ou não têm acesso a essa instituição de forma justa e necessária para obter as provas requeridas. Estes institutos tendem a localizar-se em áreas urbanas e, onde existem, muitas vezes não dispõem de pessoal suficiente. Ademais, mesmo quando as mulheres tomam as medidas necessárias para denunciar a prática de delitos violentos, não existe garantia de que estes serão investigados e processados.(51)
27. Apesar de o Supremo Tribunal Federal ter revogado, em 1991, a arcaica "defesa da honra" como justificativa para o homicídio da mulher, muitos tribunais ainda hesitam em processar e punir os autores da violência doméstica.(52) Em certas áreas do país, persiste o uso da "defesa da honra" e, em algumas áreas, a conduta da vítima continua a ser um aspecto central a ser examinado no processo judicial relativo à ocorrência de um crime sexual. Em vez de se concentrar na existência dos elementos jurídicos do crime em questão, a prática de certos advogados de defesa - tolerada por alguns tribunais - acabam por tornar necessário que a mulher demonstre sua a pureza da sua reputação e a sua inculpabilidade moral para que possa utilizar os meios judiciais e legais à sua disposição. As iniciativas tomadas pelo setor público e pelo privado no sentido de fazer frente à a violência contra a mulher começaram a combater o silêncio que tradicionalmente tem ocultado esse crime, mas ainda é necessário superar as barreiras sociais, jurídicas e de outra ordem que contribuem para que a impunidade em tais crimes prevaleça.
F. CONCLUSÕES
28. No Brasil, a ação e a interação dos setores público e privado produziram muitos avanços dignos de menção na luta para assegurar o pleno gozo, em condições de igualdade, dos direitos humanos da mulher. O Estado deu início a um programa sem precedentes e proporcionou serviços policiais especializados para as mulheres vítimas de violência, que continuam a valer como modelo para outros países por sua amplitude e seu alcance. Mesmo assim, as necessidades críticas que têm sido atendidas com o programa só se tornaram mais aparentes com o passar do tempo, demonstrando a necessidade de promover o investimento e o desenvolvimento para satisfazer as reivindicações das vítimas.
29. Houve avanços significativos e também reformou-se a lei, com o fim de revogar disposições discriminatórias. Não obstante, tal como se especifica no parrágrafo 8, as leis obsoletas que permanecem no texto da lei (apesar de terem sido identificadas como arcaicas) e as práticas anacrônicas que persistem são incompatíveis com as obrigações internacionais do Brasil. Além disso, essas disposições e práticas perpetuam estereótipos que tolhem ainda mais a capacidade das mulheres de exercer seus direitos e liberdades. Isto deve ser modificado em função da condição do Brasil como Parte da Convenção Americana, da Convenção de Belém do Pará e da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.
30. Os delitos que estão incluídos no conceito de violência contra a mulher constituem violações dos direitos humanos nos termos da Convenção Americana e nos termos mais específicos da Convenção de Belém do Pará. Quando são cometidos por um agente do Estado com o uso de violência contra a integridade física e/ou mental de uma mulher ou um homem, a responsabilidade direta cabe ao Estado. Além disso, cabe ao Estado a obrigação, de acordo com o Artigo 1.1 da Convenção Americana e o artigo 7.b da Convenção de Belém do Pará, de agir com o devido zelo para prevenir as violações de direitos humanos. Isso significa que, mesmo quando a conduta não seja originariamente imputável ao Estado (por exemplo, porque o agressor é anônimo e não é agente do Estado), um ato de violação pode acarretar a responsabilidade estatal, "não pelo ato em si, mas pela falta do devido zelo para prevenir a violação ou a ela responder, tal como requer a Convenção".(53)
31. Tal como indicou o Relator Especial das Nações Unidas sobre a Violência, onde se demonstrar que a existência de proteções jurídicas é insuficiente para proteger o direito da mulher a uma vida livre de violências, "os Estados devem encontrar outros mecanismos complementares para prevenir a violência doméstica", incluindo a educação do público, a preparação do pessoal pertinente e o financiamento de serviços diretos de assistência às vítimas.(54) O Brasil tomou medidas inovadoras e louváveis a fim de criar e implementar esses mecanismos e indicou, no seu Programa de Direitos Humanos e em outras normas de política, sua disposição de consolidar os programas existentes e obter maiores proveitos.
32. Ocorrendo violações, deve o Estado investigar os casos, submeter seus autores à justiça e assegurar a existência de mecanismos de compensação . Em 1980, a organização não-governamental brasileira "SOS Mulher" iniciou sua campanha de combate à violência contra a mulher sob o lema: "O silêncio é cúmplice da violência". Em 1993, os participantes da Primeira Conferência Nacional de Organizações Populares contra a Violência Contra a Mulher, realizada em São Paulo, acrescentaram um novo lema: "A impunidade é cúmplice da violência". A informação de que dispõe a Comissão indica que ainda restam outras medidas a adotar para assegurar que as queixas de violência contra a mulher, em particular no ambiente doméstico, sejam totalmente investigadas e punidas de acordo com a lei.
G. RECOMENDAÇÕES
33. A Comissão recomenda que o Estado tome medidas adicionais para enfrentar a discriminação contra a mulher nos setor público e privado, incluindo: a) uma educação livre de padrões estereotipados(55); b) a revogação de disposições legais arcaicas; c) garantir que toda denúncia de discriminação seja prontamente investigada, processada e punida.
34. Que o Estado continue e amplie as medidas para promover a participação de mulheres em postos de decisão em todos os níveis da esfera pública ou privada e em particular, que assegure que as mulheres estejam ocupando equilibradamente posições em todo o nível do governo e do serviço público.
35. Que o Estado tome medidas adicionais para assegurar a plena participação das mulheres na vida econômica; especialmente evitando a disparidade a nível de remuneração; assegurando o pleno gozo dos direitos trabalhistas pelas mulheres e evitando práticas discriminatórias.
36. Que o Estado amplie a disponibilidade de respostas apropriadas em relação aos crimes de violência contra a mulher; incluindo sua investigação, processamento e punição simplificando os requisitos para que a mulher possa denunciá-los e impedindo preconceitos em seu tratamento; melhorando o treinamento de seus agentes a respeito das causas, efeitos dessa violência e os recursos existentes para evitá-la e denunciá-la; e atendendo à recuperação física e psicológica das vítimas.
37. Que o Estado aprofunde a análise sobre a prostituição e o trabalho escravo de mulheres e meninas que existe em certas regiões do país a fim de planejar uma solução adequada para proteger as vítimas, investigar os crimes e punir os responsáveis.
DISCRIMINAÇÃO RACIAL
A. SITUAÇÃO ATUAL
1. De todas as sociedades contemporâneas, a sociedade brasileira provavelmente é a que alcançou a amálgama mais abrangente de distintas origens e culturas. Essa amálgama foi alcançada apesar da disparidade das condições em que os diferentes grupos participaram da criação do que é hoje o Brasil, seja como povos aborígenes, europeus colonizadores e imigrantes trabalhadores, seja como africanos trazidos e explorados como escravos.(56) Essa combinação nem sempre foi harmônica, nem é completa e igualitária. Persistem ainda hoje diferenças que distam de uma igualdade mínima aceitável, discriminações que se traduzem em muitos casos, em padrões atentatórios aos direitos humanos, especialmente à igualdade, à não-discriminação e ao direito à dignidade.
2. A expressão principal dessas disparidades raciais(57) é a distribuição desigual da riqueza e de oportunidades. No que se refere à renda dentro do nível de pobreza, 50% dos negros auferiam renda mensal inferior a dois salários mínimos (US$270) em 1995, ao passo que 40% dos brancos estavam nessa situação. Inversamente, quanto aos salários altos, ao passo que 16% dos brancos recebiam mais de dez salários mínimos, a proporção entre os negros era de 6%. Os trabalhadores brancos ganham 2,5 vezes mais do que os trabalhadores negros e quatro vezes mais do que as trabalhadoras negras.(58)
3. Quanto à educação, em 1992 o analfabetismo entre os negros chegava à casa dos 30% e se elevava a 36,4% no Nordeste do Brasil.(59) O problema do analfabetismo guarda relação com a falta de acesso da população negra à educação formal e o problema do absentismo escolar das crianças de raça negra é muito freqüente, já que estas são obrigadas a deixar a escola para ajudar no sustento familiar. Em relação aos avanços nos níveis de escolaridade, 4% dos negros conseguem ingressar na universidade, em comparação com 13% entre os brancos. Um exemplo da margem diferencial de acesso é dado pelas cifras referentes à Universidade de São Paulo, de cujos 50 000 estudantes em 1994, apenas 2% eram negros. A situação repete-se em diferentes universidades do país, mesmo em cidades como Salvador, com maioria populacional afro-brasileira.
4. Também existe discriminação quanto aos cargos eletivos políticos já que, em 1995, havia 11 afro-brasileiros dentre um total de 513 congressistas.(60)
5. Entre a população em geral, a mulher negra é a que sofre maior discriminação e arca com o ônus mais pesado, já que 37% são a fonte primária de renda familiar, em comparação com 12% no caso das mulheres brancas. Por sua vez, a renda média mensal da mulher negra não passa de um terço da média mensal correspondente à mulher branca chefe de família. Em comparação com a mulher brasileira de raça branca com o mesmo nível de renda e com experiência similar, a mulher negra pode esperar perder maior número de filhos vitimados por doenças, morrer antes e ganhar menos.(61)
B. AS GARANTIAS CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NA LEGISTAÇÃO INTERNA DO BRASIL
A Constituição de 1988
6. Após a abolição da escravatura, a existência de discriminação racial no Brasil só foi reconhecida em 1951, com a aprovação da Lei Afonso Arinos. A Constituição de 1988 transformou essa discriminação em crime.
7. A Constituição de 1988 foi precedida de um amplo debate público, do qual participaram amplos setores da população. É interessante citar a respeito, a justificação oferecida pelo deputado negro Carlos Alberto de Oliveira, ao propor à Assembléia Constituinte de 1988 a tipificação do racismo como crime. Nas palavras do deputado:
Passados praticamente cem anos da data da abolição (da escravatura), ainda não se completou uma revolução política ... iniciada em 1988. Com efeito, imperam no país diferentes formas de discriminação racial, velada ou ostensiva, que afetam mais da metade da população brasileira, constituída de negros ou descendentes de negros, privados do pleno exercício da cidadania. Como a prática do racismo eqüivale a decretar a morte civil, urge transformá-la em crime.(62)
8. A Constituição Federal de 1988 estabelece, no seu Artigo 5º: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.
9. Em seu Preâmbulo, a Constituição Federal afirma o seu compromisso em assegurar o desenvolvimento de uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos...". Ao estabelecer os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, o Artigo 3º, inciso IV, assinala: "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". O Artigo 4º dispõe que "A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: ...VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo".
10. Igualmente, para proteger a cultura negra, seus ritos religiosos e costumes trazidos da África, a Constituição Federal garante, no seu Artigo 5º, inciso VI, a inviolabilidade da "liberdade de consciência e de crença", "o livre exercício dos cultos religiosos" e "a proteção aos locais de culto e suas liturgias". Esta disposição representa um avanço em relação aos textos constitucionais anteriores, que reprimiam a cultura negra, considerando-a atentatória à "ordem pública" e aos "bons costumes".
11. A preocupação com as culturas afro-brasileiras também se manifesta na Seção II, Artigo 215, parágrafos 1º e 2º da Constituição Federal, que expressa, no primeiro deles: "O Estado protegerá as manifestações das culturas populares indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional". E, no segundo: "A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais".
12. No que se refere ao resgate dos valores étnicos dos integrantes da raça negra e à sua contribuição para a formação da cultura brasileira, o Artigo 242 da Constituição dispõe, em sua Seção I, que "O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro". Por sua vez, o Artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias, em referência aos "quilombos" (comunidades negras que se organizaram autonomamente no interior do brasil, liberando-se de fato da situação da escravidão), dispõe o seguinte:
Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Legislação antidiscriminatória
13. Em 5 de janeiro de 1989, aprovou-se a Lei 7.716, conhecida como "Lei Anti-Racismo" ou "Lei Caó" que trata dos crimes resultantes do prejuízo de raça ou cor. Apesar do seu nome, essa lei não representou maior avanço no campo da discriminação racial por ser excessivamente evasiva e lacônica e exigir, para a tipificação do crime de racismo, o autor, após praticar o ato discriminatório racial, declare expressamente que sua conduta foi motivada por razões de discriminação racial. Se não o fizesse, seria a sua palavra contra a do discriminado.(63) É neste momento que começa a via crucis do discriminado em função de sua cor, que muitas vezes passa da condição de vítima para a de radical ou racista.
14. Por sua vez, a lei federal n.º 8.081/90 estabelece os crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou resultantes de preconceitos de raça, cor, religião, etnia ou origem nacional praticados pelos meios de comunicação ou por publicações de qualquer natureza.
15. A mencionada Lei 7.716 mostrou ser de difícil aplicação, já que não cria mecanismos que facilitem a prova de efetiva prática desse crime. Por outro lado, ao tornar necessário provar a intenção discriminatória, conduz a situações de prova em que a palavra do agressor compete com a do agredido e faz evidenciar a ofensa objetiva.
16. A Comissão quer ressaltar uma nova lei emitida durante a presente administração que prevê pena de três anos de reclusão para quem cometer crime de racismo por meio de injúria ou discriminação de raça etnia, cor, religião ou nacionalidade. A principal inovação introduzida pela lei é a caracterização do crime de racismo por ofensa ou preconceito nas relações de trabalho ou pessoais, ampliando o escopo da lei anterior sobre o assunto, que previa sanções apenas para casos de racismo por intermédio de meios de comunicação ou restrições ao acesso locais públicos em função da raça.(64)
17. Cumpre assinalar o avanço que significa a criação das duas delegacias de polícia especializadas em São Paulo e no Rio de Janeiro. O Governo de São Paulo criou uma delegacia de polícia especializada em crimes raciais(65), que começou a funcionar em 1993. No Rio de Janeiro, em setembro de 1994, criou-se uma delegacia policial também especializado em crimes desse tipo(66). No primeiro semestre de 1995, denunciaram-se na de São Paulo, 53 ocorrências de racismo. Este número é relativamente reduzido, segundo fontes que investigaram o tema(67) e seria explicado pelo desconhecimento geral a respeito da condição de crime que essa conduta reveste, já que é freqüentemente confundido com o crime de injúria, calúnia e difamação. Outras explicações referem-se ao desconhecimento da efetividade da Polícia e da Justiça e a uma convivência diária caracterizada por situações de discriminação e preconceitos raciais, o que resulta em resignação e na crença de que os esforços para corrigir a situação serão fúteis.
Medidas contidas no Plano Nacional de Direitos Humanos
18. O Plano Nacional de Direitos Humanos dá ampla cabida a medidas de curto, médio e longo prazo para enfrentar eficientemente o problema, com o objetivo global de valorizar a população negra. A curto prazo, suas propostas são no sentido de promover medidas de ação afirmativa tanto na atividade pública como na privada, incluindo estudos de base, incentivos e medidas de opinião e formação de atitudes públicas. Nesse sentido, atribui-se importância às atividades do Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação (GTEDEO), instituído no Ministério do Trabalho mediante Decreto de 20 de março de 1996, com representação tríplice dos empregadores, dos empregados e do Estado.(68)
19. Uma das medidas a curto prazo digna de nota é a de estimular a presença de grupos étnicos diversos nas propagandas institucionais contratadas pelo órgãos e empresas do Estado. A intenção é evitar a alimentação intencional ou inadvertida de estereótipos através da comunicação estatal, tal como ocorreu com no material de imprensa produzido pelo Estado de São Paulo ou por empresas estatais, que não incluía, de maneira representativa e igualitária, imagens dos diferentes setores étnicos do país.
20. A médio prazo, o PNDH propõe-se revogar toda medida legislativa ou de outra natureza que implique ou gere discriminação, e desenvolver ações afirmativas para o acesso de negros aos níveis universitários, de profissionalização e de desenvolvimento de tecnologia de ponta. Assimismo, a revalorização histórica, a recuperação de documentação e iniciativas didáticas gerais através do sistema educacional. Isto responde a um movimento de reivindicação histórica que tem crescido nos últimos anos e em particular, a partir de 1995, com o objetivo de recuperar para a memória histórica popular, o valor das lutas pela liberdade dos negros no decorrer da história brasileira e, em especial a dos "quilombos", organizações autônomas negras surgidas da rebelião contra a escravatura e a opressão no século passado, e de incorporar os líderes daquelas lutas na galeria das figuras honradas pelo historiografia e pelas comemorações oficiais.
21. Entre as ações positivas do Governo do Brasil, a Comissão toma nota dos esforços empreendidos no sentido de devolver às comunidades negras dos quilombos as terras nas quais vivem e trabalham. Tais iniciativas visam a oferecer segurança aos descendentes dos escravos que integravam os quilombos.
22. O Grupo de Trabalho Interministerial para a valorização da população negra (GTI), criado por Decreto Presidencial de 20 de novembro de 1995, foi encarregado de formular políticas públicas para valorização e promoção dos direitos dos afro-brasileiros. Entre as realizações do seu primeiro ano de trabalho, o Governo destaca as seguintes: criação do programa nacional de combate à anemia falciforme, doença genética que atinge sobretudo indivíduos da raça negra; inclusão do quesito cor nas declarações de óbito e de nascidos vivos; inclusão do quesito raça/cor no censo escolar e em todos os levantamentos estatísticos educacionais; encaminhamento dos estudos e das propostas para o cumprimento do disposto no artigo 68 das disposições transitórias da Constituição para a titulação dos ocupantes das terras remanescentes de Quilombos, a exemplo dos títulos já emitidos para as comunidades de Pacoval e Água Fria (Estado do Pará); proposta de uma programação para a TV-Escola, com vistas á revisão da história do Brasil sob a ótica da contribuição africana para a formação social brasileira; reavaliação dos livros didáticos distribuídos aos alunos do ensino fundamental de todo o país, tendo sido excluídas as publicações que continham preconceitos ou erros formais, bem como discriminação ou estereótipo de raça, cor ou gênero; acompanhamento, junto ao Ministério da Educação, da elaboração dos "Parâmetros Curriculares Nacionais"(69)
23. Outra medida proposta no PNDH, que chama positivamente a atenção da Comissão, refere-se à categorização da população brasileira pelo IBGE, o órgão oficial de estatística e recenseamento, que classifica sem bases científicas e sem objetivo compensatório a população brasileira de origem africana em pardos, mulatos e negros. Segundo a informação da Comissão, essa classificação, antes de representar o melhor instrumento para aplicar políticas de compensação de injustiças históricas, vale, isto sim, como uma legitimação de preconceitos superados e implica uma gradação de valor dos setores da população, inteiramente contrária ao princípio de igualdade estabelecido na Constituição Federal e aos seus compromissos internacionais. O PNDH propõe, de modo específico, que o IBGE adote critérios que acabem com essa discriminação pretensamente estatística.(70)
24. A Comissão considera igualmente importante e urgente o objetivo do PNDH de incentivar as Secretarias Estaduais de Segurança Pública a oferecer cursos de reciclagem e seminários sobre discriminação racial. Esta discriminação por parte de funcionário da polícia também provém do fato de que a população de cor, dadas as suas condições de vida e de pobreza majoritária, é a mais suscetível de sofrer e cometer atos delituosos. Contudo, diferentes indicadores revelam que, mesmo igualando fatores de renda e condição sócio-econômica, a população afro-brasileira é mais suscetível de ser suspeita, perseguida, processada e condenada, do que os demais. O censo penitenciário realizado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, abrangendo o período de janeiro de 1992 a abril de 1993, indicou que mais de 66% da população penal é negra, e de eles 95% indigente e sem condições de contratar advogado. Nesse mesmo sentido, e como reflexo da pobreza, um estudo realizado no Rio de Janeiro indicou que, dos homicídios dolosos contra menores, 54% das vítimas eram menores negros e 33,9% eram brancas, inserindo-se as restantes a outras categorias.(71)
25. Alguns exemplos selecionados pela Comissão mostram os remanescentes dessas atitudes discriminatórias que ainda persistem em alguns setores judiciais e policiais. Em agosto de 1996, em São Paulo, de acordo com investigações oficiais publicadas na imprensa brasileira, nove jovens foram detidos quando estavam em suas residências sem mandado judicial, torturados e obrigados a confessar, mediante torturas, sua suposta participação no assalto a um centro de diversões freqüentado principalmente por brancos, e apresentados ao público como culpados. Testemunhas do assalto que resistiram às pressões policiais no sentido de reconhecer os jovens negros como autores do assalto foram detidas. As autoridades judiciais anularam a investigação, por estar baseada em confissões obtidas sob tortura. Novas investigações policiais identificaram posteriormente os verdadeiros autores: quatro brancos com abundante prontuário policial.(72)
26. Contrariamente, é difícil condenar um branco acusado de discriminação racial. A Justiça tende a ser condescendente, tal como demonstrado por um caso notório ocorrido em 1990, um dos poucos que chegam aos tribunais. A pessoa supostamente discriminada era a professora Ana Augusta da Silva, proibida, por ser negra, de entrar numa escola estadual pela diretora Maria Thereza Ferraz Ramos Féris, que teria ofendido verbalmente a queixosa. Durante o processo, apresentou-se evidência segundo a qual a diretora evitava o acesso de estudantes de cor à escola de que era diretora, encaminhando-os a outras escolas. Apesar das suas evidentes referências contra a população negra, a diretora foi absolvida em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
27. As medidas previstas pelo PNDH e pelo GTEDEO no sentido de gerar incentivos para permitir a igualdade de oportunidades de emprego, salários e promoções respondem a um renovado interesse de setores do governo, e a reivindicações de associações de defesa dos direitos civis. As organizações do movimento negro brasileiro começaram a advogar por estas medidas aproximadamente a partir do começo da década de 90 e já conseguiram estabelecer uma promissora discussão e análise de medidas para compensar a discriminação histórica, especialmente quanto ao acesso à universidade. Iniciou-se também uma sadia discussão no âmbito das organizações de defesa dos direitos humanos, que estão reexaminando até que ponto existe uma motivação racial em certos padrões de violação de direitos humanos que ainda persistem em certos setores.(73)
C. RECOMENDAÇÕES
28. Em face da situação analisada, a Comissão recomenda especialmente o cumprimento dos objetivos e atividades propostas no Plano Nacional de Direitos Humanos para a valorização da população negra, em particular:
a. As ações do Estado no sentido de promover afirmativamente as oportunidades econômicas, de emprego, de educação e de direito da população negra a cargos eletivos em representação popular.
b. As medidas de educação dos funcionários da justiça e da polícia, para evitar ações que impliquem parcialidade e discriminação racial, na investigação, no processo ou na condenação penal.
c. A adoção de medidas de educação e conscientização pública que enfatizem a presença e a ação positiva dos distintos setores que compõem a vida brasileira e tenham desempenhado papel central na sua história.
d. A adoção de medidas para erradicar o uso, nas escolas e nos estabelecimentos de ensino, de livros didáticos que contenham referências pejorativas em relação à raça negra ou conceitos que reflitam estereótipos sobre essa raça. A substituição destes livros por outros que enfatizem a participação dos membros da raça negra na história do país e a importância da sua cultura e valorização.
Disponível em: https://www.cidh.oas.org/countryrep/brazil-port/Cap%201.htm
CAPÍTULO I
A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO DO BRASIL
A. ORDENAMENTO INTERNACIONAL
1. Além de seus compromissos internacionais de caráter universal sobre a promoção e respeito dos direitos humanos,(1) o Brasil se compromete a cumprir as obrigações e garantias decorrentes da Carta da Organização dos Estados Americanos que, em relação aos direitos humanos, consubstanciam-se na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem ("Declaração Americana") e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, "Pacto de San José" ("Convenção Americana"), à qual aderiu em 25 de setembro de 1992, e em seu protocolo relativo à abolição da pena de morte, ao qual aderiu em agosto de 1996, na Convenção Americana para Prevenir e Punir a Tortura (20 de julho de 1989) e na Convenção Americana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (27 de novembro de 1995). Ainda não aceitou a jurisdição compulsória da Corte Interamericana de Direitos Humanos.(2)
2. De acordo com a Constituição Federal, todos os tratados e convenções em que o Brasil é Estado Parte são de aplicação imediata no ordenamento interno do país. Compete ao Poder Executivo celebrá-los a referendo do Congresso Nacional (artigo 84, parágrafo VIII, da Constituição Federal, doravante denominada CF) e, uma vez aceito pelo Congresso, o Presidente, por decreto, ordena sua execução.
3. Essa executoriedade imediata dos compromissos internacionais no âmbito dos direitos humanos faz com que estes sejam diretamente aplicados, sem que seja necessário adotar previamente medidas legislativas, administrativas ou de outra natureza. Isso decorre do artigo 5º da Constituição, que reza o seguinte:
Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
4. A Comissão recebeu, porém, numerosas queixas no decorrer de sua visita de que muitas violações de direitos humanos ficam impunes, entre outras razões, porque se utiliza como justificativa o desconhecimento ou a falta de regulamentação ou de adequação das normas dos tratados internacionais ao direito interno.
5. Nessa mesma ordem de idéias, a Comissão não pode deixar de manifestar preocupação pelo não cumprimento, por parte do Estado brasileiro, de muitas obrigações constantes de instrumentos internacionais de direitos humanos em virtude de que os Estados federados ou entidades estatais que formam a República Federativa exercem jurisdição e têm competência em relação a delitos cometidos em seus respectivos territórios. O chamado "princípio federativo", de acordo com o qual os Estados gozam individualmente de autonomia, tem sido freqüentemente usado como explicação para impedir a investigação e determinação dos responsáveis pelas violações -- muitas vezes graves -- de direitos humanos e contribuiu para acentuar a impunidade dos autores de tais violações.
6. Cumpre salientar que, de acordo com o artigo 28 da Convenção Americana, quando se trate de um Estado Parte constituído como Estado Federal, o governo nacional tem a obrigação de "cumprir todas as disposições da Convenção relacionadas com as matérias sobre as quais exerce jurisdição legislativa e judicial" (parágrafo 1). Quando se trate da "jurisdição das entidades componentes da federação", o governo nacional tem a obrigação de "tomar de imediato as medidas pertinentes, de acordo com sua constituição e suas leis, a fim de que as autoridades competentes de tais entidades possam adotar as disposições cabíveis para o cumprimento da Convenção (parágrafo 2).(3)
B. ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL
Antecedentes
7. No Brasil os direitos e garantias individuais reconhecidos nas Constituições da França e dos Estados Unidos foram recolhidos da Constituição do Império (1824) e na da República (1891) para serem ampliados na de 1934. Entre 1937 e 1946, esses direitos e garantias foram restringidos e voltaram a ser novamente reconhecidos na Constituição de 1946, que seguiu fielmente a de 1934. Um grande retrocesso teve início com o golpe militar de 1964, que marca o começo de 21 anos de ditadura militar (1964-1985), no decorrer dos quais foi aprovada nova Constituição (1967), que foi elaborada pelas autoridades militares e que novamente restringiu as liberdades individuais. Essa restrição aumentou especialmente com o Ato Institucional N.º 1, mediante o qual o regime militar limitou as liberdades civis e os poderes do Congresso; o Ato Institucional N.º 5, de 1968, que suspendeu garantias constitucionais fundamentais e concedeu poderes extraordinários ao Executivo; a Emenda Constitucional N.º 1, de 1969 e, finalmente, a Emenda N.º 7, de 1977, que tornou possível a criação de um foro militar estatal com competência para julgar os crimes cometidos pelos membros da polícia chamada "militar" no exercício de suas funções policiais ordinárias.
8. A Constituição de 1988, atualmente vigente, mantém a forma representativa republicana federal de governo, pela primeira vez consagrada na Constituição de 1891(4) e confirmada em todas as Constituições posteriores.(5) Em seu artigo 2, ela consagra a separação, independência e harmonia dos Poderes Legislativo,(6) Executivo(7) e Judiciário,(8) que são os três poderes da União. Em seu artigo 18, estabelece que a organização político-administrativa compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, que são autônomos, nos termos da Constituição.(9)
Os direitos humanos na Constituição de 1988
9. A Constituição de 1988 representa, no campo dos direitos humanos, importante avanço em relação à de 1967 e às sucessivas emendas constitucionais aprovadas durante a ditadura militar. A Carta constitucional em vigor foi o resultado da percepção quase unânime da sociedade brasileira de que, com o regresso à democracia depois de 21 anos de regime militar, não seria desejável manter a Constituição de 1967 com suas correspondentes emendas, especialmente a Emenda Constitucional N.º 1.
10. Em seu Título I, "Dos direitos fundamentais", a Constituição vigente faz constar a "dignidade da pessoa humana"(10) e a "prevalência dos direitos humanos"(11) entre os princípios essenciais em que se fundamenta a República Federativa do Brasil, na qualidade de Estado democrático de direito. Embora a Constituição não use especificamente a expressão direitos humanos no restante do texto, o princípio de prevalência desses direitos está presente nos diversos capítulos e disposições do mencionado título, no qual se amplia a gama de direitos e deveres individuais e coletivos assegurados na Constituição de 1967 e se tutela grande número de direitos e garantias individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade, políticos e relativos a partidos políticos.
11. No capítulo I, "Dos direitos e deveres individuais e coletivos",(12) por exemplo, pela primeira vez reconhece que não somente os indivíduos,(13) mas também os grupos, têm direitos. Ademais, o artigo 5º, disposição única do aludido capítulo, reconhece a maioria dos direitos e garantias fundamentais incluídos nas convenções internacionais de proteção dos direitos humanos e estabelece medidas de proteção que, em muitos casos, têm características completamente inovadoras. Ao enumerar os direitos e deveres individuais e coletivos, a Constituição reconhece, entre outros, a igualdade perante a lei; a igualdade entre homens e mulheres; o princípio de que somente a lei pode obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer algo; a proibição da tortura e de qualquer tratamento desumano ou degradante; a liberdade de pensamento e culto, de convicção filosófica ou política, de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação; a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, do domicílio, da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas; o acesso à informação; a liberdade de circulação, reunião e associação; a liberdade de associação profissional ou sindical; o direito de propriedade e sua função social; o direito de petição, o direito à justiça e ao devido processo (artigo 5 da CF).
12. O capítulo II trata dos direitos sociais e os capítulos III, IV e V regem, respectivamente, a nacionalidade, os direitos políticos e os partidos políticos.
13. Em relação aos direitos políticos, a Carta constitucional enuncia o princípio da soberania popular (artigo 1 da CF) e estabelece as formas mediante as quais se deve exercer a mesma: pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, nos termos da Lei, mediante plebiscito, referendo ou iniciativa popular (artigo 14, I a III da CF). Quanto aos partidos políticos, proclama a liberdade de criação, fusão, incorporação e extinção, respeitando a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana (artigo 17 da CF)
As ações de garantia
14. A Constituição também prevê seis ações de garantia para a proteção dos direitos pessoais ameaçados: o habeas corpus, o mandado de segurança, o mandado de segurança coletiva, o mandato de injunção, o habeas data e a ação popular.
15. O habeas corpus é o mais antigo dos instrumentos de proteção. Esse instrumento é uma ação constitucional que se concede quando alguém sofre ou é ameaçado de sofrer violência ou coação de sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder (artigo 5, parágrafo LXVIII da CF). O Código de Processo Penal (artigo 648) enumera, entre outras, as seguintes hipóteses em que a limitação do direito de livre circulação deve ser considerada ilegal: quando não houver justa causa; quando a pessoa houver estado presa por mais tempo do que o determinado por lei; e quando a pessoa que ordena a coação não tiver competência para fazê-lo.
16. O "mandado de segurança" destina-se à proteção do "direito líquido e certo não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (artigo 5, LXIX da CF). Trata-se de instrumento efetivo que provoca o exame jurisdicional imediato de um ato de autoridade que, potencialmente ou na realidade, afeta um direito líquido e certo. Foi introduzido em 1926 e protege direitos que até então eram amparados -- embora de maneira deficiente -- pelo habeas corpus. É um instrumentos de grande importância, ainda mais amplo que o habeas corpus, pois protege grande extensão de direitos, inclusive o direito à liberdade, indo mais além da liberdade de locomoção, e o direito à igualdade, ou seja, protege todo direito certo e não impugnável contra as violências e coações de autoridade.
17. O "mandado de segurança coletiva" pode ser solicitado por um partido político com representação no Congresso Nacional ou uma organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída que tenha estado em funcionamento pelos menos por um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados (artigo 5, parágrafo LXX da CF). Esse mandado procura defender os direitos difusos dos membros de uma associação ou coletividade. As entidades legitimadas para solicitar o mandado não necessitam do consentimento de seus membros para fazê-lo, embora devam fazê-lo de acordo com seu mandato e segundo os procedimentos regulamentares.
18. O "mandado de injunção" pode ser solicitado "sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania". (Artigo 5, LXXI da CF).
19. O habeas data tem por objetivo assegurar ao cidadão comum acesso às informações registradas por entidades públicas com respeito à sua pessoa. Também permite que se exija a retificação dos dados se estes estiverem incorretos, quando não se preferir fazê-lo mediante processo secreto, judicial ou administrativo (artigo 5, LXXII da CF). Este recurso protege um direito muito importante na nova era da informação.
20. A "ação popular" permite que qualquer cidadão seja parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato (administrativo) lesivo ao patrimônio público ou o de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. O autor, salvo se comprovada sua má-fé, fica isento do pagamento de custas judiciais. Essa medida é extremamente importante pois, com a possibilidade de anulação de qualquer ato lesivo à moralidade administrativa, se introduz o exame do mérito dos atos administrativos por parte do Poder Judiciário.
C. A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA NO BRASIL
21. A Constituição Federal estabelece as normas aplicáveis à organização do Poder Judiciário em seus artigos 92 a 126.
22. São órgãos do Poder Judiciário: o Supremo Tribunal Federal; o Superior Tribunal de Justiça; os Tribunais Regionais Federais (artigo 108 da CF) e Juizes Federais (artigo 109 da CF); os Tribunais e Juizes do Trabalho (artigos 111 e 114 da CF); os Tribunais e Juizes Militares, e os Tribunais e Juizes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios (artigo 92 da CF). O Supremo Tribunal Federal é constituído de onze Ministros nomeados pelo Presidente da República e é o órgão máximo do Poder Judiciário. Sua função fundamental é a proteção da Constituição Federal,(14) considerada como expressão dos valores sociais e políticos brasileiros. O Superior Tribunal de Justiça, que é composto de, pelo menos, trinta e três Ministros nomeados pelo Presidente da República, é um órgão de articulação e defesa do direito objetivo federal.(15) O Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores têm sua sede na Capital Federal e jurisdição em todo o território nacional.(16)
23. Compete à União Federal organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios.(17) Os Estados da Federação, por outro lado, têm competência para organizar sua justiça, desde que se observem os princípios estabelecidos na Constituição Federal.(18) A competência dos Tribunais e Juizes Estaduais acha-se estabelecida na Constituição do Estado, sendo a lei de Organização Judiciário iniciativa do Tribunal de Justiça.(19) Cabe aos Estados a instituição de representação da inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão.
24. A Constituição Federal, por outro lado, assegura aos tribunais a autonomia orgânico-administrativa, que compreende a autonomia para estruturar e determinar o funcionamento de seus órgãos, bem como a autonomia financeira, que compreende a elaboração de seu próprio orçamento.(20)
25. O Código Penal (CP) rege tudo o que se relaciona com o direito penal(21) e o Código de Processo Penal (CPP) e tudo o que diz respeito ao procedimento penal aplicável à justiça penal comum. Além desses corpos jurídicos, há outros especializados, como o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar (CPPM), relativos aos procedimentos criminais perante a justiça militar (artigo 1 do CPPM). Os quatro códigos mencionados aplicam-se a todo o território nacional (artigos 5 do CP, 1 do CPP, 7 do CPM e 1 CPPM, respectivamente), ou seja, essas normas se aplicam em relação a crimes cometidos tanto no Distrito Federal como nos Estados da Federação.
26. Conforme se analisa in extenso no capítulo relativo a "Violência e impunidade policial", há no Brasil duas justiças militares paralelas, uma das quais com competência em relação aos delitos cometidos pelos membros das forças policiais estaduais que integram a chamada "polícia militar", que cumpre a maioria das funções típicas de segurança para toda a população, inclusive as de policiamento ostensivo, preservação da tranqüilidade e prevenção e repressão do crime. Essa justiça militar estadual, de acordo com a Constituição Federal, pode ser criada pela lei estadual no respectivo Estado federado ou no Distrito Federal, mediante proposta do Tribunal de Justiça. Tem competência para processar e julgar os membros da polícia militar acusados de crimes definidos como militares, contra a população civil. Conforme se analisa no capítulo III, sua competência foi reduzida parcialmente pela nova lei 9299/95, embora essa redução (que sujeita à justiça comum os "crimes dolosos contra a vida") não modifica significativamente o âmbito desse foro privilegiado, que tem sido fonte de impunidade. Em abril de 1997, um novo projeto do Executivo Federal, propondo a emenda constitucional para conferir à justiça federal competência para julgar crimes contra os direitos humanos, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
27. Há outra justiça militar, de âmbito federal e regida pela lei 8457/92, originariamente para processar e julgar os membros das Forças Armadas.
NOTAS AO CAPITULO I
1. No âmbito das Nações Unidas, o Brasil, além de sua obrigação de respeitar a Carta que estabelece, entre outras obrigações, a de "promover o respeito universal e a observância dos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos..." (artigos 55 y 56), ratificou o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (24 de abril de 1992) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (24 de janeiro de 1992).
2. O Brasil também é parte, entre outros, dos seguintes tratados ou convenções em matéria de direitos humanos: Convenção sobre Asilo (assinada em 1928; ratificação ou adesão em 3 de setembro de 1929); Convenção sobre Asilo Político (assinada em 1933; ratificada em 23 de fevereiro de 1937); Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher (assinada em 1948 e ratificada em 19 de março de 1952); Convenção Interamericana sobre Concessão dos Direitos Políticos à Mulher (assinada em 1948 e ratificada em 21 de março de 1950); Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (assinada em 1948 e ratificada em 4 de setembro de 1951; Convenção (n.º 98) sobre o Direito de Organização e Negociação Coletiva (1949; ratificação ou adesão em 18 de novembro de 1951); Convenções de Genebra (I a IV) sobre Direito Internacional Humanitário (assinada em 1949; ratificação ou adesão em 29 de junho de 1957); Convenção (n.º 100) sobre Igualdade de Remuneração (1951; ratificação ou adesão em 25 de abril de 1957); Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (assinada em 1951 e ratificada em 13 de agosto de 1963); Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (1952) (assinada em 1953 e ratificada em 13 de agosto de 1963); Convenção Relativa à Escravidão (assinada em 1953; adesão em 6 de janeiro de 1966); Convenção sobre Asilo Diplomático (assinada em 1954; ratificação ou adesão em 17 de setembro de 1957); Convênio Suplementar sobre a Abolição da Escravidão, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravidão (assinada em 1956; adesão em 6 de janeiro de 1966); Convenção (n.º 105) sobre a Abolição do Trabalho Forçado (1957; ratificação ou adesão em 18 de junho de 1965); Convenção (n.º 111) sobre Discriminação no Emprego e na Profissão (1958; ratificação ou adesão em 26 de novembro de 1965); Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino (1960; ratificação ou adesão em 19 e abril de 1968); Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965; assinada em 1966 e ratificada em 27 de março de 1968); Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1966; assinado em 1967; adesão em 7 de março de 1972); Convenção (n.º 35) sobre Representação dos Trabalhadores (1971; ratificação ou adesão em 17 de maio de 1990); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de discriminação contra a Mulher (1979; assinada em 1979 e ratificada em 1º de fevereiro de 1984); Convenção contra a Tortura e Outros Instrumentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes (1984; assinada em 1984 e ratificada em 28 de setembro de 1989; Convenção Interamericana Para Prevenir e Punir a Tortura (1965; assinada em 1985 e ratificada em 20 de julho de 1989); Convenção sobre os Direitos da Criança (1989; assinada em 1989 e ratificada em 24 de setembro de 1990). Informação extraída dos Arquivos da Divisão de Atos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores e do Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, Ministério das Relações Exteriores, da Fundação Alexandre de Gusmão e do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (1994).
3. Cabe notar que o Governo Federal tem obtido a cooperação dos Estados em uns poucos casos graves, fazendo com que a Policia Federal garanta a isenção de determinadas investigações e fornecendo meios para apuração de denúncias.
4. A Constituição de 1981 marcou o final do governo imperial.
5. As duas Constituições adotadas durante o período de Vargas, que foi extremamente centralizador, mantinham, pelo menos formalmente, o sistema representativo federal de governo. A Constituição de 1946, que representou um retorno aos princípios liberais, também naturalmente conservou essa forma de governo. A Constituição de 1967 e a Emenda N.º 1, emitidas durante o período militar, não modificaram esse elemento tradicional.
6.
7. -
8. O Poder Judiciário é exercido pelos seguintes órgãos e autoridades: O Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e Juizes Federais, os Tribunais e Juizes do Trabalho, os Tribunais e Juizes Eleitorais, os Tribunais e Juizes Militares e os Tribunais e Juizes dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios (artigo 92 da CF). Os juizes do órgão judiciário máximo são nomeados pelo Poder Executivo com a aquiescência do Senado (artigo 102 da CF). Os juizes do Superior Tribunal de Justiça também são nomeados pelo Poder Executivo depois de o Senado aprovar a seleção, mas devem ser escolhidos dentre grupos especificados na Constituição (artigo 104 da CF). Os dos Tribunais Regionais Federais são igualmente nomeados pelo Presidente (artigo 107 da CF).
9. O Distrito Federal é a unidade política que cabe à Capital Federal, Brasília (artigo 18, parágrafo 1 da CF). Tem as mesmas prerrogativas legislativas reservadas aos Estados Federais e aos Municípios (Artigo 32, parágrafo 1 da CF) e tem, inclusive, um Governador eleito pelo povo e representantes na Câmara dos Deputados (artigo 32, parágrafo 2, em concordância com os artigos 77 e 45, parágrafo 2, da CF) e no Senado Federal (artigo 46 da CF). Os Territórios Federais, mencionados no artigo 18, parágrafo 2, da Constituição, integram a União e gozam de autonomia administrativa, mas não de autonomia política. A existência dos territórios é justificada pelo atraso no desenvolvimento da região ou da comunidade. Os territórios acham-se, teoricamente, em situação transitória, aguardando o momento de transformar-se em Estados ou de serem integrados a outro Estado. Os territórios não têm representantes no Senado (Artigo 46 da CF) e seus governadores são nomeados pelo Presidente da República (artigo 84, parágrafo XIV, da CF) e aprovados pelo Senado Federal (artigo 52, parágrafo III, da CF).
10. 10 Artigo 1, parágrafo III, da CF.
11. 11 Artigo 4, parágrafo II, da CF.
12. 12 Artigo 5, parágrafos I a LXXVII, da CF.
13. 13 Ver, por exemplo, o artigo 103, parágrafos VII e IX e o artigo 5º, parágrafo 5, da Constituição, que permitem que a ação de inconstitucionalidade e a instituição do mandado de segurança coletivo sejam propostos, respectivamente, por um partido político ou um sindicato.
14. 14 O artigo 102 da Constituição Federal expressa, nesse sentido, que "Compete ao Supremo Tribunal Federal, preciptuamente, a guarda da Constituição...".
15. 15 A competência do Superior Tribunal de Justiça está dividida em três áreas: 1) a competência originária, como juízo único e definitivo, para processar e julgar as questões a que se refere o parágrafo I do artigo 105 da Constituição Federal, entre as quais se incluem, no caso de delitos comuns, os governadores e altas autoridades judiciais e altas autoridades judiciárias dos Estados; 2) competência para julgar, em recurso ordinário, as causas a que se refere o parágrafo II do aludido artigo; e 3) competência para julgar, em recurso extraordinário, quando se recorrer da decisão por contrariar a Constituição; por declarar a inconstitucionalidade de um tratado ou Lei Federal; ou por julgar válida uma lei ou ato do governo local questionado por contrariar a constituição Federal (parágrafo III da mesma disposição).
16.
17. Artigo 21, parágrafo XIII, da CF.
18. Artigo 125 da CF.
19. Artigo 125, parágrafo 1, da CF. O parágrafo 2 do mesmo artigo estabelece o seguinte:
20. O artigo 99 da Constituição Federal dispõe o seguinte:
Ao Poder Judicial é assegurada autonomia administrativa e financeira.
1º Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados juntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias.
2º O encaminhamento da proposta, ouvidos os outros tribunais interessados, compete:
I. no âmbito da União, aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com a aprovação dos respectivos tribunais;
II. no âmbito dos Estados e no do Distrito federal e Territórios, aos Presidentes dos Tribunais de Justiça, com a aprovação dos respectivos tribunais.
21. Entendido como a repressão dos crimes ou delitos mediante a imposição das penas.
CAPÍTULO II
OS DIREITOS SOCIAIS E ECONÔMICOS NO BRASIL
1. A adoção de medidas para progressivamente conseguir a plena efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais é um compromisso internacional assumido pelo Brasil ao ratificar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) segundo seu artigo 26, que assinala serem esses direitos os "constantes da Carta da OEA...". A esse respeito, a Carta da OEA, em seu artigo 33 indica que, entre os objetivos básicos de seu desenvolvimento integral acordados pelos países na Carta, encontra-se a igualdade de oportunidades e a distribuição eqüitativa da renda. A Comissão considera importante incluir neste relatório um panorama sucinto da situação sócio-econômica do Brasil pois, além do exposto, os particulares desequilíbrios quanto à distribuição da renda e oportunidades no Brasil são, no parecer da Comissão, fator central gerador de situações propícias à violência e à violação dos direitos humanos.
2. Cumpre ao Estado promover seu desenvolvimento integral com total soberania no que se refere a suas políticas e estratégias, mas de acordo com esse compromisso tais objetivos são indeclináveis. Além disso, os estudos salientam a importância das decisões do Estado no melhoramento dessas situações, demonstrando-se, especificamente para o Brasil, que "a variação significativa entre Estados (federais) quanto a condições de pobreza que não se explicam unicamente por diferenças de renda, sugere que as políticas e estrutura econômica também são importantes variáveis".(22)
3. Conforme observa um extenso relatório do Banco Mundial sobre o tema: "Por vários motivos, a pobreza recebe maior atenção no Brasil atual do que no passado. O Presidente Fernando Henrique Cardoso fez da justiça social uma prioridade de sua Administração..."(23) Ainda assim, embora no ano passado se tenha conseguido reduzir o número de indigentes e relativamente aumentar sua capacidade de consumo ainda não se conseguiu modificar qualitativamente a situação.
4. Quão ampla é a pobreza no Brasil varia segundo as estimativas, mas todas salientam não só sua magnitude absoluta como também a desigualdade extrema da distribuição da renda, esta última considerada uma das mais desiguais do mundo.(24) Do total da população do Brasil, os 20% de renda mais alta receberam trinta e duas vezes mais do que os 20% de renda mais baixa, entre 1981 e 1993. Para 1990, a CEPAL publica que, da população urbana, os 40% mais pobres recebiam 9,64% do produto, ao passo que os 10% mais ricos recebiam 41,7% do mesmo.(25) Dados oficiais de 1994 mostram que os 20% mais pobres recebem 2% da renda nacional e os 10% mais ricos recebem os 49,7% da mesma.(26)
5. A diferença entre as cidades e as zonas rurais é igualmente significativa: 66% da população rural do Brasil encontra-se abaixo da linha da pobreza, ao passo que a proporção de pobres na zona urbana é de 38%. Cumpre assinalar que a proporção de pobres urbanos vem crescendo em decorrência do êxodo de pobres rurais para as cidades.
6. As estimativas mais conservadoras(27) indicam que 24 milhões de brasileiros encontravam-se abaixo da linha da pobreza em 1980, ou seja, 17,4% de sua população. Outras análises, como o Mapa da Fome(28) estima que 22% da população (32 milhões) são pobres; e outras ainda estimam que há 42 milhões de pobres, dos quais 17 milhões são indigentes (pobreza extrema).(29) Outras estimativas baseadas em outros indicadores elevam essa proporção para 43,6% da população.(30) O governo indica que como resultado do Plano Real a proporção de pobres que era de 33.4% em 1994 se reduz para 27,8% em 1995 e 25,1% em 1996. A parcela da renda apropriada pelos 50% mais pobres da população aumentou de 11,3% para 12,3%. Assim, o grau de desigualdade caiu de 5,73 em 1994 para 5,13 em 1995 e 5,07 em 1996.(31)
7. A desigualdade de renda acentua-se pela similar desigualdade de acesso a serviços públicos básicos: 20,3% da população não têm acesso a água potável, nem 26,6% a serviços sanitários (saneamento, esgoto, etc.) embora a situação tenha melhorado desde 1975-80, época em que quase o dobro da população não dispunha de tais serviços. Igual fenômeno mostram indicadores tais como o de mortalidade infantil, que é de 57 por mil (um dos mais altos da América), mas que na década de 60 era de 116 por mil. O mesmo ocorre com a educação, uma vez que 3.215.000 crianças de 6 a 12 anos não dispunham de serviços escolares em 1992, embora a tendência seja positiva, uma vez que o analfabetismo baixou de 34% em 1970 a 18% em 1990/95.(32) Em síntese, a situação é grave, mas era muito mais grave há 20 anos.
8. A análise da distribuição dos gastos públicos com serviços sociais (saúde, educação, previdência social) mostra que tais gastos convergem a favor dos ricos,(33) que recebem os maiores benefícios, quando por definição esses gastos públicos deveriam favorecer compensatoriamente às famílias pobres a fim de ajudar a reduzir a desigualdade de acesso a oportunidades e serviços básicos.
9. Como há mais crianças nos estratos pobres do que nos estratos médios e ricos e como são estas, os membros mais vulneráveis da sociedade, essa má distribuição de benefícios afeta especialmente as crianças pobres, com as conseqüências, entre outras, analisadas no capítulo pertinente. 15% das crianças brasileiras achavam-se em estado de desnutrição em 1989, elevando-se essa percentagem para 23% e 27% no Norte e no Nordeste, respectivamente.(34)
10. O Brasil é um país muito diverso e a desigualdade social manifesta-se também regionalmente. A proporção de pobres varia de 7% dos residentes urbanos de Curitiba e de Porto Alegre até 44% entre os habitantes rurais do Nordeste. Mais da metade dos brasileiros pobres vivem no Nordeste, situação que, entre outras, é uma das fontes dos problemas analisados no capítulo sobre "trabalhos forçados" entre os trabalhadores rurais. Em geral, a população rural está em piores condições de pobreza e acesso a serviços do que seus correspondentes urbanos e assim, apesar de três quartos da população ser urbana, metade dos pobres são residentes rurais.(35)
11. Outro fator determinante da pobreza é a origem social. Os negros e mulatos constituem um setor desproporcionalmente alto entre os pobres, uma vez que estes representam 42,5% da população total, mas 62,4% da população pobre.(36)
12. O Governo atual reconheceu a gravidade dessa situação(37) e sua relação, entre outros fatores, com a má distribuição da terra e outros aspectos da economia rural. A Comissão analisa no capítulo pertinente os problemas de direitos humanos diretamente relacionados com a concentração da propriedade da terra e as condições de trabalho rural. Nos últimos meses, o Governo tomou algumas medidas importantes a esse respeito, especialmente no que tange à supressão de privilégios fiscais e de outro tipo que facilitavam a manutenção de latifundios improdutivos e a concentração da terra, situações estas, de conseqüências explosivas e de violação dos direitos humanos, considerando-se que amplos setores de camponeses e trabalhadores rurais não têm acesso à propriedade da terra e a recursos produtivos.
13. Cumpre à Comissão salientar o parco resultado do desempenho do Governo entre 1980 e 1990, década em que, segundo o Banco Mundial, "praticamente não houve redução da pobreza no Brasil, considerando-se -- diz o relatório -- não só a proporção de pobres mas quão pobres eles são, bem como as condições dos grupos mais pobres"; e em que os setores mais pobres foram os que mais sofreram em decorrência das tendências econômicas da década de 80.(38)
14. Segundo informação do Governo pela CIDH, desde 1986 a 1996 a mortalidade infantil caiu (35,3% entre 1988 a 1990, e de 11,9% de 1990 a 1993), sendo a taxa para essa década de 48 mortes em cada 1000 nascidos vivos. Se prevê que no ano 2000 a proporção chegue a 31,2 por mil. Também informa sobre a diminuição da desnutrição infantil, passando de 15,7% em 1989 a 10,5% em 1993; contudo nas áreas rurais e de 16,3%. Igualmente se ampliou a rede de distribuição de água encanada e de esgotos; e os dados apontam para uma melhoria geral nas condições de saúde das crianças. Cerca de 90 por cento dos meninos e meninas de 5 a 14 anos frequentam a escola. Segundo informação do Governo, de 1993 a 1995, 13 milhões de brasileiros superaram a linha da pobreza, e o consumo de alimentos e proteinas nas camadas de mais baixa renda aumentou significamente.
15. A Comissão considera especialmente útil fazer menção às obrigações internacionais do Brasil quanto à pobreza e à distribuição da renda conforme a Carta da OEA e a CADH, observando que, de acordo com cálculos confiáveis, "seria possível eliminar a pobreza no Brasil (dando a cada pessoa pobre o suficiente para colocar-se acima da linha da pobreza)"com um custo de menos de 1% do produto interno bruto.(39)
NOTAS AO CAPITULO II
WB Report 1995, op. cit., p. 32.
PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) Human Development Report, 1996. Oxford University Press, NY, 1996. De 37 países de todo o mundo e de todos os níveis de desenvolvimento, com dados registrados neste relatório, a cifra para o Brasil indica a maior distância entre os 20% da população de renda mais alta e a mais pobre.
CEPAL (Comissão Econômica para WB Report 1995. (World Bank Brazil), A Poverty Assessment, Report 14323'BR) June 1995. Washington, D.C. (doravante "WB Report 1995"). O exemplo do Estado do Ceará, um dos que se encontram em pior situação no Nordeste, mas que estabeleceu políticas bem-sucedidas de redução da pobreza, mostra a capacidade do Estado de influir positivamente em tais condições. a América Latina). Panorama Social de América Latina 1995. Santiago, Chile, 1995, p. 145.
Embaixada do Brasil. Sociedade, Cidadania e Direitos Humanos, Washington, D.C., 1995.
WB Report 1955, p. X.
Peliano, Anna Maria T.M. Coord. 1993 O Mapa da fome I-III. Documentos de Política No. 14.16-IPEA
WB Report 1995, p.X.
CEPAL, op. cit., p. 145
Três Anos de Plano Real. Secretaría de Telecomunicações(www.radiobras.gov.br)
PNUD - Human Development Report, cit.
WB Report 1995, p. 54.
Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN), 1989.
WB Report 1995, p. XI.
Rocha, Sônia, Perfil da Pobreza no Brasil, 1993. Ver o capítulo sobre discriminação racial. O termo racial é utilizado segundo a nomenclatura da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Report on the Human Rights Situation in Brazil, filed by the Government according to Art. 9 of the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination. UN doc.CERD/C/263 ADD 10 e HRI/CORE/1 Add 53.
WB Report 1995, p. 24-25.
WB Report 1995, p.18.
CAPÍTULO III
A VIOLÊNCIA POLICIAL, A IMPUNIDADE E O FORO PRIVATIVO MILITAR DA POLÍCIA
A. VIOLÊNCIA E IMPUNIDADE POLICIAL
1. As forças de segurança brasileiras foram repetidamente acusadas de violar de maneira sistemática os direitos das pessoas e de que há um sistema que assegura a impunidade dessas violações. A Comissão considera que efetivamente há uma história de práticas violatórias da polícia, como comprovou a justiça brasileira e reconheceu o próprio Governo em seu Plano Nacional de Direitos Humanos, embora não seja conveniente adjudicar em geral responsabilidades violatórias a todas as forças de segurança nacionais ou estaduais.
2. Anteriormente à análise do tema da violência ilegal que advém da açao destas forças, cabe apresentar uma análise de sua estrutura e responsabilidades, para então passar a um estudo da violência policial e de seus mecanismos de controle internos e externos.
Estrutura do sistema policial
3. A competência para exercer, organizar e garantir a segurança pública é distribuída entre a União e os Estados, existindo uma Polícia Federal e, em cada Estado, uma polícia civil e outra chamada de polícia militar.
4. A Polícia Federal, nos limites da competência da União, está subordinada ao Ministério da Justiça e atua em todo o território nacional. A principal função da Polícia Federal é "comprovar as infrações penais contra a ordem política e social; e contra os bens, serviços e interesses da União; de suas entidades autárquicas e empresas públicas, bem como outras infrações que tenham repercussão interestadual ou internacional ou exijam repressão uniforme segundo a lei dispõe. Também se encarrega de prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e o contrabando e desvio destes, na polícia marítima, aérea e fronteiriça e no exercício das funções da polícia da União".
5. As polícias estaduais dividem-se em polícia civil e polícia "militar". Esta última cumpre tarefas próprias das polícias civis típicas, subordina-se diretamente ao Poder Executivo (Governador e Secretário de Segurança Pública de cada estado) e não é um força interna do aparato militar nacional. Contudo, mantém o nome de polícia "militar" que lhe foi atribuído ao ser criada em 1977 no decorrer do período de governo militar.(40) Insistindo-se em que não se trata propriamente de uma força militar e em que se subordina diretamente ao Poder Executivo de cada estado, figurará neste relatório entre áspas.
6. A "polícia militar", tem a responsabilidade do policiamento ostensivo e da preservação da ordem pública, ou seja, ela se ocupa, primordialmente, das tarefas diárias de patrulhamento e de perseguição de criminosos. Quanto à subordinação, as polícias estaduais, tanto "militares" quanto civis, subordinam-se aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (Artigo 144, parágrafo 6 da CF). O chefe das polícias estaduais é o Secretário de Segurança Pública, auxiliar direto do Governador e responsável pelos atos que pratica ou referenda no exercício de seu cargo.
7. A polícia civil exerce a função de polícia judicial do estado, encarregando-se de verificar as infrações penais, com exceção das penas militares e das de competência da Polícia Federal.
A violência policial
8. A Comissão por anos vem sendo informada por órgãos governamentais, pela imprensa e por organizações não-governamentais da atuação violenta das polícias estaduais, especialmente da militar, acusada de atuar violentamente tanto no exercício de suas funções como fora dele. Um argumento comumente usado pelas polícias "militares" sobre as acusações que lhes são feitas sobre as múltiplas mortes que ocasionam é que estas são ocasionadas em legítima defesa ou no estrito cumprimento do dever.(41) Embora seja certo que em muitos estados há um clima de violência delinquente, há provas de que a reação da polícia não só excede os limites do legal e regulamentar mas, em muitos casos, os funcionários policiais usam de seu poder, organização e armamento para atividades ilegais. A Comissão quer, ao mesmo tempo, salientar que o Governo Federal e alguns governos estaduais se empenham em corrigir esses excessos e violações, em geral por iniciativa de organizações da sociedade civil e com o apoio delas.
9. Em 1994, dados parciais para 14 estados federados do Brasil revelam que ocorreram 6.494 homicídios de todos os tipos e que, para cerca da metade deles, há atribuição de responsabilidade. Destes últimos, 8% são atribuídos a policiais "militares" e outros 4% a "esquadrões da morte". Analisando Estado por Estado o perfil dos acusados, há importantes diferenças: acusam-se policiais como responsáveis em 17% dos casos em Alagoas; em 6% a 9% dos casos no Amazonas, Amapá, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul; e em 5% ou menos dos casos no Ceará, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Roraima e Sergipe.
10. Entretanto, essas percentagens aumentam se incluem policiais de todos os tipos, guardas privados e membros de grupos de extermínio. Por exemplo, no Estado de Pernambuco, revela-se que dos 1.176 acusados de homicídio, no período de janeiro de 1994 a outubro de 1995, 215 (18,3%) eram policiais, e outros 154 (13,1%) eram membros de grupos de extermínio.
11. Segundo informações recebidas, grande número dessas mortes não são causadas por ação da polícia no estrito cumprimento do dever; muitas vezes, essas mortes estão relacionadas com as chamadas "execuções extrajudiciais", decorrentes da participação de membros da polícia estadual em grupos de extermínio, inclusive de adolescentes e crianças. No caso de mortes ocasionadas em serviço, de acordo com o levantamento feito pela própria polícia, tem peso considerável a falta de preparação profissional.
12. A Comissão Parlamentar de Investigação dos assassinatos de crianças e adolescentes no Brasil chegou à conclusão de que grande parte da responsabilidade por esse tipo de crime recaía sobre os policiais "militares", concluindo, ademais, que os policiais acusados de crimes eram apoiados em diversas frentes, a começar pelas deficientes investigações policiais e, em seguida, pela maneira indulgente com que eram tratados pela justiça militar.
13. As explicações dadas pelas autoridades sobre esses casos tornam evidente que, apesar das profundas transformações políticas por que passou o país desde o fim do governo militar, a polícia "militar" continua a seguir o modelo repressivo desse governo, motivo por que os membros dessas polícias orientam-se no sentido de atuar de maneira violenta, a fim de prevenir ou aniquilar possíveis movimentos então considerados subversivos. Daí o fato de que muitos policiais "militares" cometam atualmente no desempenho de suas funções abusos que são notados inclusive quando, do exame das vítimas, se infere que foram mortas por disparos fatais em partes vitais do corpo ou nas costelas, verificando-se claramente que as mesmas não tentavam resistir, estando em muitos casos desarmadas.
14. A criminalidade das cidades brasileiras é apontada pelas autoridades policiais como uma das causas da violência policial. A Comissão pôde, porém, observar que nem sempre as vítimas de abusos cometidos pelos policiais têm relação com o mundo do crime.
15. O Governo sustém que, após vários incidentes de flagrantes abusos brutais, que vão desde o mal tratamento de prisioneiros até a participação em esquadrões da morte, o Governo Federal e alguns governos estaduais deram início a intensivos programas de combate à ação policial e dos grupos de extermínio. Ademais, a Polícia Federal iniciou em 1993 uma investigação especial sobre a má conduta policial. Unicamente no Estado do Rio de Janeiro, 131 membros de esquadrões da morte foram processados nos últimos dois anos (1994 e 1995), 64 dos quais achavam-se presos em fins de 1995. Além disso, foram expulsos da força policial.
16. Segundo opiniões autorizadas, os excessos cometidos não têm atualmente relação com "crimes políticos", mas com a criminalidade comum que, na mente de alguns setores policiais, e mesmo civis, está identificada com estereótipos de que provém dos "negros", dos "desempregados", dos "pobres", das "meninas de rua" ou dos "meninos de rua".(42)
17. A violência policial com respeito às crianças, especialmente de rua, ao que parece é encarniçada em alguns Estados. Na Bahia, por exemplo, a Comissão Legislativa de Direitos Humanos, em abril de 1995, deu uma audiência sobre o tema, na qual recebeu informações sobre cinco matanças atribuídas à polícia "militar" estadual, três das quais matanças de crianças.
18. Em Manaus, em dezembro de 1994,um jovem de 19 anos, confundido com outro, foi duramente golpeado por policiais e em seguida, recebeu um tiro na espinha dorsal. Ao cair, foi novamente agredido a pontapés restando paralisado.(43) Casos como esse ocorrem com freqüência, sendo também freqüente o fato de que os policiais que cometem abusos chegam, às vezes, a receber prêmios da corporação policial por sua atuação, considerada exemplar. A Comissão foi informada de que autoridades policiais em alguns estados brasileiros chegam a apoiar publicamente a atuação violenta dos policiais, como se verifica ademas em publicações jornalísticas de Novembro de 1996. A Comissão manifesta preocupação ante esse fato, já que seria um estímulo à violência policial, ao legitimar uma violência institucional.
19. Existem ainda casos em que policiais acusados de vitimizarem supostos os criminosos são premiados e promovidos, como exemplo, o episódio de um cabo previamente relacionado a 49 assassinatos e que recebeu o titulo de "Policial do Ano".(44) Por sua vez, o coronel que o condecorou foi acusado de praticar 44 mortes em seus 24 anos de carreira(45).
20. As estatísticas oficiais da polícia "militar" do Estado de São Paulo mostram que entre 1988 e 1992 verificaram-se as seguintes mortes de civis em operações da polícia "militar": 294 em 1988; 532 em 1989; 585 em 1990; 1.074 em 1991; e 1470 em 1992.(46) Em 1994, a polícia "militar" matou 522 pessoas e, só nos três primeiros meses de 1995, a polícia "militar" teria matado 136 civis.(47) Tais índices aumentaram vertiginosamente de 1988 a 1993. A situação inverteu-se na área metropolitana de São Paulo, onde o número de civis mortos pela polícia "militar" vem diminuindo desde 1993, depois do massacre de presos em Carandiru. Em 1992, houve 1.190 civis mortos pela polícia, mais que nos quatro anos posteriores, em que houve em total 1.015. Em 1996, a cifra baixou a 106 civis mortos por ação policial.(48)
21. Enquanto a situação, em número de mortos pela polícia, parece melhorar em São Paulo, ocorre no Rio de Janeiro um fenômeno alarmante desde maio de 1995, ocasião em que tomou posse um novo Secretário de Segurança Pública. Desde esse mês, no período que se estende até fevereiro de 1996, a media de mortos pela polícia "militar", por mês, elevou-se de 3,2 a 20,55 pessoas, ou seja, um total de 201 pessoas em 1996. Um terço das vítimas foram mortas pelo Nono Batalhão o qual patrulha numerosas áreas de favelas.(49)
22. Chama a atenção da Comissão que, embora o normal em enfrentamentos armados seja que haja uma proporção muito maior de feridos do que mortos, nesse período no Rio de Janeiro o número de civis mortos pela polícia "militar" em enfrentamentos foi mais de três vezes o número de civis feridos nos mesmos. Isso demonstraria um excesso de uso de força e, inclusive, um padrão de execuções extrajudiciais pela polícia do Rio de Janeiro. Essas atitudes policiais repercutiram sobre a confiança da população em sua polícia - elemento chave do império do direito - assinalada como muito pouca no Rio de Janeiro. Nos anos de 1995 e 1996, somente 12% daqueles que foram roubados comunicaram o fato à polícia. Essa desconfiança é mais acentuada por nível social, uma vez que um de cada três dos roubados dos setores de alta renda informaram à polícia, ao passo que só um o fez de cada dez roubados de setores pobres.(50)
23. Entretanto, os casos de execuções extrajudiciais por parte da polícia "militar" ocorrem não somente no desempenho de suas funções, mas também fora delas. Esses casos são diariamente comunicados por fontes locais e internacionais e, no parecer da Comissão, demonstram um padrão de conduta alarmante, que merece atenção especial.
24. Por esse motivo, mencionam-se alguns dos muitos casos comunicados por fontes locais e internacionais no período a que se refere este relatório (1988-96), não avaliando cada um dos fatos nele descritos, mas como ilustração do padrão de violência existente.(51) Os casos que implicam violência em geral serão mencionados nesta parte do relatório e os que envolvem violência contra menores serão tratados no capítulo relacionado com execuções extrajudiciais de crianças e adolescentes. Também serão citados alguns exemplos na parte relativa aos esquadrões da morte ou grupos de extermínio.
Dificuldades na investigação da violência policial
25. A Comissão constatou que, quando as autoridades decidem investigar os casos de violência policial, encontram enormes dificuldades em reunir provas que identifiquem os responsáveis pelas violações dos direitos humanos. Uma dessas causas é o conceito errôneo de corporativismo policial que encobre a violência praticada por seus membros mediante a obstrução da justiça. A Comissão recebeu informações, por exemplo, de que a tortura é comumente utilizada pelas polícias estaduais como método de investigação. Segundo tais informações, quando as autoridades querem verificar as denúncias de torturas, encontram dificuldades e mesmo desobediências às ordens judiciais.(52)
26. Outro obstáculo de fato enfrentado consiste em que no Brasil prevalece a chamada "lei do silêncio", segundo a qual, as testemunhas oculares ("testemunhas") se negam a esclarecer as circunstâncias dos fatos presenciados por temor a possíveis represálias. O medo de represálias é tão forte que muitas vezes as próprias vítimas da violência policial preferem calar-se a ser alvo dessas represálias. Ainda não há no Brasil um sistema efetivo de proteção das testemunhas, embora se esteja começando a implementar um desses sistemas, como veremos mais adiante.(53)
27. O medo de testemunhar fundamenta-se em casos em que a "lei do silêncio" não é respeitada e a potencial testemunha põe sua vida em perigo. Um exemplo disso ocorreu em 6 de novembro de 1994, com o jovem Eduardo de Araújo, de 14 anos, sobrevivente da matança da Candelária. O jovem foi baleado e morto por dois homens que todos os dias passava pela rua onde Eduardo morava, atirando para o alto. O dia em que Eduardo foi assassinado, os homens repetiram a rotina, mas ordenaram a ele que corresse, transformando-o em alvo móvel.(54)
28. Por outro lado, quando uma testemunha se dispõe a colaborar com a justiça na identificação de criminosos, depara-se ela com a lentidão do próprio processo judicial e podem transcorrer meses sem que seja chamada a testemunhar, sem que disponha de serviço algum que a proteja, o que desestimula a colaboração com a justiça. Esse foi o caso de Wagner Dos Santos, lavador de carros, de 23 anos, principal testemunha da matança da Candelária, que sofreu um atentado. Após a matança, Santos foi para a Bahia a fim de proteger-se. Entretanto, quinze dias depois de voltar ao Rio de Janeiro - e vivendo na Casa de Proteção de Testemunhas, sob a proteção da Guarda da Justiça do Estado - sofreu um segundo atentado por parte de policiais "militares" envolvidos na matança.(55)
29. A desconfiança da polícia com respeito à população marginal e em relação à lei desperta, por sua vez, a conseqüente desconfiança da população para com a polícia. Essa desconfiança, embora varie de um estado para outro, é muito alta na maioria deles, o que reflete a situação de insegurança em que se vive em alguns deles, insegurança essa propícia à violação dos direitos humanos. No Estado da Bahia, por exemplo, pesquisas realizadas em 1995 revelaram que 85% da população não confiam na polícia "militar" e 82% não confiam na polícia civil, o que levou a Legislatura a estabelecer uma Comissão Parlamentar de Inquérito a esse respeito. Esses dados confirmam os anteriormente citados para o Rio de Janeiro.
30. Um passo importante para a correção dessa falha foi dado pelo Governo do Estado de Pernambuco ao assinar um convênio com o Gabinete de Assessoria Jurídica das Organizações Populares (GAJOP), uma organização não-governamental. O projeto, conhecido como Programa PROVITA, tem por finalidade proteger as vítimas da violência e consiste em atividades conjuntas de órgãos governamentais, e de entidades e pessoas da sociedade civil interessados em prestar serviços de apoio psicológico às vítimas da violência. O programa também tem por objetivo criar locais que adequadamente assegurem a proteção das testemunhas que se achem sob ameaça. Cumpre assinalar que o convênio, atualmente na fase inicial de implementação, já dispõe de 25 locais de proteção às testemunhas, distribuídos em diferentes regiões do Estado, fato que revela a seriedade com que o Governo estadual acatou a iniciativa da sociedade civil. Um projeto similar foi celebrado entre o Ministério da Justiça e a Ong "Viva Rio", no Estado do Rio. Está também em andamento um programa no Centro de Atendimento à Vítima do Crime(CEVIC), dando a vitima assistência jurídica e psicossocial.
31. A Comissão manifesta sua esperança de que o mencionado convênio produza os resultados pretendidos e que o exemplo pernambucano seja seguido por outros governos estaduais, uma vez que esse projeto que prevê a proteção das testemunhas data de alguns anos; fora proposto em 1993 e retirado do Congresso pelo Executivo em 1996, para estudo à respeito da incompatibilidade de seus dispositivos com a estrutura legal brasileira. Apesar disso, a Comissão observa com satisfação o interesse do Governo em apoiar a criação, pelos Estados, de seus respectivos programas de proteção das testemunhas, interesse que foi manifestado no PNDH, que o inclui como meta de curto prazo.
32. A Comissão não pode deixar de salientar as conseqüências perversas desse descontrole da delinqüência por parte das forças da ordem, elas próprias atuando fora da lei e dos regulamentos, gerando a perda da confiança da população no estado de direito e a procura de soluções através de vias ilegais.(56)
33. A Comissão deseja salientar algumas iniciativas estaduais no sentido de reduzir a violência policial. Uma delas, no mesmo Estado da Bahia, onde a respectiva Comissão Parlamentar iniciou em 1994 a realização de assembléias populares em escolas de bairros humildes, em que se discutem casos de violência policial, com a presença de representantes policiais, de organizações comunitárias e parlamentares.
34. Outro exemplo é o dos Centros Comunitários de Defesa da Cidadânia iniciados pela Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, combinando as Polícias Civis e "Militares" com outros serviços governamentais como os Bombeiros, ajuda para desastres e programas juvenis. Esta secretaria também tem começado a treinar seus funcionários na Universidade nos temas do Império do Direito, Direitos Humanos e Sociologia. Igualmente importante são as tarefas das "auditorias" ("ouvidorias") da Polícia, que atuam como "ombudsman" policiais, o que é analizado no final deste capítulo.
35. No plano federal tomaram-se iniciativas legislativas que visam o combate da impunidade, sobretudo de policiais envolvidos em violações de direitos humanos:
a) A lei 9455/97, que tipifica o crime de tortura e estabelece penas severas como prevê a Constituição Federal, de 1988, e
b) O projeto de lei enviado pelo Executivo ao Congresso Nacional em abril de 1997, com vistas a agilizar os procedimentos de "oitiva" de testemunhas em processos criminais.
B. OS ESQUADRÕES DA MORTE
Antecedentes
36. Os esquadrões da morte ou grupos de extermínio foram estabelecidos por antigos oficiais da polícia a fim de combater o crime. No Rio de Janeiro, por exemplo, os primeiros desses grupos foram estabelecidos por volta de 1950. Seus membros são conhecidos como os "justiceiros".
37. Uma pesquisa realizada em 1991 revelou que 27% (8.000 policiais) dos membros das forças policiais do Rio de Janeiro foram convidados, em algum momento, para participar desses grupos.(57) Em 1996, segundo uma pesquisa realizada no Rio de Janeiro e em São Paulo, 76% dos entrevistados declararam crer que há esquadrões da morte compostos por policiais.(58)
38. O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro sobre Extermínio de Menores identificou 15 grupos de extermínio no referido Estado. Em 1997, esses grupos atuavam nos municípios de Duque de Caxias, Niterói e Barra Mansa.(59) Denúncias apresentadas à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Congresso Nacional revelam que, no mesmo ano, havia no Estado de Pernambuco 30 grupos de extermínio.(60) Também no Estado do Espírito Santo e no Estado de Minas Gerais se denuncia a existência de esquadrões de justiceiros, formados pela polícia civil e pela polícia militar (PM).(61)
39. A composição dos grupos de extermínio é variável. Às vezes, seus membros são policiais de plantão(62) que encontram na participação nesses grupos uma forma de aumentar seu baixo salário. Outras vezes, são policiais expulsos da polícia por sua participação em atos delituosos. Em ambos os casos, tanto os policiais em serviço como os expulsos fazem de sua participação nos esquadrões da morte um meio de vida. Em outros casos, esses esquadrões são constituídos de indivíduos contratados como vigilantes por pequenos comerciantes temerosos de assaltos.(63) Há grupos que não guardam relação específica com o crime organizado e exercem o controle de determinada região a fim de garantir a segurança de seus moradores.(64) Outros grupos formam parte de organizações criminosas, sofisticadas ou não, envolvidas no tráfico de drogas e outras atividades ilícitas.(65) Embora os membros dos esquadrões da morte iniciem suas atividades como verdadeiros vigilantes, seu contato com delinqüentes faz com que freqüentemente acabem por vincular-se com o tráfico de drogas e com diversas atividades delituosas, como a extorsão.(66)
40. Os esquadrões da morte atuam no extermínio tanto de adultos como de adolescentes e crianças. Em relação às vítimas adultas, são elas em geral pessoas pertencentes ao mundo do crime. No caso de crianças e adolescentes, sua característica é serem pobre e serem considerado ameaça social. Às vezes, essas crianças ou adolescentes fazem tratos com os policiais ou o crime organizado e acabam sendo executados com a quebra do acordo.(67)
41. De acordo com dados do Centro de Denúncias sobre os Grupos de Extermínio, criado pelo Governo no Estado do Rio de Janeiro, das 159 pessoas detidas entre abril de 1991 de junho de 1993 por estarem envolvidas nesse tipo de atividade, 53 eram membros da polícia "militar".(68)
42. A fim de entender a psicologia desses esquadrões, referimo-nos às palavras de um dos chamados justiceiros: "a polícia não pode patrulhar cada bairro, nem cada rua... Entretanto, o crime continua a aumentar e o número de indesejáveis se multiplica... Nós impomos ordem".(69)
43. Costuma-se dizer que os políticos locais (prefeitos, conselheiros, vereadores e deputados estaduais e federais) apoiam os esquadrões da morte e que, algumas vezes, usam do controle que exercem os justiceiros sobre a população local para conseguir votos ou intimidar os oponentes. Também se alega que alguns indivíduos processados por pertencerem a esses grupos trabalham abertamente para alguns políticos locais. As pessoas que se opõem ao controle exercido pelos justiceiros em seus respectivos bairros correm o risco de perder a vida; também é muito arriscado delatá-los à polícia. Assim, entre 1991 e 1993, só na área do Rio de Janeiro, os grupos de extermínio executaram 31 líderes comunitários.(70)
44. No Estado do Rio Grande do Norte, por exemplo, supostos membros da polícia deram fim à vida do advogado Francisco Gilson Nogueira de Carvalho na madrugada de 20 de outubro de 1996. Nogueira de Carvalho era advogado das vítimas da violência policial e assistente do Ministério Público em processos que levavam a comprovar a existência de um grupo de extermínio conhecido como os "rapazes de ouro" na polícia civil do Estado. O advogado assassinado também denunciava a conivência das autoridades com os autores dos crimes, uma vez que os resultados das investigações correspondentes às mortes ocasionadas pela polícia jamais foram enviadas à justiça. A Comissão Especial criada para esse efeito pela Procuradoria Geral de Justiça constatou o envolvimento dessa polícia em mais de 30 mortes. As autoridades federais, conhecedoras desde 1995 das ameaças contra Nogueira de Carvalho, colocaram-no sob a proteção da Polícia Federal. O suposto mandante do crime, o ex-Secretário Adjunto de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Norte, foi afastado do seu cargo.
45. No Estado de Pernambuco, uma Comissão Parlamentar de Inquérito criada pela Legislatura do Estado constatou a existência de 30 grupos de extermínio no Estado, muitos deles com a conivência e participação da polícia.
46. Em numerosos Estados do Brasil (Acre, Amazonas, Alagoas, Espírito Santo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio de Janeiro, Sergipe, entre outros) a ação dos esquadrões da morte no sentido de eliminar jovens pobres e suspeitos de crimes em áreas urbanas; e líderes comunitários e sindicais em áreas rurais, ficou impune, segundo informação recebida.(71)
A impunidade dos "grupos de extermínio"
47. Esses grupos operam impunemente(72), sobretudo pelas ameaças, pela intimidação de testemunhas e ficais, pelas investigações insuficientes para processar seus membros e pela ineficiência do Poder Judicial para condená-los.(73) Por outro lado, suas operações são em parte toleradas pela população, que muitas vezes as considera como forma "rude" de fazer justiça e como paliativo da falta de eficiência demonstrada pelo Poder Judiciário no combate à violência.(74) Alega-se, ademais, que por vezes funcionam com o consentimento das autoridades policiais locais, que não se esforçam para pôr fim a suas atividades, seja porque participam das mesmas, seja porque sentem que os grupos de extermínio ajudam a eliminar criminosos, traficantes de drogas e outros "indesejáveis".(75)
48. Entrevistas com policiais "militares" revelam os motivos aparentes da violência policial. O principal argumento para a matança de supostos criminosos em vez de sua detenção consiste em que, segundo alegam, a luta contra o crime torna-se mais efetiva. Na opinião dos entrevistados, é um modo de evitar que os suspeitos sejam entregues à polícia civil que, alegam eles, aceita subornos e é ineficiente na etapa de investigação.(76)
49. De fato, quando se examina a relação entre os crimes cometidos, as investigações concluídas e os julgamentos realizados, percebe-se que a impunidade é um fato. No Estado de Pernambuco, por exemplo, entre janeiro de 1986 e junho de 1991, ocorreram 460 homicídios de jovens de até 18 anos. Destes, 118 foram julgados. Nos primeiros dez meses de 1994, houve 114 assassinatos de crianças e adolescentes e, de acordo com dados da Secretaria de Segurança, foram abertos somente 16 inquéritos.
50. No Estado do Rio de Janeiro, dados do Instituto de Religião revelam que, de 3.450 inquéritos sobre homicídios, 92% resultaram em impunidade. De 500 casos, somente 7,8% chegaram à justiça. De acordo com o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), num estudo sobre investigação de 306 homicídios de crianças e adolescentes ocorridos no Rio de Janeiro de 1991, na maioria deles teriam sido recolhidos elementos suficientes para comprovar a autoria dos culpados e, em certos casos, cerca de um ano após terem sido instauradas os inquéritos, foram eles abandonados, e dezenas deles nem sequer puderam ser localizados. Concluiu-se com essa pesquisa que a má instrução dos inquéritos é causada pela falta de estímulo por parte dos delegados policiais e fiscais judiciais.(77)
Os linchamentos
51. Outro fenômeno observado nas cidades brasileiras é o linchamento, cuja dimensão e caracterização se acham integrados ao cotidiano da sociedade, podendo ser desencadeados por vários motivos, seja pelo simples furto de um adolescente, seja pela ação de um estuprador. Disso se depreende que a ocorrência dos linchamentos, como dos esquadrões da morte, se fundamente na falta de um sistema policial operante e eficaz, bem como na incredulidade da população quanto à efetividade da justiça. O linchamento também poderia ser assinalado como outra mola propulsora da violência policial, pois os membros da polícia estariam cometendo abusos para evitar a ocorrência de linchamentos por parte da população. Na realidade, a violência cometida por membros da polícia seria, do ponto de vista de membros da polícia, inerente à natureza de seu trabalho e, por conseguinte, sempre desse ponto de vista, menos reprovável do que a violência exercida pela população em geral nos linchamentos.
52. Cumpre salientar que, nos casos em que ocorrem tentativas de linchamento por parte da população, a participação policial destina-se a impedir que tais tentativas se concretizem, retirando a vítima e levando-a a lugar seguro. Do exame de 213 casos, em que o linchamento foi impedido, em 54% deles houve atuação direta da polícia, o que demonstra sua eficácia em impedir esse tipo de crime.(78)
C. IMPUNIDADE POLICIAL
Sistemas de controle interno e externo da polícia
53. O controle interno da ação policial estadual é feito pelas Corregedorias de Polícia em cada Estado, cabendo a estas, basicamente, as atribuições de acompanhar e fiscalizar a regularidade dos serviços prestados pelas polícias civil e "militar" de cada Estado e de verificar, mediante sindicância determinada pela Secretaria de Segurança, as irregularidades em que tenham estado envolvidos policiais civis e "militares", indicando as penalidades que lhes cabem e instaurando os devidos processos administrativos.
54. A Comissão reconhece a ação de algumas Corregedorias dos Departamentos de Segurança Pública no cumprimento de sua difícil tarefa de controle interno. Para uma idéia dessa tarefa, cumpre assinalar os dados da Corregedoria do Estado de Pernambuco que, em dez meses de 1995, instaurou 435 sindicâncias e concluiu 265. Delas, 46 foram processos administrativos com base em delitos penais (14 deles por lesões corporais causados por policiais). Em conseqüência dos mesmos foram demitidos 1 delegado, 2 comissários, 1 escrivão e 10 agentes, além de sete outras penalidades administrativas. Esse programa se complementa com o já mencionado programa da Secretaria de Segurança pernambucana, para a proteção de testemunhas, familiares e vítimas da violência.
55. A Comissão também salienta que recentemente, em 1995, foi criada por decreto no Estado de São Paulo a primeira Ouvidoria da Polícia, órgão complementar da polícia, dirigido por um representante da sociedade civil e destinado a complementar o controle interno das ações das polícias estaduais. Segundo dados oficiais, a Ouvidoria de São Paulo recebeu, nos primeiros seis meses, desde sua criação, 1.134 casos, dos quais informa haver solucionado 34%. Do total de casos, 64% referem-se a ações impróprias da polícia civil de São Paulo e 36% a de sua polícia "militar". Quase 10% das queixas contra a polícia "militar" corresponderam em 1996 a homicídios em que se alegava envolvimento de policiais "militares". Do total de queixas, cerca de cem (aproximadamente 10%) correspondiam a abusos de autoridade e torturas. A própria Auditoria preparou um anteprojeto de lei para a obtenção de autonomia e independência institucional como primeiro passo para a consolidação da primeira experiência brasileira de ombudsman policial. A Ouvidoria de Polícia de São Paulo em 17 meses de atividades promoveu a punição de 420 policiais.
56. O Governo Federal incluiu a criação das Ouvidorias de Polícia como uma das medidas a serem implementadas por intermédio do PNDH. Na prática, além da Ouvidoria do Estado de São Paulo, há a Ouvidoria do Distrito Federal, e os Estados de Minas Gerais, Pernambuco, Bahia e Pará estão criando a suas, implementando leis estaduais. A existência e ação da Auditoria do Estado de São Paulo, vem sendo amplamente divulgada pelo Governo estadual, bem como o meio de acesso a esse órgão, desse modo estimulando a população a denunciar os abusos cometidos por policiais "militares" e civis. A Comissão chama a atenção para a coincidência da criação desse órgão e a sensível diminuição de mortes causadas por policiais de São Paulo, conforme se informou acima.
57. O controle externo da ação da polícia tanto civil como militar deve ser exercido pelo Ministério Público (artigo 129, VII, CF) e pelo Poder Judiciário. Como um resíduo de sua criação sob o regime militar, cabe ao Ministério Público Militar Estadual, a competência para promover a ação penal pública perante a Justiça Militar, cabendo-lhe ademais, entre outras atribuições, a de instaurar a investigação policial militar e exercer o controle externo da atividade da polícia militar. Isso significa, no parecer da Comissão, uma falha crítica do sistema de garantias da ação policial, pois se destitui o Ministério Público civil do controle da ação policial comum (a cargo das polícias "militares") que são justamente aquelas às quais se atribui o maior número de violações dos direitos humanos.
58. Também se salienta, em relação ao controle eficaz das atividades policiais, a importância do órgão encarregado de realizar as perícias médico-legais, o Instituto Médico Legal, que, sendo parte da polícia civil, emite laudos periciais muitas vezes imprecisos. Na medida em que muitas dessas perícias tendem a estabelecer a própria responsabilidade do pessoal policial nas mortes ou ferimentos, a Comissão considera de fundamental importância a desvinculação desse órgão da polícia e sugere sua associação com departamentos científicos ou de medicina legal de universidades ou de outra instituição que assegure sua absoluta profissionalidade e independência.
A justiça militar estadual como foro privativo para o julgamento dos membros da polícia militar.(79)
59. Por iniciativa do Secretário Nacional de Direitos Humanos, Dr. José Gregori, foi criado um grupo de trabalho encarregado de estudar a reforma do sistema de segurança pública no Brasil. Uma das propostas é a de estabelecimento de uma agência nacional com prerrogativas que incluiriam a fiscalização das forças de segurança pública. O objetivo do grupo é de procurar definir o papel das força de segurança no contexto da democracia e do estado de direito , de modo a tornar as polícias brasileiras agentes centrais na promoção dos direitos e liberdades fundamentais.
60. A justiça militar estadual tem competência para processar e julgar os membros das polícias militares acusadas de cometer crimes, definidos como militares, contra a população civil, ou seja, esse foro é regido pelo direito penal militar (Código Penal Militar, CPM), próprio dos militares, que contém normas substantivas de Direito Penal e que constitui um "complexo de normas jurídicas destinado a assegurar a realização dos fins essenciais das instituições militares, cujo objetivo principal é a defesa da pátria". Prevalecem nesse foro "a hierarquia e a disciplina"(80). Também se rege pelo Código de Processo Penal Militar (CPPM), que contém normas de direito formal ou objetivo. A nova Lei 9.299/96 põe sob jurisdição ordinária penal os casos de delito contra a vida com intenção dolosa, mas mantém o restante da competência da justiça militar acima da polícia.(81)
61. Trata-se de uma ordem normativa especial, com princípios e diretrizes próprias, na qual a maioria das normas são aplicáveis somente aos militares e a civis que cometem crimes contra as instituições militares, diferentemente do que sucede no direito penal comum, em que as normas são aplicáveis a todos os cidadãos.(82)
62. O artigo 125, parágrafo 4, da Constituição Federal estabelece o seguinte:
Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei...
63. A lei de que consta essa definição é o Código Penal Militar, que em seu artigo 9,(83) parágrafo II, alínea f, reza o seguinte:
Artigo 9. Consideram-se crimes militares em tempo de paz:
II. Os crimes previstos neste Código, enquanto tenham a mesma definição na lei penal comum, quando forem cometidos:
f) por militar em situação de atividade, ou entendendo-se que, embora não esteja em serviço, use armamento de propriedade militar ou qualquer material bélico sob custódia, fiscalização ou administração militar, para a prática de ato ilegal.
64. De acordo com a disposição acima transcrita, as forças policiais "militares"(tanto federais como estaduais e do Distrito Federal), que são as corporações encarregadas do policiamento preventivo e ostensivo dos civis, estão sujeitas à legislação penal militar, bem como aos tribunais militares, inclusive quando cometem delitos contra civis no cumprimento de suas funções ou usando armas da corporação. Essa competência foi limitada pela Lei 9.299/96 mas, como veremos adiante, essa limitação não é efetiva para eliminar a impunidade decorrente desse foro privativo.
Antecedentes do foro especial militar para julgamento dos policiais militares
65. Até 1977, prevaleceu o critério de que os crimes cometidos pelos policiais militares no exercício de suas atividades policiais eram de natureza civil e, por conseguinte, da competência da justiça comum.(84)
Muitos desses casos chegaram ao Supremo Tribunal Federal, o qual, em numerosas decisões, foi de parecer que o serviço policial ou de fiscalização do trânsito não configura uma função de natureza militar e resolveu o conflito a favor da competência da justiça comum. Tantas foram as decisões nesse sentido que, em 1993, o Tribunal Supremo Federal publicou a Súmula N.º 297, que diz o seguinte:
Os oficiais e cargos das milícias dos Estados no exercício da função policial civil não são considerados militares para efeitos penais, sendo competente a justiça comum para julgar dos crimes cometidos por eles ou contra eles.
66. A partir da Emenda Constitucional N.º 7, de 1977 - que modificou o artigo 144, parágrafo 1, alínea a, da Constituição - conhecida como o "Pacote de Abril", sob o regime militar então reinante tornou-se possível a criação de uma justiça militar estadual de caráter especial para o processamento e julgamento dos policiais militares pelos crimes militares definidos na lei.(85) O Supremo Tribunal Federal modificou então o critério e começou a considerar que a justiça militar estadual era competente para julgar os policiais "militares" pelos crimes militares definidos no Código Penal, quando fossem por eles cometidos no exercício de suas atividades policiais.(86)
67. Essa mudança fundamental na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal teve por conseqüência o aumento dos crimes cometidos por policiais militares, os quais ficaram impunes.
A impunidade resultante do regime de exceção para julgar os policiais militares
68. Em janeiro de 1983, estabeleceu-se publicamente o desempenho da justiça militar estadual a partir da Emenda Constitucional N.º 7, assinalando-se a esse respeito que:
...a Justiça Militar começou a receber todos os casos (referia-se à Emenda Constitucional N.º 7, de 1977), absolvendo magicamente os soldados e oficiais que matam. Em conseqüência dessa impunidade, quase quatrocentos homens morreram no ano passado, dos quais nem todos eram delinqüentes; as vítimas, em sua grande maioria, eram jovens, crianças, que cometeram uma ou duas infrações e pobres da periferia, oriundos dos estratos mais miseráveis da população... (o grifo é da Comissão).(87)
69. A Constituição de 1988, apesar de todos os seus avanços, manteve(88) a organização policial dos governos militares, a concepção militarizada da segurança pública e o foro de exceção para o julgamento dos crimes comuns cometidos por policiais "militares" no exercício de suas funções policiais. Poder-se-ia dizer que esse texto constitucional conservou um regime de exceção que ratifica a transferência do julgamento dos policiais "militares" para a competência da justiça militar, mantendo-os na mesma situação de quase impunidade semelhante à decorrente da Emenda Constitucional N.º 7, promulgada na época da ditadura militar.
70. Para o entendimento das causas dessa impunidade, é importante analisar alguns aspectos da estrutura da justiça militar no Brasil.
71. A justiça militar da União e a dos estados federados baseiam-se em estrutura análoga. Os ilícitos penais distribuem-se entre as auditorias militares, que são os órgãos de primeiro grau da jurisdição da justiça militar e que correspondem às varas criminais na justiça comum. As auditorias militares são constituídas por um corpo colegiado composto de um juiz-auditor e um Conselho de Justiça.
72. O Conselho de Justiça reúne-se especialmente para julgar o acusado em primeira instância. Atualmente, é constituído por quatro oficiais militares em atividade e por um juiz-auditor civil. O presidente do Conselho, escolhido no dia fixado para o proferimento da sentença, deve ser o militar da mais alta hierarquia (artigo 16 da lei 8457/92).
73. Por sua vez, o juiz-auditor é o único civil que não está colegiado. Esse juiz deve ser advogado e ter sido eleito para o cargo por concurso público. O juiz-auditor goza de competência para receber a denúncia formulada pelo órgão de acusação e, posteriormente, para instruir o processo criminal, decidindo questões de direito que, de outro modo, não seriam adequadamente solucionadas pelos juizes militares, que em geral não são advogados.
74. No âmbito federal, as decisões tomadas pelas auditorias militares estão sujeitas a recursos conhecidos pelo Superior Tribunal Militar (STM). Trata-se de órgão colegiado de segunda instância, constituído por 15 membros, a saber: quatro oficiais-generais do Exército, três oficiais-generais da Marinha e três oficiais-generais da Aeronáutica. Cumpre assinalar que todos esses oficiais devem estar na ativa e ser nomeados pelo Presidente da República, ouvido o Senado Federal. O Supremo Tribunal Militar também é constituído por cinco civis, dos quais dois devem ser juízes- auditores e os demais, juristas de notória erudição e maiores de 35 anos.
75. Além de conhecer os recursos de apelação, o Supremo Tribunal Militar goza de competência para restabelecer a jurisdição militar quando a mesma for invadida por um juiz de primeira instância (da justiça comum). Para esse efeito, tem competência para chamar o processo a juízo superior (artigo 6. IV da Lei 8457/92), ou seja, se um juiz de vara criminal da justiça comum resolver julgar um militar por um delito comum, o processo poderá ser chamado à esfera da justiça militar por decisão do Supremo Tribunal Militar.
76. A Constituição autoriza os Estados federados, desde que o contingente policial militar estadual tenha mais de vinte mil membros, a criar, por proposta do Tribunal de Justiça, seu órgão de segunda instância militar, ou seja, o Tribunal de Justiça Militar. Atualmente, existe esse tipo de tribunal nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.(89)
77. Os processos perante os tribunais militares muitas vezes tardam anos,(90) em virtude do excesso de trabalho,(91) da escassez de juizes e fiscais, das excessivas formalidades nos procedimentos e dos incidentes dilatórios. A Comissão pôde estabelecer que esses tribunais tendem a ser indulgentes com os policiais acusados de abusos dos direitos humanos e de outras ofensas criminais, o que facilita que os culpados fiquem na impunidade.
78. Nesse clima de impunidade,(92) que predispõe à violência por parte da corporação policial militar,(93) os policiais envolvidos nesse tipo de atividade se vêem estimulados a intervir em execuções extrajudiciais, em abuso dos detentos e em outros tipos de atividade delituosa. A violência eventualmente estendeu-se ao fiscais quando estes insistiram em prosseguir as investigações dos crimes cometidos por policiais "militares", passando eles a ser objeto de ameaças, até mesmo ameaças de morte. Tão pouco estranho é o fato das testemunhas convidadas a declarar contra os policiais processados, recebam ameaças intimidantes.(94)
79. Em carta dirigida à Comissão em 1996, o Centro Santos Dias expressa o seguinte a esse respeito:
Nos inquéritos militares, formalizados nos órgãos da justiça militar, a parcialidade em favor dos policiais incriminados, na maioria dos casos, é escandalosa, a ponto de transformar as vítimas em réus. Também é muito comum a intimidação das testemunhas, cujas deposições judiciais são tomadas na presença dos policiais acusados. Nessas condições, não é de estranhar que a freqüência com que se determina o arquivamento das investigações por motivo de deficiência de provas... Se, cumprida essa etapa, se chegasse a apresentar ou a acolher uma denúncia, surgiriam novas dificuldades na marcha do processo, deliberadamente moroso e cheio de incidentes dilatórios: demora na constituição dos conselhos, adiamentos sucessivos por motivo de pequenas falhas formais etc. (O grifo é da Comissão). Assim, não é de estranhar que uma instrução(95) se arraste por quatro ou cinco anos, ou indefinidamente, por tempo suficiente para apagar a lembrança dos fatos nos periódicos e na memória das pessoas. Passado tanto tempo, as famílias das vítimas já terão perdido a esperança, as testemunhas terão mudado de domicílio e as provas já se terão desvanecido.(96)
80. Fontes fidedignas informam que, somente em São Paulo, onde 1.470 civis foram mortos em 1992 em mãos da polícia "militar", os tribunais militares terminaram por absolver quase todos os policiais "militares" processados.(97) Por sua vez, um estudo(98) realizado em São Paulo em novembro de 1993 determinou que, num período de 18 meses, se apresentassem nos tribunais militares estaduais 143 casos e que em 92% desses casos os policiais fossem absolvidos.(99)
81. Um problema grave que continua a ocorrer é o limitado número de fiscais que se encarreguem dos numerosos casos de violação supostamente cometidas por policiais militares. Por exemplo, no Estado de São Paulo, havia em 1992 14.000 processos em tramitação perante a Justiça Militar a vários títulos, mas somente havia quatro fiscais atuando nesses processos, ou seja, cada fiscal encarregava-se de 3.500 processos.(100)
82. A violência da polícia militar e a impunidade deram origem a diversas iniciativas na Câmara dos Deputados com vistas a suprimir o foro especial militar para o julgamento dos crimes cometidos por policiais militares no exercício de suas atividades públicas. Entre elas está o projeto de lei apresentado pelo Deputado Hélio Bicudo,(101) que devolve ao foro comum o julgamento dos crimes cometidos pelos oficiais das polícias militares estaduais ou contra eles no exercício de suas funções policiais. Esse projeto propõe que se revogue a alínea f do artigo 9 do Código Penal Militar (Decreto-Lei N.º 1.001, de 21 de outubro de 1969), acima transcrito (ver pfo. 62) e que se inclua o seguinte "Parágrafo único":
Oficiais e praças das polícias militares dos Estados no exercício de suas funções policiais não são considerados militares para os efeitos penais, sendo competente a justiça comum para processar e julgar os crimes cometidos por eles ou contra eles.
83. Esse projeto volta ao conceito da Súmula N.º 297, ou seja, excede o foro comum o julgamento dos crimes cometidos pela polícia militar no exercício de suas funções policiais. Esse projeto de lei não foi plenamente aprovado; em seu lugar foi porém aprovado, com o apoio do bloco favorável ao Governo no Senado, um projeto substitutivo, apesar de o Presidente Fernando Henrique haver endossado o projeto original. O Presidente sancionou o projeto substitutivo, conferindo-lhe força de lei, em 7 de agosto de 1996 (Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996). A Lei 9.299 emenda o artigo 9 do Código Penal Militar (Decreto-Lei N.º 1.001), que define os crimes militares. O novo "Parágrafo único" estabelece o seguinte:
Os crimes de que trata este artigo, quando forem crimes dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum. (O grifo é da Comissão).
84. Isto significa que os policiais militares continuarão a ser julgados em foro privilegiado quando se trate de crimes contra a pessoa, tais como o homicídio culposo, lesão corporal, tortura, o seqüestro, prisão ilegal, extorsão e golpes.
85. Durante a tramitação do projeto na Câmara, impôs-se a ele outra limitação grave, que consistia na emenda de uma seção do artigo 82 do Código de Processo Penal Militar, que agora se redige da seguinte maneira:
Nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial à justiça comum. (Artigo 82, seção 2, do CPPM).
86. Com isso, o inquérito permanecerá sob a responsabilidade da autoridade militar, mesmo que se trate de crime doloso contra a vida e apesar de que, de acordo com a nova lei, tais crimes passem à esfera da justiça comum. Essa nova disposição contradiz o artigo 144, seção 4, da Constituição, que atribui às polícias civis as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações penais, exceto as militares. Com efeito, se os crimes dolosos contra a vida deixam de ser militares em virtude da nova lei, o inquérito penal deverá ficar a cargo das polícias civis, às quais correspondem, de acordo com o artigo 144, seção 4, da Constituição, "as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais". Ao deixar a investigação inicial em mãos da polícia "militar", de fato se confere a esta a competência para determinar ab initio se o crime é doloso ou não. Isso significa que a Lei 9.299 da República não tem capacidade efetiva para reduzir consideravelmente a impunidade.
87. O Programa Nacional de Direitos Humanos apresentado pelo Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso estabelece, entre as metas de curto prazo, as seguintes:
Atribuir à justiça comum a competência para processar e julgar os crimes cometidos por policiais militares em suas funções policiais ou com arma da corporação, apoiando um projeto específico já aprovado na Câmara dos Deputados.
88. Ao mencionar "um projeto específico já aprovado na Câmara dos Deputados", o aludido programa refere-se, na realidade, ao projeto do Deputado Hélio Bicudo, que fora aprovado na Câmara dos Deputados antes de passar ao Senado e ser substituído pelo projeto substitutivo finalmente aprovado.
89. O projeto substitutivo provocou reação de repúdio que deu origem a uma campanha no sentido de resgatar o texto original. Esse movimento teve início em 14 de maio de 1996 num encontro realizado entre o Foro Nacional Contra a Violência no Campo(102) e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
90. Em julho de 1996, o projeto de lei original voltou a ser submetido à consideração da Câmara dos Deputados, desta vez como N.º 2.190, de 1996. Na opinião desta Comissão, a aprovação de um projeto de lei nesse sentido, coincidente com uma das metas de curto prazo do Programa Nacional de Direitos Humanos, implicaria um passo fundamental no combate à violência policial. Se aprovado, os policiais militares, no exercício de suas funções, deixariam de ser considerados militares para fins penais e a justiça militar já não teria competência para julgar os crimes comuns cometidos por eles e contra eles. Isso se aplicaria a "todos" os crimes comuns e não somente aos dolosos contra a vida, como ocorre com a Lei 9.299, recentemente aprovada. Além disso, como prevê o mencionado programa, dever-se-ia incluir os crimes cometidos por policiais militares "usando arma da corporação", a fim de assegurar que os policiais militares que cometam crimes comuns contra civis, como membros de grupos de extermínio e fazendo uso de armas da corporação, também sejam julgados pela justiça penal comum. Assim, a Comissão considera que deveria ficar claro que o inquérito policial estará a cargo da polícia civil, conforme dispõe o artigo 144, seção 4, da Constituição Federal. O projeto foi aprovado pelo Senado, e não contempla os crimes de formação de quadrilha e extorsão. O Governo informou a CIDH que envidara esforços para que a futura lei inclua todos os crimes praticados por policiais militares.
D. CONCLUSÕES
91. A Comissão reconhece, com satisfação, o empenho do atual Governo Federal e de alguns governos estaduais em combater a violência, bem como a impunidade dos membros das polícias estaduais. Os esforços federais são visíveis, principalmente se observa a elaboração do Programa Nacional de Direitos Humanos, o qual prevê medidas de extrema relevância para restringir a violência.
92. A Comissão manifesta a esperança de que sejam transformadas em lei as medidas propostas pelo PNDH que ainda não o foram, com vistas a pôr fim às violações dos direitos humanos. Vê com satisfação a aprovação da Lei 7.865, de 1996, que institui o Sistema Nacional de Armas, o que estabelece condições para seu registro e define como crimes seu uso indevido seja por civis, seja por forças de segurança. Também espera que as seguintes medidas previstas pelo PNDH sejam aprovadas nos prazos previstos no mesmo e plenamente aplicadas:
Regulamentar o artigo 129, parágrafo VII, da Constituição Federal, que trata do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público;
Fortalecer os Institutos Médicos-Legais ou de Criminalística, assegurando sua autonomia;
Incluir nos cursos das academias policiais matérias específicas relacionadas com o respeito aos direitos humanos;
Incentivar acriação e o fortalecimento das corregedorias de polícia;
Propor a imediata instauração da sindicância e o afastamento administrativo da força, sem prejuízo do devido processo penal, para os policiais acusados de violência contra os cidadãos;
Incentivar a instauração das Auditorias de Polícia, com representantes da sociedade civil e autonomia para a investigação e fiscalização;
Estimular a implementação de programas de seguro de vida e de saúde para os policiais; e
Apoiar a criação de um sistema de proteção especial das famílias dos policiais ameaçados por motivo de suas atividades.
93. A Comissão manifesta preocupação pela violência assinalada, reconhecendo que, embora haja alta criminalidade nas cidades brasileiras, esta não pode ser usada como justificativa para a atuação ilegal da polícia, nem se pode admitir a existência de um poder legal paralelo ao Estado, encarregado de fazer justiça com as próprias mãos, a seu arbítrio e fora da lei. A polícia deve garantir a segurança da pessoa humana e o respeito a ela, bem como fazer-se respeitar por isso e não pelo temor que inspire. A violência policial desprestigia a corporação e impede o aperfeiçoamento de seus membros, na medida em que desvirtua suas atribuições.
94. A Comissão também observa que a impunidade para os crimes cometidos pelos policiais estaduais, militares ou civis, constitui um elemento propulsor da violência, estabelece elos de lealdade perversa entre os policiais por cumplicidade ou falsa solidariedade e gera círculos de sicários cuja capacidade de terminar vidas humanas passa a estar a serviço de quem der mais.
95. Ante tais fatos, a Comissão apresenta as seguintes recomendações que, em geral, coincidem com os esforços do Governo Brasileiro e com os propósitos do PNDH:
Criação de uma comissão especial permanente de investigação de possíveis grupos de extermínio e dos chamados "justiceiros".
Maior fiscalização dos trabalhos das forças policiais, com controle externo efetivo. Além do processo criminal, as autoridades devem fazer rigorosas inspeções internas a fim de identificar e disciplinar policiais que cometem violações ou que deixem de tomar as medidas adequadas para prevenir ou tornar pública a conduta criminosa de outros policiais. Os policiais acusados de homicídios devem ser transferidos a postos em que não manipulem armas de fogo até que se demonstre sua inocência. A reforma do Sistema de Segurança Pública no Brasil, em estudo deve enfocar esse aspecto.
Medidas, por parte das autoridades, para assegurar que os agentes policiais usem de força letal somente como último recurso para proteger a vida, e não para eliminar pessoas tidas como indesejáveis ou simplesmente suspeitas, nem quando estas ponham em risco a vida de terceiros.
Alteração do procedimento de investigação de maneira que os membros de uma divisão ou distrito policial não sejam designados para investigar abusos praticados por membros dessa mesma divisão. Além disso, as vítimas ou seus representantes devem ter acesso aos registros das investigações e ser mantidos a par da situação em que se encontrem os processos contra policiais acusados de abuso dos direitos humanos, de maneira que seja compatível com a eficácia da investigação e os direitos dos policiais como acusados.
Elaboração pelas Secretarias de Segurança Pública dos Estados de políticas de incentivo aos policiais que desempenhem suas funções exemplarmente, mediante prêmios em dinheiro, benefícios a suas famílias e promoções, bem como a criação de cursos específicos sobre direitos humanos para policiais em serviço(103) e treinamento em táticas e habilitação que minimizem o número de vítimas produzidas por sua ação legal. Equipando a polícia com a necessária infra-estrutura atualizada. Também promovendo a adequada remuneração, que assegure aos policiais condições de vida dignas e garánta a qualidade dos serviços por eles prestados à comunidade.
Penalização dos policiais responsáveis por crimes, dentro ou fora de suas funções policiais, e divulgação pública das penalidades que lhe foram aplicadas.
Criação de um dispositivo que modifique a previsão constitucional que garante a estabilidade funcional dos servidores civis, se essa estabilidade impede a demissão de policiais que cometam excessos.(104)
Aplicação de um programa nacional de proteção das testemunhas, alterando sua identidade e permitindo sua mudança a outras áreas do país, bem como elaboração de procedimentos especiais que permitam o uso de testemunhos filmados ou gravados a fim de acelerar as investigações e proteger as testemunhas de confrontação direta com seus agressores.(105)
Atribuição à justiça comum de competência para julgar todos os crimes cometidos por membros das polícias "militares" estaduais.(106)
Transferência para a competência da justiça federal do julgamento dos crimes que envolvam violações dos direitos humanos, devendo o Governo Federal assumir a responsabilidade direta pela instauração de processo e pelo devido estimulo processual quando se trate de tais crimes.(107)
NOTAS AO CAPÍTULO III
1. 1 No âmbito das Nações Unidas, o Brasil, além de sua obrigação de respeitar a Carta que estabelece, entre outras obrigações, a de "promover o respeito universal e a observância dos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos..." (artigos 55 y 56), ratificou o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (24 de abril de 1992) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (24 de janeiro de 1992).
2. 2 O Brasil também é parte, entre outros, dos seguintes tratados ou convenções em matéria de direitos humanos: Convenção sobre Asilo (assinada em 1928; ratificação ou adesão em 3 de setembro de 1929); Convenção sobre Asilo Político (assinada em 1933; ratificada em 23 de fevereiro de 1937); Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher (assinada em 1948 e ratificada em 19 de março de 1952); Convenção Interamericana sobre Concessão dos Direitos Políticos à Mulher (assinada em 1948 e ratificada em 21 de março de 1950); Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (assinada em 1948 e ratificada em 4 de setembro de 1951; Convenção (n.º 98) sobre o Direito de Organização e Negociação Coletiva (1949; ratificação ou adesão em 18 de novembro de 1951); Convenções de Genebra (I a IV) sobre Direito Internacional Humanitário (assinada em 1949; ratificação ou adesão em 29 de junho de 1957); Convenção (n.º 100) sobre Igualdade de Remuneração (1951; ratificação ou adesão em 25 de abril de 1957); Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (assinada em 1951 e ratificada em 13 de agosto de 1963); Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (1952) (assinada em 1953 e ratificada em 13 de agosto de 1963); Convenção Relativa à Escravidão (assinada em 1953; adesão em 6 de janeiro de 1966); Convenção sobre Asilo Diplomático (assinada em 1954; ratificação ou adesão em 17 de setembro de 1957); Convênio Suplementar sobre a Abolição da Escravidão, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravidão (assinada em 1956; adesão em 6 de janeiro de 1966); Convenção (n.º 105) sobre a Abolição do Trabalho Forçado (1957; ratificação ou adesão em 18 de junho de 1965); Convenção (n.º 111) sobre Discriminação no Emprego e na Profissão (1958; ratificação ou adesão em 26 de novembro de 1965); Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino (1960; ratificação ou adesão em 19 e abril de 1968); Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965; assinada em 1966 e ratificada em 27 de março de 1968); Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1966; assinado em 1967; adesão em 7 de março de 1972); Convenção (n.º 35) sobre Representação dos Trabalhadores (1971; ratificação ou adesão em 17 de maio de 1990); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de discriminação contra a Mulher (1979; assinada em 1979 e ratificada em 1º de fevereiro de 1984); Convenção contra a Tortura e Outros Instrumentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes (1984; assinada em 1984 e ratificada em 28 de setembro de 1989; Convenção Interamericana Para Prevenir e Punir a Tortura (1965; assinada em 1985 e ratificada em 20 de julho de 1989); Convenção sobre os Direitos da Criança (1989; assinada em 1989 e ratificada em 24 de setembro de 1990). Informação extraída dos Arquivos da Divisão de Atos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores e do Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, Ministério das Relações Exteriores, da Fundação Alexandre de Gusmão e do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (1994).
3. 3 Cabe notar que o Governo Federal tem obtido a cooperação dos Estados em uns poucos casos graves, fazendo com que a Policia Federal garanta a isenção de determinadas investigações e fornecendo meios para apuração de denúncias.
4. 4 A Constituição de 1981 marcou o final do governo imperial.
5. 5 As duas Constituições adotadas durante o período de Vargas, que foi extremamente centralizador, mantinham, pelo menos formalmente, o sistema representativo federal de governo. A Constituição de 1946, que representou um retorno aos princípios liberais, também naturalmente conservou essa forma de governo. A Constituição de 1967 e a Emenda N.º 1, emitidas durante o período militar, não modificaram esse elemento tradicional.
6.
7. -
8. 8 O Poder Judiciário é exercido pelos seguintes órgãos e autoridades: O Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e Juizes Federais, os Tribunais e Juizes do Trabalho, os Tribunais e Juizes Eleitorais, os Tribunais e Juizes Militares e os Tribunais e Juizes dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios (artigo 92 da CF). Os juizes do órgão judiciário máximo são nomeados pelo Poder Executivo com a aquiescência do Senado (artigo 102 da CF). Os juizes do Superior Tribunal de Justiça também são nomeados pelo Poder Executivo depois de o Senado aprovar a seleção, mas devem ser escolhidos dentre grupos especificados na Constituição (artigo 104 da CF). Os dos Tribunais Regionais Federais são igualmente nomeados pelo Presidente (artigo 107 da CF).
9. 9 O Distrito Federal é a unidade política que cabe à Capital Federal, Brasília (artigo 18, parágrafo 1 da CF). Tem as mesmas prerrogativas legislativas reservadas aos Estados Federais e aos Municípios (Artigo 32, parágrafo 1 da CF) e tem, inclusive, um Governador eleito pelo povo e representantes na Câmara dos Deputados (artigo 32, parágrafo 2, em concordância com os artigos 77 e 45, parágrafo 2, da CF) e no Senado Federal (artigo 46 da CF). Os Territórios Federais, mencionados no artigo 18, parágrafo 2, da Constituição, integram a União e gozam de autonomia administrativa, mas não de autonomia política. A existência dos territórios é justificada pelo atraso no desenvolvimento da região ou da comunidade. Os territórios acham-se, teoricamente, em situação transitória, aguardando o momento de transformar-se em Estados ou de serem integrados a outro Estado. Os territórios não têm representantes no Senado (Artigo 46 da CF) e seus governadores são nomeados pelo Presidente da República (artigo 84, parágrafo XIV, da CF) e aprovados pelo Senado Federal (artigo 52, parágrafo III, da CF).
10. 10 Artigo 1, parágrafo III, da CF.
11. 11 Artigo 4, parágrafo II, da CF.
12. 12 Artigo 5, parágrafos I a LXXVII, da CF.
13. 13 Ver, por exemplo, o artigo 103, parágrafos VII e IX e o artigo 5º, parágrafo 5, da Constituição, que permitem que a ação de inconstitucionalidade e a instituição do mandado de segurança coletivo sejam propostos, respectivamente, por um partido político ou um sindicato.
14. 14 O artigo 102 da Constituição Federal expressa, nesse sentido, que "Compete ao Supremo Tribunal Federal, preciptuamente, a guarda da Constituição...".
15. 15 A competência do Superior Tribunal de Justiça está dividida em três áreas: 1) a competência originária, como juízo único e definitivo, para processar e julgar as questões a que se refere o parágrafo I do artigo 105 da Constituição Federal, entre as quais se incluem, no caso de delitos comuns, os governadores e altas autoridades judiciais e altas autoridades judiciárias dos Estados; 2) competência para julgar, em recurso ordinário, as causas a que se refere o parágrafo II do aludido artigo; e 3) competência para julgar, em recurso extraordinário, quando se recorrer da decisão por contrariar a Constituição; por declarar a inconstitucionalidade de um tratado ou Lei Federal; ou por julgar válida uma lei ou ato do governo local questionado por contrariar a constituição Federal (parágrafo III da mesma disposição).
16.
17. 17 Artigo 21, parágrafo XIII, da CF.
18. 18 Artigo 125 da CF.
19. 19 Artigo 125, parágrafo 1, da CF. O parágrafo 2 do mesmo artigo estabelece o seguinte:
20. 20 O artigo 99 da Constituição Federal dispõe o seguinte:
Ao Poder Judicial é assegurada autonomia administrativa e financeira.
1º Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados juntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias.
2º O encaminhamento da proposta, ouvidos os outros tribunais interessados, compete:
I. no âmbito da União, aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com a aprovação dos respectivos tribunais;
II. no âmbito dos Estados e no do Distrito federal e Territórios, aos Presidentes dos Tribunais de Justiça, com a aprovação dos respectivos tribunais.
21. 21 Entendido como a repressão dos crimes ou delitos mediante a imposição das penas.
22. 1 WB Report 1995. (World Bank Brazil), A Poverty Assessment, Report 14323'BR) June 1995. Washington, D.C. (doravante "WB Report 1995"). O exemplo do Estado do Ceará, um dos que se encontram em pior situação no Nordeste, mas que estabeleceu políticas bem-sucedidas de redução da pobreza, mostra a capacidade do Estado de influir positivamente em tais condições.
23. 2 WB Report 1995, op. cit., p. 32.
24. 3 PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) Human Development Report, 1996. Oxford University Press, NY, 1996. De 37 países de todo o mundo e de todos os níveis de desenvolvimento, com dados registrados neste relatório, a cifra para o Brasil indica a maior distância entre os 20% da população de renda mais alta e a mais pobre.
25. 4 CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina). Panorama Social de América Latina 1995. Santiago, Chile, 1995, p. 145.
26. 5 Embaixada do Brasil. Sociedade, Cidadania e Direitos Humanos, Washington, D.C., 1995.
27. 6 WB Report 1955, p. X.
28. 7 Peliano, Anna Maria T.M. Coord. 1993 O Mapa da fome I-III. Documentos de Política No. 14.16-IPEA.
29. 8 WB Report 1995, p.X.
30. 9 CEPAL, op. cit., p. 145.
31. 10 Três Anos de Plano Real. Secretaría de Telecomunicações(www.radiobras.gov.br)
32. 11 PNUD - Human Development Report, cit.
33. 12 WB Report 1995, p. 54.
34. 13 Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN), 1989.
35. 14 WB Report 1995, p. XI.
36. 15 Rocha, Sônia, Perfil da Pobreza no Brasil, 1993. Ver o capítulo sobre discriminação racial. O termo racial é utilizado segundo a nomenclatura da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
37. 16 Report on the Human Rights Situation in Brazil, filed by the Government according to Art. 9 of the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination. UN doc.CERD/C/263 ADD 10 e HRI/CORE/1 Add 53.
38. 17 WB Report 1995, p. 24-25.
39. 18 WB Report 1995, p.18.
40. 1 Embora os membros das polícias "militares" exerçam funções civis e estejam subordinados ao Governador do Estado, são eles chamados de serviços miltitares estaduais, em que pese a não terem relação típica com as Forças Armadas, que são federais e subordinadas a seu comandante em chefe, o Presidente da República. A Constituição estabelece que essas polícias estaduais também atuem como forças auxiliares e de reserva do Exército a fim de assegurar a ordem pública e a paz social ameaçadas (artigo 144, parágrafo 6, e artigo 42 da CF). A denominação de "militar " da polícia encarregada da segurança pública em realidade teve origem sob o governos militares, quando as polícias estavam sob o controle direto das Forças Armadas. Essa subordinação direta desapareceu ao reformar-se a constituição em 1988, quando passaram a subordinar-se às aytoridades civis estaduais eleitas constitucionalmente.
41. 2 Diário do Congresso Nacional (seção I) Dezembro de 1992, terça-feira 1º 25433.
42.
43. 4 Disso resultou que Jelson Lima ficou paralítico e com uma série de outros problemas de saúde e vem procurando obter indenização por intermédio da Justiça do Estado. Quando ao policial que o agrediu, uma auditoria militar comcluiu, em Março de 1995, que o policial agiu com "negligencia e imprudência…e que ocasionou grave lesão em Jelson Lima". A Justiça miltar o condenou em primeira instância a 8 anos de prisão, mas o policial apelou da sentença e aguarda em liberdade a dicisão. O policial não foi, segundo informação de que dispõe a Comissão, objeto de punição adiministrativa.
44. 5 O caso do cabo Adeval de Oliveirs é um claro exemplo de um policial "militar" premiado apesar de sua conduta violenta. O cabo Adeval de Oliveira matou em 1992 o traficante Edimilson com um tiro na cabeça e outro no coração. Uma testemunha, em seu depoimento, declarou que virs Edimilson levantar as mãos e pedir que não o matasse; o cabo ainda assim disparou.
45. º ó -
46. 7 Americas Watch, Urban Police Violence in Brazil: Torture and Police Killings in São Paulo and Rio de Janeiro after five Years, Vol.5, Issue N.º 5, p.4 (1993). Outras fontes apresentam cifras ligeiramente diferentes: 411 em 1988, 519 em 1989; UAW 600 em 1990; 1.264 em 1992 (sem contar os 111 presos mortos na Casa de Detenção de Carandiru). Hélio Bicudo, Um Brasil Cruel e Sem Maquilagem, São Paulo, Edit.Moderna, p.15 (1994).
47. 8 Soldados da Guerra e da Loucura, Veja, 19 de abril de 1995, p. 80.
48.
9 Fonte: dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.
49. 10 Sérgio Verani, Assassinatos em nome da lei (Rio de janeiro, Adelará) 1966 e Jornal do Brasil, 16 de abril de 1996.
50. 11 Pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas e o Instituto de Pesquisas de Religião, Rio de Janeiro, 1996
51. "" - -
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54.
55. 16 (Gilberto Dimenstein, Democracia em Pedaços, São Paulo, Edit. Companhia das Letras, p. 79, 1996).
56.
17 Um exemplo alarmante ocorreu no sábado 4 de março de 1995, quando o cabo Flávio Ferreira Carneiro, da polícia "militar", executou com três tiros um suposto delinquente de 20 anos, Cristiano Moura Mesquita de Mello, que estava desarmado e recebera dois tiros nas mãos e um no ombro. O delinquente ñao resistiu á detençao. A cena foi filmada por um cinegrafista da TV Globo sem que o policial o percebesse e apesar do pedido expresso deste de que o cinegrafista não o fizesse. O incidente foi transmitido pelos noticiários Jornal de Hoje e Jornal Nacional. Uma pesquisa da Televisão Educativa do Rio de Janeiro revelou que 86% dos 106 telespectadores de um programa dessa emissora aprovavam a conduta do cabo.
57.
18 Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, CI para apuração de responsabilidades pelo extermínio de crianças e adolescentes no Estado do Rio de Janeiro (1991); A.A.Motta, Pesquisa: "Exterminadores rondam PMs," O Globo, 29 de junho de 1992, p.11. Citado em Ministério das Relações Exteriores, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, p. 41 (1994; Ver também Human Rights Watch/Americas, Final Justice...supra nota..., p.94.
58. 19 Folha de São Paulo, 14 de janeiro de 1996.
59. 20 Ministério das Relações Exteriores, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, p.41 (1994).
60. 21 Ministério das Relações Exteriores, op. Cit. 1994.
61. 22 Soldados da Guerra e da Loucura, Veja, 19 de abril de 1995, p.81; Ver também, sobre o tema dos esquadrões da morte, Human Rights Watch/Americas, Final Justice..., supra nota..., pp.82 a 125.
62. 23 Human Rights Watch/Americas, Final Justice, Police and Death Squad Homicides of Adolescents in Brazil, p.X (1994).
63. 24 Ministério das Relações Exteriores, op. Cit. 1994 p.41.
64. 25 Ver Amnesty International, "Beyond Despair, An Agenda for Human Rights in Brazil", p.5 (AMR 19/05/90). Ver também Human Rights Watch/Americas, Final Justice...,op. cit. 1994, pp. 82 e 83.
65. 26 Amnesty International, op. Cit. 1994 p.5.
66. 27 Ver Human Rights Watch/Americas, "Final Justice, Police and Death Squad Homicides of Adolescents in Brazil", p.82 (1994).
67. 28 Human Rights Watch/Americas, op. cit. 1994 p.X.
68. 29 Amnesty International, op. Cit. 1994 p.5.
69. 30 Amnesty International, op. Cit. 1994 p.6.
70. 31 Amnesty International, op. Cit. 1994 p.6.
71. 32 Amnesty International, "Crime without punishment. Impunity in Latin America", p.5 (novembro de 1996).
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73. 34 Ver Amnesty International, "Beyond Despair, An Agenda for Human Rights in Brazil", p.7 (1994); ver também Human Rights Watch/Americas, Final Justice... supra nota..., pp. 85 a 87.
74. 35 Ver Amnesty International, "Beyond Despair, An Agenda for Human Rights in Brazil", p.6 (AMR 19/5/90).
75. 36 Human Rights Watch/Americas, Final Justice..., supra nota, p. 83.
76. 37 Ver também, com respeito ao tema da corrupção da polícia civil, Guaracy Mingardi, "Tiras, Gansos e Trutas, Cotidiano e Reforma na Polícia Civil", Editora Página Aberta Ltda. (1991).
77. 38 (Gilberto Demenstein, Democracia em Pedaços, Edit. Companhia das Letras, São Paulo, p.78, 1996).
78. 39 (Paulo Rogério M. Menandro e Lídio de Souza, Linchamentos no Brasil: A justiça que não tarda mas falha, p. 126).
79. 40 Há no Brasil duas justiças militares paralelas. A primeira, de âmbito federal, é regida pela Lei 8457, de 4 de setembro de 1992, e tem competência para processar e julgar originariamente, entre outros, os oficiais das Forças Armadas. A segunda é a justiça militar estadual que, de acordo com a Constituição Federal, pode ser criada pela lei estadual no respectivo Estado federado ou no Distrito Federal, por proposta do Tribunal de Justiça. Esta última é constituída, em primeira instância, pelos Conselhos de Justiça e, em segunda instância, pelo próprio Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal de Justiça Militar nos estados em que os efetivos da polícia tenham mais de vinte mil membros (artigo 125, parágrafo 3, da CF).
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82. 43 Reinhart Maurach, Deutsches Strafrecht, ein Lehrbuch, Algemeiner Teil, Karlsruhe, 1971, seção 8,IVc, p. 93-4; "O direito penal especial de maior importância prática é o direito penal militar" (Das praktisch wichtigste Sonderstrafrecht ist das Wehrstrafrecht); Manzini, Diritto penale militares, cit., p.2; Giuseppe Ciardi, Instuzioni di diritto penale militare, Roma, s.d., V.1, p.12; Rodolfo Venditti, Il diritto penale militare nel sistema penale italiano, Milano, 1978, p. 23 a 25; e Heleno Cláudio Fragoso, Lições de direito penal; parte geral, Rio de Janeiro, 1980, p.5. Op. cit. Curso de Direito Penal, parte geral, Jorge Alberto Romeiro.
83. 44 Acredita-se que a política de segurança pública tenha raízes na Emenda Constitucional N.º 7, de 1977, chamada "Pacote de abril". De acordo com esse pacote, a estrutura do aparato repressivo do Estado baseava-se na doutrina da Segurança Nacional, que introduziu o conceito de "inimigo interno". "Inimigo interno" era todo aquele que fosse contrário ao regime. Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Por uma nova política de segurança e cidadania, Comissão Permanente de Justiça, Segurança e Questão Carcerária, Série Documento-1, p.9 (1994).
84. 45 Tanto no Estado de São Paulo como nos demais Estados em que se criou uma Justiça Militar, interpuseram-se múltiplas exceções de incompetência nos processos judiciais instaurados por esse tipo de delito. Ver Hélio Bicudo, Um Brasil Cruel e Sem Maquilagem, São Paulo, Ed. Moderna, p. 67 (1994). No caso n.º 2.800, sobre conflito de jurisdição, por exemplo, o Tribunal Supremo Militar estabelecer o seguinte:
1. A Lei poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça:
d) A justiça militar estadual, constituída em primeira instância pelos Conselhos de Justiça e, em segunda, pelo próprio Tribunal de Justiça, com competência para processar e julgar pelos crimes militares definidos na lei os membros das polícias militares (o grifo é da Comissão).
85. 46 A Emenda N 7 foi assinada pelo então Presidente do Brasil, General Ernesto Geisel.
86. 47 Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, Comissão de Direitos Humanos, Execuções Sumárias de Menores em São Paulo, p. 19 (1993). Ver também Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Por uma Nova Política de Segurança e Cidadania, Comissão Permanente de Justiça, Segurança e Questão Carcerária, Série Documentos-1, Benedito Domingos Mariano, Pe. Francisco Reardon O.M.I. e Carlos Weiss, p.13, supra, p.4.
87. 48 Carta do Centro Santos Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo à Secretaria da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (29 de junho de 1994).
88. 49 A Constituição de 1988 não recolheu as preocupações de certos setores que propiciavam a desmilitarização da polícia e a criação de uma força policial única integrada para tratar os cidadãos (infratores ou não) e não soldados ou inimigos em tempo de guerra. Democracia x Violência, Reflexões para a Constituinte, Severo Gomes... et.al., organizadores Paulo Sérgio Pinheiro e Eric Braun, Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 154 (1986). Ver também Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Por uma Nova Política de Segurança e Cidadania, Comissão Permanente de Justiça, Segurança e Questão Carcerária, Série Documento-1, p.13 (1994).
89. 50 J.D.Loureiro Neto, Lições do Processo Penal Militar, São Paulo, Saraiva, p.102 (1992).
90. 51 Consta que, no final de 1992, havia 14.000 casos pendentes em quatro tribunais de São Paulo que dispunham de um fiscal unicamente. Human Rights Watch/Americas, Final Justice, Police and Death Squad Homicides Adolescents in Brazil, p. 41 (1994).
91. 52 Embaixada do Brasil, Society, Citizenship and Human Rights in Contemporary Brazil, p.19 (1995).
92. 53 Em março de 1982, a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, afirmava que a principal causa do aumento de mortes causados pelos policiais militares era a impunidade gerada pelo sistema especial de justiça utilizado para seu julgamento. (Folha de São Paulo de 7 de março de 1982). Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Por uma nova política de Segurança e Cidadania, Comissão Permanente de Justiça, Segurança e Questão Carcerária, Série Documento-1, p. 14 (1994).
93. 54 Ver Country Reports on Human Rights Practices for 1990, Report Submitted to the Committee on Foreign Afairs, House of Representatives, and the Committee on Foreign Relations, U.S. Senate by the Department of State, p.332 (1994).
94. 55 Ver Human Rights Watch/Americas, Final Justice, Police and Death Squad Homicides of Adolescents in Brazil, p. 41 e 42 (1994).
95. 56 Entende-se por instrução criminal a etapa processual destinada a recolher os elementos probatórios, a fim de que o Conselho de Justiça possa formar sua própria opinião a respeito dos fatos. Tem início com o interrogatório do acusado (artigo 404 do Código de Processo Penal Militar -CPPM) e prossegue até as alegações finais (artigo 428 do Código de Processo Penal Militar - CPM).
96. 57 Carta do Centro Santos Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, dirigida à Secretaria Executiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (29 de junho de 1994) (remetendo casos tratados pelo Centro).
97. 58 Michaels, Rio's Dead End Kids, Time, 9 de agosto de 1993, p. 37.
98. 59 Gazeta de São Paulo, 7 de novembro de 1993.
99. 60 Human Rights Watch/Americas, Final Justice, Police and Death Squad Homicides of Adolescents in Brazil, p.41 (1994). Isso parece confirmar-se num estudo realizado pelo Centro Santos Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, no qual se indica que, dos processos submetidos à Justiça Militar em São Paulo, para julgamento de crimes cometidos por policiais militares, foram absolvidos 95% dos processados. Hélio Bicudo, Um Brasil Cruel e Sem Maquilagem, São Paulo, Edit. Moderna, p.16 (1994).
100. 61 Human Rights Watch/Americas, Final Justice, p.51 (1994).
101. 62 Os Deputados Hélio Bicudo e Cunha Bueno apresentaram originalmente o projeto de Lei N.º 3.321, de 1992, anexando o projeto de Lei N.º 2.801, de 1992, que alterava as disposições dos Decretos Leis Nºs 1.001 e 1.002, de 21 de outubro de 1969, Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar, respectivamente, nos termos do artigo 235, parágrafo II, alínea d, do Regulamento Interno. Esse projeto não foi aprovado. Posteriormente, o Deputado Hélio Bicudo voltou a apresentar o projeto à Câmara dos Deputados, onde tampouco foi aprovado. Em vez deste, foi aprovado um projeto substitutivo que se transformou na Lei N.º 9.299, de 7 de agosto de 1996, alterando as disposições dos Decretos Leis Nºs 1.001 e 1.002, de 21 de outubro de 1969, Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar, respectivamente nos termos do artigo 235, parágrafo II, alínea d, do Regimento Interno. Em 16 de julho de 1996, o Deputado Bicudo voltou a apresentar o projeto (projeto de Lei N.º 2.190, de 1996, que altera as disposições dos Decretos Leis Nºs 1.001 e 1.002, de 21 de outubro de 1969, Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar, respectivamente), que se acha atualmente submetido à consideração da Câmara dos Deputados.
102. 63 Constituído pelas seguintes entidades: Procuradoria Geral dos Direitos do Cidadão, Ordem dos Advogados do Brasil, Conferência Nacional de Bispos do Brasil, Comissão Pastoral da Terra, Amnesty International, CONTAG, INESC, Movimento dos Sem Terra, CMI e MNDH.
CAPÍTULO IV
AS CONDIÇÕES DE RECLUSÃO E TRATAMENTO NO SISTEMA PENITENCIARIO BRASILEIRO
A. A REALIDADE CARCERARIA
Antecedentes
1. Ultimamente, a Comissão vem recebendo informações de que as condições de detenção e prisão no sistema carcerário brasileiro violam os direitos humanos, provocando uma situação de constantes rebeliões, onde em muitos casos os agentes do governo reagem com descaso, excessiva violência e descontrole.
2. A Constituição Federal e as leis brasileiras contem prescrições avançadas com relação aos direitos e ao tratamento que deve ser dispensado aos presos, e também no tocante ao cumprimento da pena.(1) O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão subordinado ao Ministério da Justiça no âmbito federal, dita as políticas e diretrizes quanto a prevenção de delitos, a administração da justiça criminal, a execução das penas, as medidas de segurança e a elaboração do programa nacional penitenciário(2) A administração dos centros penais esta a cargo do Poder Executivo de cada estado da Federação, por meio das Secretarias de Justiça ou de Segurança Publica, e a supervisão externa do sistema penitenciário cabe aos Poderes Judiciais estaduais.(3)
3. Em 1994, um censo oficial indicou que dos 297 estabelecimentos penais existentes no Brasil, 175 se encontravam em situação precária e 32 em construção. A população carcerária gira em torno dos 130 mil presos, dos quais 96,31% são homens e 3,69% são mulheres. Quanto aos motivos da detenção, 51% dos presos cometeram furto ou roubo, 17% homicídio, 10% tráfico de drogas e o restante outros delitos.(4) É importante observar que 95% dos presos são indigentes e 97% são analfabetos ou semi-analfabetos. A reincidência na população penal é de 85%, o que demonstra que as penitenciárias não estão desempenhando a função de reabilitação dos detentos.
4. Como resultado de sua visita in loco, e também de outros antecedentes, a Comissão considera que os grandes problemas de que padece o sistema penitenciário brasileiro são os indicados a seguida.
Superpopulação Carcerária
5. A capacidade das penitenciárias brasileiras está estimada oficialmente em 51.639 vagas. Isso significa que, com um universo de 130 mil internos, existe atualmente um déficit de cerca de 75 mil vagas e que cada vaga atual esta sendo ocupada por 2,5 presos em média.(5) De acordo com esses números oficiais, é necessária a criação de pelo menos 150 novos presídios para mitigar a situação do déficit de vagas. Outras fontes apresentam uma situação numérica muito mais grave, indicando que as prisões estão abrigando entre 5 a 6 vezes mais detentos do que permite sua capacidade real.(6) e 7
6. Essa falta de espaço, o amontoamento e a superpopulação foram constatados pela Comissão sobretudo na visita a Casa de Detenção de Carandirú(7) e ao 3º Distrito Policial da cidade de São Paulo. Um funcionário policial deste último centro afirmou que a delegacia era um verdadeiro "depósito de presos". É tamanha a superpopulação e a promiscuidade ali existentes que a Comissão pode comprovar que em um espaço de três metros por quatro (12 m2), destinado a alojar seis presos, se alimentavam e dormiam, sem leitos, nem qualquer comodidade por mínima que fosse, muitas vezes sentados ou de pé por falta de espaço, quase 20 presos.(8) 0 pátio central, a que esta Comissão teve acesso, oferecia um quadro impressionante, com presos de pé, sujos e seminus ocupando praticamente cada centímetro de sua superfície. Era tal a falta de espaço que, para que os membros da Comissão pudessem se movimentar e conversar com os detentos, eles tinham de se comprimir para abrir caminho. Segundo se informou a Comissão, esse pátio serve de moradia para muitos deles, que dormem amontoados, as vezes sentados, de pé ou até pendurados nas grades, expostos a chuva e as intempéries. Alguns presos mostraram ferimentos nas pernas, causados pela posição em que eram obrigados a dormir no chão.
7. Chamou especialmente a atenção da Comissão o fato, confirmado pelo censo penitenciário, de que, como conseqüência da falta de estabelecimentos penais e de espaço dentro destes, 48% dos presos judicialmente condenados cumprem pena nas cadeias dos distritos policiais, que são prisões de caráter provisório ou de transito, o que implica que muitas vezes detentos simples, suspeitos e/ou presos primários são colocados juntos com outros condenados por graves delitos, o que constitui, como se verá mais adiante, uma aberta violação das normas internacionais, e acarreta graves prejuízos para certas categorias de presos.
8. 0 atual Governo é consciente do problema, da superpopulação carcerária e isso está refletido no Programa Nacional de Direitos Humanos. Seus objetivos a curto prazo são: 1) criar novos estabelecimentos e aumentar o numero de vagas, utilizando para tanto recursos do Fundo Penitenciário Nacional; 2) apresentar projeto de lei com a introdução de sentenças alternativas as penas privativas de liberdade para os crimes não-violentos; e, a médio prazo, 3) incentivar a agilização dos procedimentos judiciais para reduzir o numero de detentos a espera de julgamento.
9. No caso especifico de Carandirú o Governo informou a CIDH do convênio entre o governo federal e o governo do Estado de São Paulo para a desativação do Complexo Penitenciário de Carandirú. Serão construídos, em curto prazo, nove presídios - seis de segurança média e uma casa de detenção para presos sem condenação definitiva (cada um com capacidade para abrigar 600 presos). A segunda fase do plano prevê a construção de mais 25 presídios, também dotados de 600 vagas cada um.
10. Segundo o Governo, a construção de novos presídios resolverá o problema de vagas e permitirá a criação de um ambiente propício para a re-socialização dos internos. Em São Paulo, onde o problema é mais grave, o governo do estado já vem adotando outras medidas para evitar que a superlotação e a existência de rebeliões leve a repetição de incidentes como o do Carandirú, onde 111 presos morreram durante ação policial. Nas rebeliões ocorridas recentemente, a disposição do Governo para atuar com rigor, embora com respeito aos direitos humanos, evitou mortes em situações tão ou mais complexas do que aquela enfrentada no Carandirú. Esse resultado foi obtido graças a medidas de controle do uso da força: a autoridade responsável pela ordem de invasão dos presídios e repressão da rebelião está sempre a frente da tropa e apenas os oficiais mais graduados portam armas de fogo. As rendições são freqüentes porque há garantia de que não ocorrerão represálias e torturas. Há também maior treinamento das tropas de choque.
11. Com vistas a diminuir a pressão sobre o sistema penitenciário brasileiro e contribuir para uma rápida recuperação dos internos, o Executivo Federal enviou projeto de lei ao Congresso nacional estendendo a aplicação de penas alternativas a privação de liberdade. O objetivo é atingir sobretudo aquelas pessoas que tenham cometido crimes contra o patrimônio publico, fazendo com que elas reconstituam o que foi destruído ou devolvam aos cofres públicos o que retiraram indevidamente Atualmente as penas alternativas são aplicadas apenas aos condenados a penas de até um ano de prisão, mas caso o projeto seja aprovado, o benefício alcançará os condenados a até cinco anos.
12. A comissão teve a oportunidade, em Julho de 1997 de visitar os estabelecimentos do sistema penitenciário brasileiro, onde pode observar um esforço sério e científico de se concretizar novos modelos para o tratamento e reabilitação dos reclusos.
Um deles é o centro Penitenciário de Papuda, no Distrito Federal, onde alem de um aceitável cumprimento dos standards internacionais de tratamento existem ainda programas de reinserção através do trabalho produtivo, dentro e fora do estabelecimento penal, o qual atinge uma parcela substancial da população carcerária. Também pude apreciar outras iniciativas( atelier de pintura, teatro, aprendizagem, biblioteca) que tendem a cumprir o objetivo de reabilitação, o qual deveria ser a norma para todos os estabelecimentos.
Em outros estabelecimentos visitados , merece também ser mencionado o Hospital Penal em Niterói, Estado do Rio de Janeiro, vinculado com a Secretaria de Justiça e Interior deste estado. Estabelecimento este onde se realiza de maneira sistemática atendimento médico, curativo e preventivo, aos reclusos em sua jurisdição, utilizamdo-se de recursos modernos e desenvolvendo iniciativas experimentais de grande potêncial.
Higiene e Saúde
13. A Comissão teve a oportunidade de constatar as condições higiênicas precárias e deficientes em que vivem os presos e a falta de atendimento médico e tratamento psicológico adequados a que estão submetidos. Segundo declarações dos próprios presos, em caso de brigas entre eles ou doenças, eles próprios tem que tratar dos feridos ou enfermos.(10)1 A Comissão, ao visitar a Penitenciária Feminina de São Paulo, recebeu queixas das reclusas quanto à falta de atendimento médico, sobretudo ginecológico e dental, e à inexistência de veículos para o transporte das internas ao médico ou hospital. Nesses recintos, as instalações sanitárias coletivas eram totalmente inadequados e anti-higiênicas.
14. A Comissão teve igualmente a oportunidade de visitar um pavilhão de doentes de AIDS, que jaziam em seus catres, praticamente abandonados e com falta de higiene. Esta grave enfermidade afeta sobretudo os presos dos grandes centros urbanos, e aproximadamente 25% dos presos das cadeias dos distritos policiais e das prisões publicas são portadores do vírus HIV. Quando a doença chega a seu estado terminal, é difícil encontrar quem queira socorrer as vitimas ou levá-las aos hospitais.(11)2
15. Nas visitas da Comissão a Casa de Detenção de Carandirú e ao 3º Distrito Policial, muitos presos se queixaram de que doenças gástricas, urológicas, dermatites, pneumonias e ulcerações não eram atendidas adequadamente, afirmando que muitas vezes nem sequer havia remédios básicos para tratá-las.
16. A Comissão recebeu igualmente queixas de que, quando os presos doentes precisam ser transladados a postos de saúde ou hospitais para receber um tratamento médico determinado ou de urgência, a Policia Militar (órgão encarregado de escoltar ou transportar os reclusos aos hospitais) a vezes se nega a faze-lo ou adia sem qualquer justificação a escolta, o que muitas vezes resulta na piora do estado de saúde do doente.(12)3
Alimentação, roupa e cama
17. Nos diferentes centros penitenciários que a Comissão visitou, numerosos presos se queixaram da insuficiência da comida que Ihes era servida, de que passavam frio, de que quando chovia se molhavam e não tinham muda de roupa, sendo obrigados a ficar com a roupa molhada e úmida por muitos dias.
18. Da mesma forma, foi-nos informado que os presos que possuem recursos podem conseguir mais comida e agasalho. Chamou ainda a atenção da Comissão, de acordo com os estudos realizados sobre a questão e com os depoimentos por ela recebidos, a freqüência com que nos centros penitenciários ocorre o "desvio de comida". Nesses casos, a comida é comercializada pelos guardas ou por outros que podem ser subornados, fora do estabelecimento, o que acarreta um aumento no clima de violência no interior dos presídios(14)5, com as conseqüências trágicas que são apresentadas neste capítulo.
Assistência judicial e requerimento dos benefícios dos presos
19. Quase sem exceção, os membros visitantes da Comissão receberam queixas dos presos com relação à lentidão da tramitação burocrática quando requerem os benefícios a que tem direito por lei e à complexidade dos processos judiciais para consegui-los, o que é agravado ainda pela falta de assistência legal adequada.(16)7 Esses benefícios legais são, entre outros, a transferência para regimes abertos e semi-abertos, a redução ou compensação da pena (um dia de desconto da pena para cada três de trabalho) e, ainda mais grave, a decisão de libertar os reclusos depois de terem cumprido suas respectivas penas.
20. Segundo deram a entender os presos com quem a Comissão se reuniu, cerca de 80% dos internos já cumpriram um sexto da pena e, portanto, teriam direito a cumprir o restante em um regime semi-aberto, e cerca de 50% teriam direito a passar para um regime aberto de acordo com o tempo cumprido. Todavia, os procedimentos são longos e complicados, o que os obriga a continuarem em regime de reclusão. Informou-se igualmente à Comissão que pelo menos 50% dos presos do Rio de Janeiro poderiam obter liberdade condicional, o que não conseguem por falta de advogados para fazer o competente requerimento.(17)8
Vínculos e visitas familiares
21. A Comissão recebeu queixas da parte dos reclusos de que era praticamente impossível desfrutar da intimidade com seus cônjuges ou familiares por ocasião das visitas. Observou-se igualmente que muitas vezes os agentes penitenciários cobravam dinheiro dos familiares dos presos para permitirem as visitas.
Reabilitação,(19)0 falta de oportunidade de trabalho (20)1 e recreação (21)2 nointerior das prisões
22. Uma das funções que a pena deve cumprir é a reabilitação do indivíduo, para que este possa reintegrar-se o mais harmoniosamente possível na sociedade. O trabalho produtivo na penitenciaria é considerado como uma mecanismo indispensável para se alcançar esse objetivo.(22)3
23. Sem embargo, muitos dos presos entrevistados pela Comissão se queixaram de que não há trabalho nas prisões, o que os obriga a passar o dia todo dormindo ou andando de um lado para o outro.4 0 censo penitenciário revelou que 89% dos presos não desenvolvem qualquer trabalho, pedagógico ou produtivo, sendo esse um dos fatores mais decisivos para as tensões e revoltas nas penitenciárias. Deve-se ressaltar que a maioria dos detentos tinhám emprego produtivo antes de ir para a prisão.5
24. 0 fato de a população carcerária do Brasil ser significativamente jovem (68% dos reclusos tem menos de 25 anos) torna ainda mais imperativo o desenvolvimento de políticas efetivas de reabilitação dos reclusos e de possibilidades de trabalho. Trata-se, de fato, de uma população que pode ter uma longa vida produtiva pela frente e que, de outra maneira, se verá condenada a uma marginalidade permanente.
25. A Comissão recebeu ainda queixas constantes dos reclusos entrevistados com relação à ausência quase total de atividades recreativas, situação que também ajuda a aumentar o clima de violência existente (ver Rebeliões e Massacres nos Centros Penais).
Separação dos reclusos por categorias
26. A Comissão pode verificar também, por declarações dos presos, as quais foram confirmadas pelas autoridades penitenciárias, que em muitos centros penais não se dividem os internos de acordo com a natureza do delito nem pela idade. Pelo contrario, em estabelecimentos destinados a detenções temporárias convivem presos condenados por diferentes delitos (primários e reincidentes), menores, adultos, detentos em prisão preventiva, presos em flagrante e outros que aguardam os resultados de investigação.7
27. Uma das principais razões da necessidade de se separar os reclusos por categorias é de evitar, entre outras coisas, que aqueles que tem um passado de crime exerçam influência nociva sobre delinqüentes primários ou submetidos a processos de investigação, além de facilitar a readaptação social e garantir a segurança física dos detentos. A Comissão foi informada, tanto por agentes penitenciários como por reclusos, que as prisões estavam se transformando em verdadeiras escolas do crime nas quais delinqüentes com experiência ensinam os mais jovens a perpetrar diferentes ilícitos penais, estabelecendo vínculos e dependências orientadas para o delito em um mundo de ilegalidade do qual é difícil sair e para o qual o sistema carcerário de fato estimula .
Sanções disciplinares
28. A Comissão pode comprovar também que ainda existem as chámadas "celas fortes", ou solitárias, nas quais, segundo se informou, depois de um procedimento sumário se encerram os presos que cometeram faltas disciplinares. A reclusão e de até trinta dias e de acordo com as declarações dos presos, são ainda sujeitos a punições adicionais.
Agentes penitenciários
29. No desempenho de sua tarefas, os agentes penitenciários devem respeitar e proteger a dignidade humana, bem como manter e defender os direitos humanos de todas as pessoas.8 A Comissão recebeu depoimentos de que os agentes penitenciários muitas vezes tratam os presos de maneira desumana, cruel e prepotente, o que se traduz em torturas e corrupção.9 Isso se deve basicamente à falta de treinamento especializado desses funcionários no que diz respeito aos direitos humanos e ao tratamento de presos, além da escassez e má remuneração dos funcionários. Outro fator que contribui é a falta de supervisão e controle adequado, o que acaba gerando impunidade.0
30. 0 sistema penitenciário brasileiro padece da falta de agentes carcerários. Segundo o censo penitenciário, existem 11 presos para cada funcionário, longe da relação recomendada pelas Nações Unidas, que é de três presos por funcionário.
31. A Comissão vê com bom grado os planos do Governo para melhorar o treinamento dos agentes penitenciários,1 como parte do projeto mais amplo de recrutamento, treinamento e melhoria das condições de trabalho dos funcionários penitenciários. E espera que esse venha a se concretizar.
Falta de recursos
32. Os agentes penitenciários informaram à Comissão que um dos principais problemas que aflige o sistema e a falta de uma adoção orçamentaria adequada para o sistema penitenciário, fato este que impede um serviço melhor. Em 1992, por exemplo, o Departamento de Assuntos Penitenciários solicitou a inclusão da soma de US$22.743.000 no orçamento federal, mas o Congresso Nacional só aprovou o montante de US$5.091.000, dos quais só foram efetivamente gastos US$1.873.650.32
B. AS REBELIÕES E OS MASSACRES NOS CENTROS PENAIS
33. Nos centros penais brasileiros ocorrem em media duas rebeliões e três fugas por dia. 3 As causas para isso são muito variadas. Os presos apontam como tais as condições materiais, a má alimentação, a falta de assistência jurídica, médica e religiosa; a superpopulação, a ausência das condições mínimas de tratamento, a violência carcerária por parte dos agentes penitenciários e a ineficácia dos organismos responsáveis pelo controle e encaminhamento das queixas. Por sua parte, alguns agentes penitenciários consideram as rebeliões como mecanismos de tentativa de fuga em massa usados pelos presos.
34. As rebeliões no interior dos presídios tiveram em muitas ocasiões conseqüências trágicas, custando a vida de muitos presos e de guardas penais. A esse propósito, os fatos indicam que, sempre que as autoridades penitenciárias decidiram não negociar com os rebeldes e esmagar as rebeliões com violência, ocorreram mortes de guardas e detentos, ao passo que, quando houve negociação, foi bem menor o numero de vitimas fatais. Um estudo comparou com uma amostra de rebeliões o resultado das diferentes estratégias seguidas. Comprovou-se que, para 11 rebeliões ocorridas entre setembro de 1986 e abril de 1988, em nenhuma das seis em que se negociou houve mortes; já nas cinco ocasiões em que não se negociou e os rebeldes foram reprimidos com violência, ocorreram 47 mortes entre guardas e detentos.4
35. Um dos massacres ocorreu em 2 de outubro de 1992 na Casa de Detenção de Carandirú, na cidade de São Paulo. A investigação judicial demonstrou que, no Pavilhão 9 da prisão, a Policia Militar disparou contra presos nús e indefesos, que não opunham resistência. Como resultado desse ato de violência, 111 presos foram mortos, crivados pelos disparos dos policiais militares protegidos por escudos.5
36. Com relação ao grande numero de mortes ocorridas no interior das prisões devido ao uso irracional e indiscriminado da força, a Comissão deseja observar que o uso da força por parte dos agentes penitenciários só deve ser aplicado em casos excepcionais, observando-se estrita obediência aos critérios de que seja proporcional ao perigo e razoavelmente necessária, de acordo com as circunstâncias, para a prevenção de delito e que seja proporcional à ameaça e ao risco.6
A negociação deve ser o instrumento idôneo e hábitual, para o qual se deve treinar o pessoal e desenvolver técnicas e especialistas apropriados. O uso de armas de fogo é considerado uma medida extrema, devendo-se fazer todo o possível para se evitar seu uso. Como regra geral, não se devem usar armas de fogo a não ser no caso em que o suposto delinqüente ofereça resistência armada ou ponha em perigo a vida de outras pessoas e não seja possível dominá-lo ou detê-lo com aplicação de medidas menos extremas.
C. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
37. 0 propósito das penas privativas de liberdade, entre outros, é o de separar os indivíduos perigosos da sociedade para protege-la contra o crime e a readaptação social dos condenados. Para isso, o regime penitenciário deve empregar os meios curativos, educativos, morais, espirituais e de outra natureza, e todas as formas de assistência de que possa dispor, no intuito de reduzir o máximo possível as condições que enfraquecem o sentido de responsabilidade do recluso ou o respeito à dignidade de sua pessoa e a sua capacidade de readaptação social.
38. Da analise que fizemos da realidade carcerária no Brasil, conclui-se que em muitas prisões os detentos se encontram em condições sub-humanas, o que constitui violação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros instrumentos internacionais de direitos humanos. Na pratica, os presos no Brasil são, em sua maioria, maltratados e desamparados, o que minimiza a possibilidade de sua reforma e readaptação, dadas as condições físicas e humanas das prisões e do pessoal responsável pelo sistema penitenciário.
39. Diante dessa grave situação, a Comissão considera que os esforços que o Governo Brasileiro se propõe a realizar, no setor penitenciário a curto, médio e longo prazo, conforme as diretrizes traçadas no Programa Nacional de Direitos Humanos, são indispensáveis. Mas requerem toda a energia política, técnica e financeira necessárias, e devem ser encarados com absoluta urgência.
40. A Comissão, além de incentivar o Estado brasileiro a tornar realidade seu programa penitenciário, se permite recomendar-lhe que, no referente a:
Aplicação de medidas carcerárias
Sejam adotadas todas as medidas adequadas para melhorar a situação de seu sistema penitenciário e o tratamento que os presos recebem, para cumprir plenamente as disposições de sua Constituição e leis, bem como os tratados internacionais de que o Estado brasileiro é signatário. Sob esse aspecto, recomenda-se que se apliquem efetivamente como instrumento-guia as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos e as Recomendações Relacionadas das Nações Unidas.
Condições carcerárias físicas
Seja consideravelmente ampliada a capacidade de vagas do sistema penitenciário, com o objetivo de solucionar o grave problema atual de superpopulação e, simultaneamente, sejam criadas condições de abrigo físico, higiene, trabalho e recreação de acordo com as normas internacionais.
Higiene e saúde
Sejam melhoradas as condições de higiene e saúde nos estabelecimentos penitenciários e nas cadeias das delegacias policiais.
Seja oferecido aos detentos e presos, sem qualquer distinção, o atendimento médico de que necessitem de maneira oportuna e eficaz e, quando for o caso, seja realizado, sem qualquer demora, seu transporte aos centros de assistência médica.
Sejam estabelecidos os serviços de atendimento necessários para os doentes de AIDS e portadores de HIV, proibindo-se toda discriminação imprópria a sua condição.
Alimentação e roupas:
Seja fornecida aos reclusos uma alimentação suficiente e balanceada, com o valor adequado de calorias. Sejam tomadas as medidas cabíveis para se evitar o desvio de alimentos que favorece ilegalmente a alguns reclusos e/ou resulte na corrupção administrativa.
Assistência judicial:
Sejam adotadas todas as medidas necessárias para a prestação de uma assistência jurídica real, efetiva e gratuita aos que dela necessitem e não tem como paga-la durante todas as etapas do processo judicial.
Sejam concedidos e reconhecidos de maneira eficaz e oportuna aos presos os benefícios e privilégios a que tem direito nos termos da lei, em particular quanto a redução de penas, a indultos, a visitas familiares, etc.
Sejam acelerados os processos judiciais que mantém em reclusão réus não condenados e sejam libertados os que cumpriram o máximo autorizado legalmente.
Sejam efetivamente consagradas na legislação normas referentes ao cumprimento alternativo de penas.
Reabilitação e separação dos detentos por categorias
Sejam os detentos em prisão preventiva separados dos condenados, e estes últimos agrupados de acordo com o tipo e gravidade do delito e a idade dos reclusos.
Sejam oferecidas oportunidades de trabalho aos presos, além de programas de educação, reabilitação e recreação que contribuam para a sua readaptação e reinsercão na sociedade.
Sanções disciplinares
Sejam eliminadas as solitárias ou "celas fortes", pois elas estão em contravenção às normas internacionais.
Sejam estabelecidos mecanismos efetivos e oportunos de controle interno no sistema penitenciário para punir os agentes penitenciários responsáveis por abusos e atos de violência contra os presos.
Agentes penitenciários
Sejam criados programas adequados de formação e especialização para os agentes responsáveis pela segurança, administração e supervisão das prisões, bem como para o pessoal médico do sistema carcerário.
Seja aumentado o numero de guardas penitenciários em relação ao numero de presos, de acordo com a proporções estabelecidas internacionalmente.
Dotação de recursos
Sejam alocados nos orçamentos federais e estaduais os recursos financeiros e materiais necessários para que o sistema penitenciário possa desenvolver plenamente os planos e metas traçadas pelo Programa Nacional de Direitos Humanos, e possa alcançar o mínimo de condições e segurança requeridas de acordo com os instrumentos internacionais.
Controle de situações de violência
Sejam desenvolvidas políticas, estratégias e técnicas, para evitar situações de violência, entre os reclusos.
NOTAS AO CAPÍTULO IV
(25)
E as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos das Nações Unidas dispõem:
"15. Exige-se dos reclusos asseio pessoal, e para tal fim disporão de água e dos artigos de higiene indispensáveis a sua saúde e limpeza."
"22. 1) Todo estabelecimento penitenciário disporá pelo menos dos serviços de um medico qualificado, que devera possuir alguns conhecimentos psiquiátricos [...] 2) Será providenciado o translado dos doentes cujo estado requeira cuidados especiais a estabelecimentos penitenciários especializados ou a hospitais civis [...] 3) Todo recluso deve poder utilizar os serviços de um dentista qualificado."
"23.1) Nos estabelecimentos para mulheres deverão existir instalações especiais para o tratamento das reclusas grávidas [...]."
11 A Pastoral Carcerária informa a este respeito que ficar doente na prisão é perigoso porque são muito poucos os presídios que dispõem de assistência médica adequada. Além disso, os hospitais públicos são renitentes em atender aos presos doentes porque achám que eles ocupam as vagas do cidadão honesto e trabalhádor. Normalmente, nas enfermarias das prisões não há remédios nem para uma simples dor de cabeça. Op. cit. at 21.
12 Idem at pag. 21.
13 Presos com problemas oftalmológicos simples teriam ficado cegos por não terem sido levados ao hospital público. As vezes, uma pequena infeção do dedo de um pé termina na amputação da metade da perna porque a escolta policial militar (PM) não atende ao chámado ou chega tarde e se perde o horário marcado no hospital. "0 pior é que ninguém tem poder sobre a PM, que faz o que quer". Idem, pag. 87.
14 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos das Nações Unidas dispõem a respeito: "20. 1) Todo recluso receberá da administração, nas horas costumeiras, uma alimentação de boa qualidade, bem preparada e servida, de valor nutritivo suficiente para a manutenção de sua saúde e de suas forças. 2) Todo recluso devera ter a possibilidade de se abastecer de água potável quando dela precisar." "17.1) Todo recluso a quem não é permitido vestir suas próprias roupas recebera outras apropriadas ao clima e suficientes para mante-lo em boa saúde [...]."
15 Ver ops. cit. at 4, 6, 9.
16 A Convenção Americana em seu articulo 8 (2) (e) dispõe:
"Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se estabelecer legalmente sua culpabilidade. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, as seguintes garantias mínimas:"
"E direito irrenunciável de ser assistido por um defensor oferecido pelo Estado, remunerado ou não segundo a legislação interna, se o acusado não se defender por si próprio nem nomear defensor dentro do Prazo estabelecido por lei".
Da mesma forma, o artigo 25 da Convenção dispõe que toda pessoa tem o direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo perante os juizes ou tribunais competentes, que a ampare contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, por lei ou pela presente Convenção.
17 A maioria dos presos necessita de assistência judicial para recuperar a liberdade e obter os benefícios legais a que tem direito. Dada a indigência da grande maioria dos presos, a assistência legal deve ser gratuita e integral, conforme garante a Constituição. Em vez disso, segundo foi informado a Comissão e aparece corroborado por outras fontes, o Estado designa uns poucos advogados para atender as necessidades judiciais de todos os presídios e cadeias. Op. cit. at 9, pag. 20-21.
18 0 que se expôs e confirmado pela conclusão do Relatório Final sobre o Sistema Penitenciário Brasileiro, preparado pela Câmara dos Deputados do Brasil, no qual se observa que mais de 50% dos presos estão cumprindo pena irregularmente. Op. cit. at 6, pag. 92.
19 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos dispõem a respeito:
"79. Zelar-se-ia particularmente pela manutenção e pela melhoria das relações entre o recluso e sua família, quando estas forem convenientes para ambas as partes."
20 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos dispõem a respeito:
"65. 0 tratamento dos condenados [...] deve ter por objetivo [...], inculcar-lhes a vontade de viver conforme a lei, sustentar-se com o fruto de seu trabalho e criar neles a aptidão para faze-lo. Esse tratamento visará fomentar neles o respeito por si próprios e desenvolver o sentido de responsabilidade."
"77. 1) Tomar-se-ao providências no sentido de melhorar a instrução de todos os reclusos capazes de tirar proveito dela, incluindo a instrução religiosa nos países em que isto for possível; a instrução dos analfabetos e a dos reclusos jovens será obrigatória e a administração deverá dispensar-lhes atenção especial."
21 A Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos das Nações Unidas dispõem a respeito:
"71. 1) O trabalho penitenciário não devera ter caráter aflitivo. 3) Proporcionar-se-a aos reclusos um trabalho produtivo, suficiente para ocupa-los pela duração normal de uma jornada de trabalho. 4) Na medida do possível, este trabalho devera contribuir por sua natureza para manter ou aumentar a capacidade do recluso de ganhár honradamente sua vida depois de sua libertação. 5) Dar-se-a formação profissional em algum oficio útil aos reclusos que tenhám condições de tirar proveito dela, sobretudo aos jovens [...]".
22 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos dispõem a respeito:
"78. Para o bem-estar físico e mental dos reclusos organizar-se-ao atividades recreativas e culturais em todos os estabelecimentos."
23 0 artigo 5 (6) da Convenção Americana dispõe a respeito que "as penas privativas da liberdade terão como finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados".
24 De acordo com um estudo, 85% dos presos consomem maconhá. (Câmara dos Deputados, op. cit.)
25 0 Dr. Vinícius Caldeira Brant, em um estudo realizado sobre o perfil dos presos, entrevistou uma amostra representativa da população carcerária de São Paulo e concluiu que a maioria dos detentos se encontrava trabalhándo na época de sua prisão e que apenas 1 % da população entrevistada nunca tinhá trabalhádo. Camara dos Diputados, op. cit., p.26.
26 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos dispõem a respeito:
"8. Os reclusos pertencentes a categorias diversas deverão ser alojados em diferentes alojamentos ou em diferentes sessões dentro dos estabelecimentos, segundo o sexo e a idade, os antecedentes, os motivos da detenção e o tratamento que Ihe deverão ser aplicados. Ou seja: a) Os homens e as mulheres deverão ser recolhidos, na medida do possível, em estabelecimentos diferentes; no estabelecimento em que se receber homens e mulheres, o conjunto destinado as mulheres devera ser completamente separado; b) Os detidos em prisão preventiva deverão ser separados dos que estão cumprindo condenação; c) As pessoas presas por dividas e os demais condenados a alguma forma de prisão por razoes cíveis deverão ser separadas dos detidos por infração penal; d) Os detidos jovens deverão ser separados dos adultos."
27 0 artigo 5 (4) da Convenção Americana dispõe que "os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstancias excepcionais, e serão submetidos a um tratamento adequado a sua condição de pessoas não condenadas".
28 Código de Conduta para Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a Lei, artigo 2.
29 Segundo relatório da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, os presos recebem pancadas, surras, insultos, choques elétricos, "corredor polonês", etc. Este tratamento faz parte da rotina de muitos presídios e delegacias. Os carcereiros, guardas, delegados e diretores da prisão muitas vezes abusam respaldados na impunidade. A corrupção também esta presente e eles por vezes cobram pedágio às famílias, "passando a mão no que a família traz para o preso". Op. cit., at. 9, pag. 21
30 A Convenção Americana em seu artigo 5 (1) (2) dispõe que: "1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral", "2. Ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cureis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade será tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano".
31 Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, Op. cit., at 9 pag 15.
32 Idem, pag. 8.
33 Op. cit. at 5, pag. 13.
34 Pastoral Carcerária da Arquidiocese de São Paulo, "Elementos para uma reflexão em busca de pistas na questão de rebeliões e reféns 1986-1988", maio 1988, pag. 5.
35 0 caso do massacre de Carandirú (n 11.219) encontra-se atualmente em tramitação junto à Comissão e, portanto, qualquer referencia que se faça a ele e descritiva e não implica prejulgar a essência da questão, que esta sendo objeto de estudo por parte da Comissão.
Para mais informações sobre esse caso, ver AMERICAS WATCH, "Brasil: Prison Massacre in São Paulo", 21 de outubro de 1992; AMNESTY INTERNATIONAL, "Brazil, Death Has Arrived, Prison Massacre at Casa de Detenção. São Paulo", agosto de 1993.
36 0 artigo 3 do Código de Conduta para Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a Lei dispõe: "Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei somente poderão usar a força quando for estritamente necessário e na medida que o requeira o desempenho de suas tarefas."
CAPÍTULO V
VIOLÊNCIA CONTRA OS MENORES
1. O estudo do tema dos menores foi iniciado no Capítulo III, no contexto mais geral da violência policial e dos esquadrões da morte, cujas vítimas principais são justamente as crianças e os adolescentes. Antes, na análise dos direitos sócio-econômicos (Capitulo II), foram apresentados dados que mostram as condições de pobreza e marginalidade em que uma substancial percentagem de crianças brasileiras nasce e se desenvolve na infância. No presente capítulo, serão analisados os compromissos legais do Brasil nesse campo, o tema das execuções extrajudiciais, o maltrato policial a menores, sua situação nos estabelecimentos de bem-estar e proteção, e sua exploração sexual e no trabalho.
A. AS OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS DO BRASIL PARA COM A INFÂNCIA
2. As crianças brasileiras estão legalmente protegidas tanto pela legislação interna quanto pelos tratados internacionais aos quais o Brasil se comprometeu.(26)es eêundação para o Bem Estar do Menor (FEBEM), que não está preparada para atender aos menores infratores, tanto na Capital, como no interior e o fato de que nos estabelecimentos da FEBEM não há separação dos infratores primários dos reincidentes, criando um clima em que os primários são contagiados pelo mal exemplo dos reincidentes.
3. A Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil, e que a Comissão considera como marco referencial, estabelece que os Estados partes terão, entre outras coisas, a obrigação de respeitar toda criança e garantir-lhe, dentro de sua jurisdição, os direitos estabelecidos na Convenção sem distinção de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas, nacionalidade, origem étnica ou social, propriedade, incapacidade, nascimento ou outro status da criança, de seus pais ou responsáveis legais (artigo 2).
4. A Convenção das Nações Unidas estabelece ainda a obrigação que têm os Estados partes de assegurar a criação de instituições e serviços destinados a seu cuidado (artigo 18) e de adotar as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas para proteger as crianças de toda forma de violência física ou mental, lesão corporal, ou abuso, tratamento negligente, maltrato ou exploração, incluindo abuso sexual, enquanto permanecerem sob o cuidado dos pais, responsáveis legais ou de outras pessoas que as tenham sob seus cuidados (artigo 19).
B. OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA LEGISLAÇÃO INTERNA
5. A ampla campanha de mobilização da opinião pública que levou à reforma constitucional de 1988, sensibilizada pelos sérios problemas por que passava a infância brasileira, refletiu-se no artigo 227 da Constituição, que estabelece:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão e que o Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente.
6. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90), uma das leis mais avançadas em matéria de proteção dos menores, substituiu o Código de Menores anterior, de índole correcional, e à igualmente repressiva Política Nacional de Bem-estar do Menor. Dessa forma, o novo Estatuto, em vez de ser um instrumento de controle represivo, considera a criança e o adolescente como seres humanos em formação, "sujeitos de direitos", introduzindo inovações na política de promoção e defesa de seus direitos em todas as dimensões: física (saúde e alimentação), intelectual (direito à educação, direito à formação profissional e à proteção no trabalho), emocional, moral, espiritual e social (direito à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e à convivência comunitária). O Estatuto diferencia entre "criança", toda pessoa com menos de 12 anos de idade, e "adolescente", toda pessoa entre 12 e 18 anos de idade.
7. O Estatuto proclama também o direito das crianças e dos adolescentes a terem sua vida e saúde protegidas mediante a execução de políticas sociais públicas (artigo 7) e garante à mãe grávida, por meio do Sistema Único de Saúde, todo o atendimento necessário pré- e pós-natal (artigo 8).
8. A Comissão constata com satisfação a criação pelo Estatuto, de uma instituição potencialmente valiosa. Trata-se do Conselho Tutelar, órgão permanente e autônomo, não-jurisdicional, que deve existir em todo município para zelar pelos direitos da criança e do adolescente. Compõe-se de cinco membros eleitos pelos cidadãos locais para um mandato de três anos reelegíveis. São atribuições do Conselho Tutelar, entre outras, aplicar medidas de proteção ou de índole social e educativa, e atender e aconselhar aos pais ou responsáveis. Esta atribuição inclui a faculdade de determinar aos pais ou responsáveis que se submetam a tratamento psicológico ou psiquiátrico; obrigá-los a matricular os menores na escola; ordenar que lhes providenciem tratamento especializado; fazer advertências; determinar a perda da guarda ou tutela e a suspensão ou perda do pátrio poder. Entre as atribuições desses conselhos se encontram também: promover a execução de suas decisões; passar ao Ministério Público informações sobre fatos que constituam infração administrativa ou penal contra os direitos da criança e do adolescente; e encaminhar à autoridade judicial os casos de sua competência.
9. Cabe observar, todavia, que até setembro de 1994, ou seja, decorridos mais de 4 anos depois da publicação do Estatuto no Diário Oficial, apenas cerca de 27% dos municípios tinham criado seus Conselhos Tutelares.
10. Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente representar inegável progresso no campo da proteção à infância, sua aplicação prática tem encontrado resistência em alguns setores da população. Essa resistência diz respeito, sobretudo, à reorganização das práticas de atendimento direto às crianças e aos adolescentes que vivem da prática de delitos e em situação de risco social. Conquanto esses menores necessitem de atenção e cuidados especiais, esses setores consideram que sua situação deve ser tratada como problema de segurança pública e defende, portanto, sua reclusão longe da sociedade e repressão por meio de enérgica ação policial.
11. O Ministério da Justiça, que exerce a presidência do Concelho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente(CONANDA), reconhece que a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente é ainda incipiente, e convocóu a II Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente(Brasília, 17 a 20 de Agosto de 1997), com objetivo de avaliar e fazer recomendações sobre a implementação e o funcionamento dos conselhos de direitos e conselhos tutelares.
12. Informa o Governo que, com a implementação do UNICEF, O Ministério da Justiça formulou e está executando o "Plano de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente", buscando operacionalizar as recomendações do Programa Nacional de Direitos Humanos. Todos os estados da Federação elaboraram, em 1996, planos similares na sua esfera de competência, convalidados pelos respectivos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente. Os estados estão recebendo apoio técnico e financeiro do Ministério da Justiça para a implementação dos referidos planos.
C. O DIREITO À VIDA À INTEGRIDADE DOS MENORES
Execuções extrajudiciais de crianças e adolescentes
13. Tanto a Convenção Americana como a Constituição da República Federativa do Brasil garantem a vida e integridade física, psíquica e moral das pessoas, e a Constituição contempla como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil o de:
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
14. A Constituição estabelece em seu artigo 227 que "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, ... à dignidade, ... além de colocá-los a salvo de toda forma de ... violência, crueldade e opressão". O Estatuto da Criança e do Adolescente reitera essas garantias. Isso significa que a legislação de menores no Brasil constitui um quadro formal adequado para proteger a vida e a integridade pessoal do menor, à luz das obrigações derivadas da Convenção Americana.
15. A realidade, lamentavelmente, oferece um panorama diverso. Com efeito, não obstante essas normas absolutamente claras, nas periferias das cidades brasileiras se encontram milhões de crianças e adolescentes moitos de elos em situação de risco pessoal e social, fazendo das ruas "seu espaço de luta pela sobrevivência" ou "seu espaço de moradia". Calcula-se que na cidade do Rio de Janeiro cerca de 30 mil crianças freqüentam diariamente as ruas e que cerca de 1.000 fazem delas sua casa. Em São Paulo, estima-se entre 5 mil a 20 mil o número de crianças que passam o dia nas ruas da Grande São Paulo, retornando a suas casas à noite.
16. Esses menores provêm geralmente de famílias que emigraram de zonas rurais empobrecidas para os centros metropolitanos, em cujas periferias passaram a morar em condições abaixo dos padrões mínimos de bem-estar e dignidade. Nesse quadro, os filhos menores muitas vezes são obrigados a trabalhar para contribuir para a subsistência familiar. Embora muitas destas crianças levam ou tentam levar uma vida normal e respeitam a lei, um percentual importante de "meninos nas ruas" e de "meninos de rua" vivem na delinqüência e em situações familiares críticas, subsistindo do produto de pequenos roubos ou da prestação de serviços (inclusive a traficantes de drogas). Suas vidas são em geral curtas, morrendo muitas vezes vítimas de grupos de extermínio, da própria polícia ou ainda, da violência em que sua situação os envolve.
17. De acordo com estatísticas do Estado do Rio de Janeiro, 424 menores de 18 anos foram vítimas de homicídio nesse Estado em 1992. No primeiro semestre de 1993, as vítimas foram 229. Por outro lado, dos 562 homicídios relatados no Estado de Pernambuco (localizado no Nordeste do Brasil) nos oito primeiros meses de 1995, 10% das vítimas eram menores de 18 anos.
Algumas investigações e exemplos de execuções sumárias
18. Em 1990, houve mais de 1.000 assassinatos de menores no Brasil resultantes de uma escalada da violência. Em 4 de agosto de 1991, o jornalista Roldão Arruda publicou no jornal O Estado de S. Paulo os resultados de uma pesquisa sobre as mortes de 30 menores ocorridas em São Paulo no mês de julho daquele ano. Com base em entrevistas com policiais, amigos e familiares das vítimas, o repórter chegou à conclusão de que 30% dessa mortes foram causadas pela polícia, 50% por assassinos profissionais que se autodenominavam "justiceiros" e os 20% restantes deveram-se a vinganças, disputas de quadrilhas ou motivos desconhecidos. Outros estudos realizados nos anos posteriores confirmam as conclusões deste relatório.
19. Devido a estas investigações jornalísticas e à escalada de violência contra a população adulta e a os menores, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, seção de São Paulo, por comunicação oficial de 28 de agosto de 1991, manifesta seu repúdio às execuções extrajudiciais e solicita às autoridades medidas enérgicas para combatê-las. Isto levou à criação da Comissão Especial de Investigação das Execuções Sumárias em São Paulo, que se estabeleceu em 29 de agosto de 1991 com a participação de diversas entidades de direitos humanos, membros da sociedade civil e várias autoridades governamentais.
20. Em seu relatório final, a Comissão Especial mencionava como causas da violência contra a criança e adolescente, entre outras, as seguintes: as dramáticas condições sócio-econômicas existentes nas periferias dos grandes centros urbanos, o reduzido papel da escola no combate a esta violência, em especial da escola pública da periferia; a falta de policiamento adequado na periferia, o que estimula o surgimento de grupos de extermínio; o foro especial militar para julgar os crimes comuns praticados por policiais militares; a falta de formação dos policiais, que muitas vezes confundem violência com energia, especialmente quando se trata de abordar a população marginalizada de crianças e adolescentes; a falta de educadores de rua em número suficiente para dar atenção às crianças e adolescentes, em especial, às crianças pequenas que perambulam pelas ruas de São Paulo, sem receber nenhuma atenção por parte do poder público; e a deficiência da Fundação para o Bem Estar do Menor (FEBEM), que não está preparada para atender aos menores infratores, tanto na Capital, como no interior e o fato de que nos estabelecimentos da FEBEM não há separação dos infratores primários dos reincidentes, criando um clima em que os primários são contagiados pelo mal exemplo dos reincidentes.
21. A Comissão selecionou dessas investigações, alguns casos ilustrativos:
a. Em 1991, na Lapa, dois policiais militares balearam na nuca e ao peito dois adolescentes que "pareciam suspeitos". Os menores, que tinham 16 anos, nunca haviam sido fichados pela polícia ou pelo Juizado de Menores.
b. Em 1991, três menores roubaram pães, cigarros, carvão deixando de pagar as cervejas que tomaram em uma padaria. Três homens armados detiveram um dos menores, levaram-no a uma quadra do local e o assassinaram com 16 tiros em represália.
c. Em 1990 em uma favela de Olinda, um jovem de 17 anos foi tirado a força de sua casa e assassinado junto com seu irmão de 19 anos. Eram conhecidos como drogados e ladrões, não violentos. A investigação revelou a existência de um grupo de extermínio, tendo um de seus integrantes confessado ter sido contratado por um comerciante e de ter sido seus cúmplices, dois policiais que balearam os jovens.
d. O filho de 15 anos de uma moradora de uma favela do Rio de Janeiro, famosa nacionalmente por ter acusado os policiais que entraram em sua casa e mataram seu irmão, foi assassinado anos depois juntamente com outros jovens, perto de sua casa, depois de terem sido detidos por policiais militares.
e. Uma madrugada de 1993, de dentro de um veículo vários homens abriram fogo contra crianças que dormiam do lado de fora da igreja da Candelária, matando instantaneamente quatro delas e ferindo outras quatro, que vieram a morrer mais tarde. Pouco depois, atiraram contra três sobreviventes, matando-os. Um lixeiro identificou-os. Três dos quatro homens eram policiais, que foram presos e seu Comandante afastado da força policial. O lixeiro foi assassinado vários meses depois. Este crime deu origem a uma investigação do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, a respeito dos esquadrões da morte.
f. Uma manhã de 1994, os corpos de três crianças ( duas meninas e um menino) de 12 a 15 anos de idade, dispostos em forma de uma cruz apareceram seminus e com múltiplas feridas de bala nas grades da igreja de Santa Cecília, no bairro Brás da Penha, do Rio de Janeiro. Estas crianças foram as décimas vítimas de execuções extrajudiciais no estilo dos esquadrões da morte em Cordovil, Brás da Penha e Vila da Penha, região do Rio de Janeiro em 1994.
22. A Comissão considera que a maioria dos casos citados como exemplos, bem como outros que teve a oportunidade de estudar mas que não foram incluídos no presente relatório, tem como característica comum denúncias de violência policial contra menores por parte da Polícia Militar e dos esquadrões da morte, que por vezes são integrados pelos próprios policiais, como se descreve no Capítulo sobre "Violência e Impunidade Policial".
23. Os menores, sejam eles delinqüentes ou não, têm direito a que o Estado lhes assegure o exercício de seus direitos humanos e, em especial, seus direitos à vida e à integridade pessoal. Nem a polícia nem particulares têm o direito de fazer justiça por suas próprias mãos. É dever do Estado brasileiro adotar medidas urgentes para assegurar o controle de suas forças policiais e a eliminação dos grupos contratados por terceiros para exterminar menores. Relacionado a isso, deve erradicar a impunidade que promove e dá alento à ação violenta dos policiais militares, o que exigirá a investigação efetiva dos fatos, um julgamento justo e a imposição das penas previstas por lei, obrigações estas derivadas do artigo 1.1 da Convenção Americana.
24. Não tomando as medidas necessárias destinadas a impedir as execuções extrajudiciais de menores bem como a terminar com a impunidade dos responsáveis, o Estado brasileiro acaba por fazer-se responsável pelas violações do direito à vida das vítimas, bem como da violação de seus direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (artigos 8 e 25 da Convenção Americana, respectivamente).
25. A Comissão reconhece o fato de que a Policia Militar dependa dos governadores dos Estados da Federação bem como, de que os Poderes Judiciário e Legislativo sejam independentes. Todavia, não pode eximir de responsabilidade o Governo Federal, embora conheça seus esforços e iniciativas no campo dos direitos humanos, posto que, conforme o artigo 28 da Convenção Americana, cabe ao Estado Federal cumprir a Convenção. Consequentemente, urge que o Governo Federal adote de imediato as medidas pertinentes, nos termos de sua Constituição e legislação, para que todo o aparato do Estado, incluindo as autoridades dos Estados da Federação, adotem as medidas cabíveis para o cumprimento da Convenção (Convenção Americana, artigo 28, inciso 3). Com esse objetivo, ele deverá apresentar projetos de lei e apoiá-los com energia, a fim de criar a legislação necessária para acabar com a impunidade dos delitos cometidos por seus agentes contra a vida dos menores.
Tortura e maus tratos a menores por parte da polícia "militar"
26. O artigo 5º da Convenção Americana estabelece que "toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral" e que "ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes". "Toda pessoa -- acrescenta esta disposição -- será tratada com o respeito devido à dignidade humana" (artigo 5º, incisos 1 e 2).
27. A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, ratificada pelo Brasil em 20 de julho de 1989, define a tortura como:
Todo ato realizado intencionalmente pelo qual se infligem a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, para fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer objetivo... (artigo 2).
28. A Constituição Federal proíbe a prática da tortura, ao estabelecer, em seu artigo 5, inciso III, que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, pune com penas de 1 a 30 anos de reclusão a tortura infligida a menores por aqueles que os têm sob sua custódia, vigilância ou autoridade.
29. Apesar das normas internacionais e internas que proíbem a tortura, a Comissão teve conhecimento de que houve casos de tortura de menores por parte de policiais militares. Essa informação provém de inquéritos parlamentares, organismos independentes, investigações jornalísticas e denúncias de cidadãos.
30 Exemplos dessa tortura apareceram publicados, entre outros, na imprensa brasileira:
a. Conforme o jornal "A Folha de São Paulo", de 1º de setembro de 1992, dois adolescentes, um de 17 anos e outro de 14 anos, foram torturados por onze policiais militares em outubro de 1992. Os policiais militares foram acusados de torturar as crianças com uma técnica conhecida como "afogamento", mergulhando a cabeça das vítimas em um tanque com água. Além disso, foram também acusados de agredi-las com socos e pontapés, com um pau e com o cano do revólver em suas costas e na cabeça.
b. Segundo a Pastoral da Arquidioceses de São Paulo, em 20 de abril de 1991 um jovem de 19 anos teve o rosto queimado com gás ácido por dois policiais das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA).
c. Conforme o "Correio Brasiliense" de 17 de outubro de 1990, em Gama, uma menor denunciou ter sido submetida a sessões de espancamentos por parte de policiais militares após ter solicitado sua ajuda para intervir em um tumulto na festa de aniversário da cidade, em um estacionamento do estádio de futebol Bezerrão. Segundo a menina, os policiais militares a espancaram, drogaram, tiraram sua roupa, causando-lhe desmaio. A menina despertou em um hospital.
d. Em Formosa, três meninos foram torturados pela Polícia Militar após terem tentado roubar uns tênis. A Polícia Militar levou os garotos à delegacia de polícia e, no pátio, em presença de outros policiais, obrigaram-elles a escolher quem iria espancá-los. Depois que foram espancados e torturados, foram enclausurados em uma cela, onde permaneceram toda a noite.
e. Segundo um padre missionário religioso, que se dedica a educar meninos de rua, cinco crianças foram espancadas e torturadas por dez policiais militares. As crianças foram obrigadas a deitar-se no chão, onde foram espancadas, enquanto os policiais, rindo, atingiam seus órgãos genitais. O padre missionário também teria sido espancado na mesma ocasião tendo sido acusado pelos agressores de colaborar com os delinqüentes.
31. Deve ressaltar a Comissão aqui, que as cifras da violência policial diminuíram sensivelmente desde 1993 em São Paulo e aumentaram desde maio de 1995 no Rio de Janeiro. (Ver capítulo sobre "Violência e Impunidade Policial")
Violência e tortura nos estabelecimentos especiais destinados a menores
32. A Comissão tomou conhecimento, ademais, de casos de violência e tortura em estabelecimentos destinados a menores, o que fere o artigo 5 da Convenção Americana e o artigo 2, entre outros, da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Também foi informada de que neles não se cumpre o disposto no Estatuto da Criança, posto que não se separam os internos de acordo com a idade e os delitos cometidos, o que fomenta a violência.
33. Conforme se informou à Comissão, a violência praticada nessas instituições é causada seja pelos próprios menores seja pelos funcionários encarregados de sua segurança e assistência. Muitas vezes, os menores são torturados ou assassinados por outros menores com a conivência dos próprios funcionários, que simplesmente deixam de adotar as medidas adequadas quando aqueles menores submetem outros a tortura. Outras vezes, os mesmos funcionários fornecem armas aos menores para que estes possam praticar atos de violência. Foi o caso de Fábio Alves da Silva, internado na Unidade de Integração Social do Instituto de Bem-estar Social do Menor (IESBEM), assassinado dentro do reformatório. Segundo funcionários da instituição, o assassinato foi cometido por outros dois internos, em represália por ter ele delatado uma tentativa de fuga ocorrida no dia anterior. Os guardas de turno não relataram o incidente.(27)Éæêo na condição de aprendiz (artigo 60). Com relação ao trabalho dos adolescentes, proíbe o trabalho noturno, perigoso, insalubre ou realizado em locais prejudiciais a sua formação e a seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social. Ademais, proíbe o trabalho realizado em horários e locais que não lhes permitam freqüentar a escola (artigo 67 do Estatuto da Criança e do Adolescente).
34. Outro exemplo é o fato denunciado em 27 de março de 1996 por um menor interno da Escola João Luiz Alves do Rio de Janeiro, destinada a menores delinqüentes do sexo masculino. O menor denunciou ao Ministério Público que fora forçado a cometer atos libidinosos com outros menores internos e que esses incidentes eram habituais na instituição. O menor contou ter sido obrigado a manter relações sexuais com outros menores sob ameaça de morte e que isso ocorreu com o consentimento dos funcionários da escola, que forneceram armas aos menores agressores para que pudessem praticar tais atos. O menor denunciou ainda que outros menores internos sofreram de igual tipo de violência e que, ademais, eram submetidos a sessões de tortura que incluíam queimaduras provocadas com espuma de colchões e espancamentos, além de ter sido fotografado por outro interno, na presença dos guardas, enquanto praticava os atos libidinosos.
35. Conforme denúncia do Jornal do Brasil, de 6 de dezembro de 1995, oito menores internas da Escola Santos Dumont do Rio de Janeiro, destinada a meninas delinqüentes, foram espancadas e submetidas a torturas na instituição. O principal acusado do espancamento de seis delas foi o diretor da unidade, Newton de Souza, técnico em serviço social. As internas foram submetidas a exame pelo Instituto Médico Legal, que confirmou o laudo. As meninas informaram que, além de terem sido espancadas com um cassetete pelo diretor da instituição, foram mantidas ao sol por várias horas seguidas, como forma de tortura. Uma das espancadas estava grávida de sete meses.
36. A Comissão considera que os direitos da criança, protegidos no Brasil tanto pelos compromissos internacionais assumidos pelo país bem como por sua legislação interna, na prática freqüentemente deixam de ser observados. De fato, os casos de tortura de crianças e adolescentes persistem e continuam sendo denunciados à comunidade brasileira e internacional. É responsabilidade internacional do Estado brasileiro, de acordo com a Convenção Americana, adotar medidas urgentes para prevenir esses atos de violência contra os menores. Diante das situações descritas anteriormente, a Comissão considera importante que a violência, as execuções extrajudiciais e as torturas contra os menores sejam tratadas como um problema prioritário dos direitos humanos no Brasil.
D. A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO DE MENORES
37. A Convenção Americana, em seu artigo 6, estabelece que ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e que ninguém deverá ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Essa proibição aplica-se com maior razão aos menores que, como dispõe o artigo 19, merecem proteção especial por sua própria condição.
38. A Constituição da República Federativa do Brasil proíbe o trabalho de crianças menores de 14 anos, salvo quando este se realiza em condições de aprendizado. Ao mesmo tempo, proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre para menores de 18 anos.
39. O Estatuto da Criança e do Adolescente reitera a proibição constitucional relacionada com o trabalho de menores de 14 anos, salvo na condição de aprendiz (artigo 60). Com relação ao trabalho dos adolescentes, proíbe o trabalho noturno, perigoso, insalubre ou realizado em locais prejudiciais a sua formação e a seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social. Ademais, proíbe o trabalho realizado em horários e locais que não lhes permitam freqüentar a escola (artigo 67 do Estatuto da Criança e do Adolescente).
40. Apesar de a legislação brasileira estabelecer essa proibições para o trabalho de adolescentes, a Comissão foi informada de que essa prática é muito comum, especialmente na indústria, na qual os adolescentes trabalham com produtos tóxicos, em condições insalubres ou em locais perigosos. As jornadas de trabalho são longas e muitas vezes em horário noturno, o que faz com que os menores trabalhadores percam aulas ou se vejam na necessidade de ter que abandonar a escola.
41. Em que pese as restrições legais que só o trabalho de crianças com autorização especial de um juiz, dados oficiais indicam que mais de três milhões de crianças de 10 a 14 anos( ou seja 4.6% da força de trabalho total) estão empregadas, muitas trabalhando junto com seus pais em tarefas agrícolas ou pequenas oficinas.
Acidentes, condições insalubres e esquálidas são comuns nas industrias açucareiras (trabalho da safra) em Pernambuco, frutíferas em São Paulo, em produção de carvão em Minas Geirais, Mato Grosso do Sul e Pará; em plantações de sisal na Bahia e Paraíba, em plantações de algodão no Paraná; em reflorestamento em Minas Geirais, Bahia e Espírito Santo, aonde são usados em muitos casos para aplicar produtos químicos tóxicos.
42. Esse tipo de trabalho normalmente é realizado em fazendas distantes dos grandes centros e em algumas usinas ou empresas afastadas, nas quais as crianças e os adolescentes executam trabalhos extremamente pesados, como cortar cana-de-açúcar ou bambú. As jornadas são comumentes de 10 a 12 horas diárias e o salário é baixo. E ainda são obrigados a pagar caro pelas mercadorias de que precisam para seu sustento. Isso os leva a contrair dívidas com seus patrões, que aumentam a cada dia e que obviamente não podem ser quitadas com sua baixa renda. Os fazendeiros, por seu lado, não lhes permitem abandonar o local de trabalho a menos que saldem previamente suas dívidas, e contratam pistoleiros para impedir que isso aconteça. Os pistoleiros usam da força para cumprir o que lhes é ordenado, não sendo raros os assassinatos. Tudo isso faz com que a situação dos menores se transforme em uma relação de servidão, pois, devido ao círculo vicioso de baixos salários e dívidas crescentes, eles na prática ficam hipotecados à fazenda pela vida toda. Cabe observar, além disso, que, de acordo com informações levadas à Comissão, esses menores manejam instrumentos e máquinas perigosas, sem qualquer tipo de proteção, sendo comuns acidentes graves de trabalho que em geral não são denunciados às autoridades por medo de represália da parte dos patrões.
43. A Comissão considera que o Estado deve impedir e punir rigorosamente essas condições de trabalho ilegal de crianças e adolescentes que, não o fazendo, estará violando compromissos oriundos da Convenção Americana, bem como da própria Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
44. Organizações privadas e o Governo estão realizando esforços e colaborando com medidas concretas para erradicar o trabalho infantil no Brasil. O presidente Cardoso, em setembro de 1996, firmou com oito governadores e diretores de várias ONGs, vários protocolos para tomar medidas com a finalidade de terminar com "a prática inaceitável" de trabalho infantil no Brasil.
45. Alguns programas experimentais estão sendo implementados para reduzir a preponderância da exploração do trabalho infantil em alguns Estados. Em 24 de janeiro de 1997, foi implementada a "Bolsa Cidadã Infantil" e a "Bolsa Criança Cidadã", que entrega uma soma mensal a famílias carentes com filhos entre 7 a 14 anos, soma esta que complementa a renda familiar para facilitar que as crianças freqüentem a escola. A entrega esta condicionada ao desempenho escolar das crianças e ao envolvimento da família em projetos de geração de empregos e rendimentos. O projeto foi iniciado em Pernambuco onde pretende beneficiar a 13.200 menores e estender-se a Bahia para auxiliar as famílias de outros 15.000 menores. No Distrito Federal esta bolsa atinge a 27.000 famílias e permite capitalizar as entregas no beneficio da continuidade dos estudos do beneficiario.
E. EXPLORAÇÃO SEXUAL DE CRIANÇAS
46. Segundo foi informada à Comissão, entre as diversas formas de exploração dos menores no Brasil se encontra a prostituição infantil. Esse fenômeno se atribui a diversas causas, entre as quais se destacam as sócio-econômicas, expressas na miséria familiar, no processo migratório das famílias, movidas pela esperança de escapar da pobreza, de regiões mais pobres do país para as grandes cidades; nas dificuldades para estudar e na situação familiar, que se caracteriza por lares desintegrados e circunstâncias familiares pouco definidas, nas quais muitas vezes as menores são vítimas de abusos, inclusive de violência sexual. Uma vez nas cidades, os adultos passam a engrossar as filas dos desempregados e, em muitos casos, as filhas menores de idade, diante da necessidade de se manter, acabam se prostituindo. Em troca de seus serviços, recebem alimentação diária mas, em compensação, sofrem abusos por parte de seus "protetores", que muitas vezes as mantêm em completo cativeiro.
47. Há denúncias de centenas de casos de meninas mantidas em estado de servidão em localidades remotas, nas regiões dos garimpas de ouro da Amazônia. O assunto do tráfico de meninas para os garimpos ganhou divulgação especial após a uma série de reportagens da Folha de São Paulo, nas quais se fazia referência às rotas desse tráfico e à sua vinculação com a polícia. Há informações de que, devido à grande repercussão daquelas reportagens, a Polícia Federal realizou uma batida na cidade de Cuiú-Cuiú, que culminou com a liberação de 70 prostitutas (22 das quais eram menores de idade) e com a prisão de 10 donos de discotecas e agentes da prostituição.
48. Exemplo dramático de uma situação generalizada nesse submundo da prostituição infantil é o caso de uma menina de 13 anos que, ao ser entrevistada, manifestou o desejo de deixar sua condição de prostituta e a impossibilidade de fazê-lo, porque tinha uma dívida pendente de US$27 com o bordel onde estava retida. Essa dívida era o saldo de outra de US$37 contraída por ter quebrado um relógio de pé pertencente ao dono do estabelecimento. Para pagar o prejuízo, ela teria de entregar-lhe o pagamento integral de 20 serviços sexuais, o que não era possível, pois precisava de dinheiro para pagar suas despesas, incluindo aquelas com roupa, casa e comida.
49. Segundo informações, foi descoberto que em algumas cidades do interior do Rio Grande do Sul, eram oferecidas propostas aos pais de algumas menores para convencê-los de que suas filhas iriam ter a oportunidade de receber educação se estes as deixassem ir para a cidade. Contrariamente ao que era prometido, ao chegarem à cidade grande as menores eram obrigadas a atuar como prostitutas, muitas vezes com a conivência da polícia civil.
50. Na Bahia, uma investigação parlamentar estadual descobriu, além da amplidão da prostituição infantil, a cumplicidade de motoristas de táxis e da polícia.
51. Há relatos ainda de que, nas regiões do Pará, de Rondônia, da Amazonas, do Acre e do Amapá, onde é intensa a atividade gorimpeira, as famílias entregam suas filhas menores de idade aos garimpeiros em troca de artigos de primeira necessidade. Outras vezes, as meninas são convencidas a trabalhar em restaurantes ou bares mediante a oferta de bons salários, mas ao chegarem lá descobrem que o trabalho consiste em oferecer serviços de prostituição. Desde o início, os patrões supostamente as informam de que lhes devem os custos de passagem, o que marca o início de um círculo vicioso em que as dívidas se acumulam e as menores só conseguem pagá-las dedicando-se à prostituição. Observe-se que nesse meio os donos de garimpo têm muito poder, que as autoridades adotam uma atitude passiva e que a sociedade, por seu lado, aceita esses fatos com indiferença.
52. Como conseqüência das denúncias em relação à prostituição forçada de meninas, as autoridades prepararam um documento oficial em que se admite que esse tipo de prostituição existe. Por sua vez, a Polícia Federal preparou um relatório em que se estudam em profundidade as denúncias sobre assassinatos e torturas de meninas em situação de servidão no Norte do país. Em novembro de 1992, a polícia libertou 92 adolescentes entre 12 e 18 anos e 30 menores de 12 anos em bordéis que funcionam em campos de mineração no estado de Rondônia. Por outro lado, o Congresso Nacional estabeleceu uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as denúncias de prostituição forçada de menores.
53. O relatório dessa Comissão Parlamentar de Inquérito verificou a participação da polícia na prostituição de menores e recomendou, entre outras coisas, o estabelecimento de mais programas sociais, a emenda do Código Penal e a aplicação efetiva do Estatuto da Criança e do Adolescente para proteger os menores submetidos a esse tipo de violência. Embora não tenha encontrado provas para apoiar a afirmação de que há 500 mil menores dedicadas à prostituição no Brasil, a Comissão de Inquérito constatou a existência desse fenômeno nos 10 Estados que visitou e recebeu informações confiáveis de que só na cidade do Rio de Janeiro pelo menos 500 meninas, entre 8 e 15 anos de idade, estavam envolvidas na prostituição.
54. Em fevereiro de 1997, o Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso lançou uma campanha vigorosa contra o "turismo sexual" no Brasil, sob o lema de "Cuidado, o Brasil está de olho", contra turistas que procuram se aproveitar da exploração sexual infantil. A campanha não é meramente publicitária-preventiva, pois inclui a repressão das empresas turísticas que as promovem e organizam, dos estabelecimentos, restaurantes e motoristas de táxis comprometidos, além da punição dos turistas (estrangeiros ou nacionais) infratores com todo o rigor da lei. No Brasil, a pedofilia tem penas que vão de 1 a 4 anos de prisão.
55. Além dessas medidas, o Governo com apoio de organizações civis passou a funcionar o "disque denuncia" o qual recebe denuncias de todo o Brasil. Junto a Associação Nacional dos Centros de Defesa(ANCED), O Ministério da Justiça facilita meios e treinamento para atender as vítimas e monitorar as denuncias. Também apoia os estados no estabelecimento de "Redes de combate à exploração sexual infantil".
56. A Comissão considera que esta campanha contra uma das formas de exploração de menores no Brasil é um valioso esforço do Estado brasileiro no sentido de cumprir seu dever de proteger a vida e a integridade dos menores, conforme os artigos 4 e 5 da Convenção Americana, lembrando que ele tem igualmente o dever de assegurar aos mesmos menores o direito de não serem submetidos a trabalho forçado ou em regime de servidão (artigo 6 da Convenção). Considera ainda que é de sua competência castigar severamente este abuso da violência e exploração sexual da criança e do adolescente, conforme estabelece também o artigo 227, seção 4, da Constituição da República Federativa do Brasil, e zelar para que se cumpra a proibição do trabalho para menores de 14 anos e do trabalho noturno, perigoso ou insalubre para menores de 18 anos.
F. DENÚNCIAS SOBRE DESAPARECIMENTOS DE MENORES
57. Em sua visita in loco realizada em dezembro de 1995, a Comissão recebeu denúncias das "Mães de Acari", habitantes da favela do mesmo nome no Rio de Janeiro. As mães relataram que 11 adolescentes desapareceram em agosto de 1990 e que seus corpos nunca foram encontrados. Com base em uma investigação, cinco policiais foram indiciados, mas não chegaram a ser denunciados pelo Ministério Público por falta de provas. Uma das mães foi assassinada em 1993, depois de ter promovido uma reunião com as outras mães para discutir o assunto. A Comissão também foi informada sobre o desaparecimento de meninas, que presumivelmente teriam sido seqüestradas e vendidas para o mercado da prostituição forçada.
58. A Comissão recebeu informações sobre o desaparecimento de crianças que ocorrem tanto nas grandes cidades como nas zonas mais distantes das capitais, como resultado de execuções extrajudiciais, seqüestros para fins de prostituição e outros objetivos similares. As crianças simplesmente desaparecem sem deixar pistas, e não se encontram seus corpos. A Comissão não está em condições de afirmar a extensão desta prática, mas dada a freqüência das informações e sua natureza, insta as autoridades a aprofundar as investigações a esse respeito e a tomar as medidas adequadas. Informações do Governo indicam que a maioria dos desaparecimentos ocorrem por problemas familiares (seqüestro pelos próprios pais, fuga das criança, etc.). Campanhas promovidas pelo governo juntamente com associações civis (incluindo canais comerciais de televisão) parecem ser relativamente exitosas para a recuperação ou localização das crianças.
G. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
59. Os testemunhos recolhidos durante seus visita in loco ao Brasil, além das informações recebidas antes, durante e depois da mesma, permitem à Comissão concluir que a situação do menor brasileiro se reveste de extrema gravidade. Os inegáveis progressos legislativos conseguidos nos últimos anos e a criação de novas instituições destinadas à proteção da criança e do adolescente não parecem refletir-se de forma efetiva na situação real dos menores, muitos dos quais continuam sendo objeto de diferentes formas de violência, em especial de execuções sumárias.
60. A Comissão reconhece o inegável compromisso do Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso em admitir com transparência e firmeza os problemas existentes no campo dos direitos da criança. É testemunha também da energia com que condena e enfrenta a violação desses direitos. Todavia, considera necessário assinalar que o Estado brasileiro ainda não conseguiu assegurar, de forma efetiva, os direitos humanos das crianças.
61. Consequentemente, a Comissão se permite recomendar ao Estado brasileiro que:
a. Cumpra, divulgue e coloque em prática sua legislação destinada a proteger as crianças e os adolescentes, em especial o Estatuto da Criança e do Adolescente, e adote medidas efetivas de controle para assegurar que os Estados, os Municípios e as demais autoridades responsáveis por sua aplicação a cumpram e respeitem. Fortaleça o CONANDA, único órgão de caráter nacional que formula políticas nacionais de promoção, atendimento e defesa dos direitos da criança e do adolescente;
b. Proteja a vida e a integridade dos "meninos de rua" e dos "meninos na rua" e adote medidas efetivas para promover sua educação, reabilitação e integração à sociedade;
c. Adote medidas protetoras e de controle para erradicar o trabalho escravo de crianças menores de 14 anos e o dos adolescentes quando se tratar de trabalho noturno, perigoso, insalubre ou realizado em locais prejudiciais à sua formação e a seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, e quando realizado em horários e locais que não lhes permitam a freqüência assídua à escola. Investigue efetivamente, julgue e puna os responsáveis pelo trabalho forçado dos menores;
d. Previna e erradique os atos de tortura e maus tratos a menores nas prisões e nos estabelecimentos de menores. Investigue, castigue e julgue os responsáveis por esses delitos e fortaleça os organismos governamentais e comunitários de supervisão da ação policial em relação a menores.
e. Erradique as situações de servidão e prostituição das crianças e adolescentes. Investigue efetivamente, julgue e castigue os exploradores e usuários; e aplique com toda severidade os objetivos e ações da campanha contra o "turismo sexual" infantil;
f. Promova e exija dos Estados e Municípios que cumpram com sua obrigação legal de criar Conselhos Tutelares, aproveitando a experiência positiva dos já existentes. Promova a participação da comunidade, em especial das igrejas, dos sindicatos, dos grupos de serviço e empresariado, para atuar em projetos conjuntos no campo da prevenção da delinqüência e do controle externo dos estabelecimentos destinados ao menor delinqüente ou desajustado, com vistas à construção de uma sociedade mais justa.
g. Crie programas de orientação familiar e programas governamentais, com o objetivo de capacitar as famílias para o exercício responsável da paternidade e maternidade e para a resolução de conflitos familiares de forma não violenta e promova a adoção de crianças abandonadas com o objetivo de tirá-las das ruas, onde são vítimas e agentes da violência.
h. Aloque recursos às escolas a fim de que, juntamente com as instituições especiais para menores, se organizem programas de prevenção da delinqüência e do absenteísmo das escolas públicas, sobretudo da periferia. Construa e organize estabelecimentos adequados para abrigar e reabilitar os menores infratores, separando os primários dos reincidentes. Treine pessoal técnico para cuidar desses menores; adote medidas orientadas para sua educação, reabilitação e reintegração à sociedade. Puna severamente as autoridades e funcionários desses estabelecimentos que cometam abusos e atos de violência contra eles.
NOTAS AO CAPITULO V
A necessidade de dispensar atenção especial à situação dos menores foi reconhecida originalmente na Convenção de Genebra sobre os Direitos da Criança de 1924 e depois na Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959, nos instrumentos gerais de direitos humanos e nas agências especializadas. Em 1989, aprovou-se nas Nações Unidas a Convenção sobre os Direitos da Criança. Essa Convenção define "criança" como todo ser humano menor de 18 anos, salvo nos casos em que, de acordo com a lei aplicável, a maioridade seja alcançada antes. Neste capítulo, em muitos casos se distingue entre as crianças (que em geral se referem aos pré-púberes, aproximadamente menores de 12 anos) e os adolescentes.
De acordo com a mesma disposição, essas medidas devem incluir procedimentos efetivos para o estabelecimento de programas sociais destinados a dar à criança e aos responsáveis por ela o apoio necessário para a identificação, denúncia, investigação, tratamento e acompanhamento das formas de violência antes mencionadas, e para a intervenção judicial.
Ver O Trabalho e a Rua, nota 13, págs. 10-14.
Essa disposição introduziu na Constituição os elementos essenciais contidos na Convenção sobre os Direitos da Criança, cujo texto já era conhecido no Brasil antes de sua ratificação em 1990. Ver O Trabalho e a Rua, nota 13, págs. 10-14.
Artigos 7 a 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90).
Artigos 53 a 69 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90).
Artigo 15 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90).
Suas disposições se referem ao desenvolvimento físico (saúde e alimentação, artigos 7 a 14), intelectual (direito à educação, à formação profissional e à proteção no trabalho, artigos 53 a 69), emocional, moral, espiritual e social (direito à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e à convivência comunitária).
O Estatuto da Criança e do Adolescente foi publicado originalmente no Diário Oficial do Brasil de 16 de julho de 1990, sofrendo depois uma emenda publicada no Diário Oficial de 16 de outubro de 1991.
Pesquisa do "Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência", setembro de 1994.
A conferência é precedida de reuniões preparatórias nos níveis municipal e estadual. O Departamento da Criança e do Adolescente (DCA) do Ministério da Justiça está dando apoio técnico-financeiro à instalação e funcionamento de conselhos em diversos municípios. Para fortalecer a atuação dos conselhos de direitos da criança e do adolescente foi realizado, por meio de convênio com a Associação Brasileira de Tecnologia e a Universidade de Brasília, projeto de capacitação de conselheiros à distancia. O DCA fornece ainda apoio técnico e financeiro aos estados para capacitação de recursos humanos.
Estes meninos são muitas vezes fruto de gestações complicadas ou indesejadas, e passam pela infância e adolescência rejeitados, violentados, incompreendidos, sem freqüentar a escola e sem ter trabalho. São menores que muitas vezes acabam assassinados em circunstâncias dramáticas nos centros urbanos da sociedade brasileira. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, SEÇÃO DE SÃO PAULO, COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS; EXECUÇÕES SUMARIAS DE MENORES EM SÃO PAULO (1993) P.153.
AYRTON FAUSTO, CERVINI RUBEN, O Trabalho e a Rua: Crianças e adolescentes no Brasil urbano dos anos 80. Textos selecionados de estudos e pesquisas apoiados pela UNICEF e FLACSO, pág. 9. São Paulo: Editorial Cortez, 1991.
COUNTRY REPORTS ON HUMAN RIGHTS PRACTICES FOR 1994. Report Submitted to the Committee on Foreign Affairs, House of Representatives, and the Committee on Foreign Relations, U.S. Senate, by the Department of State, pág. 349 (1995).
15 Ver O Trabalho e a Rua, supra nota 13, pág. 10.
16 Uma pesquisa realizada com crianças e adolescentes na cidade de Fortaleza revela que cerca de 60% dos entrevistados precisavam trabalhar para ajudar as famílias. Direitos Humanos no Brasil (1992-1993), COMISSÃO JUSTIÇA E PAZ, ARQUIDIOCESE DE BRASÍLIA, Edições Loyola, São Paulo pág. 64 (1994). Ver também O Trabalho e a Rua, supra nota 13, pág. 75.
17 Contrariamente ao que se pensava antes, a maior parte dos menores que vivem nas ruas têm famílias e vivem com os pais; uma parte considerável vive com a mãe e um pequeno grupo mora nas ruas e perdeu o contato com a família ou o mantém de forma ocasional. Por isso, a partir de 1980 se começou a distinguir entre os meninos que vivem sua casa mais pasam a moior parte do día na rua e que são denominados de "meninos de rua" e os que vivem na rua e são denominados de "meninos nas ruas". De qualquer forma, fortaleceu-se a convicção de que se trata de crianças e adolescentes pobres, que têm a responsabilidade de participar do orçamento familiar. Ver O Trabalho e a Rua, supra nota 13, págs. 76-77.
18 Ver, por exemplo, MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, pág. 41 (1994).
19 A Comissão Parlamentar de Inquérito do Estado de Rio de Janeiro informou que 90% dos menores assassinados não tinham antecedentes criminais. Brazil Street Children Murders (Internet).
20 COUNTRY REPORTS ON HUMAN RIGHTS PRACTICES FOR 1995. Report Submitted to the Committee on Foreign Affairs, House of Representatives, and the Committee on Foreign Relations, U.S Senate, by the Department of State, pág. 349 (1995). Um estudo sobre as mortes de menores ocorridas entre 1991 e 1993 faz referência aos motivos que levam esses menores à vida de violência nas ruas. O estudo, de 1993, foi feito com base em investigações policiais referentes a 1991 e relatórios da Secretaria da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro referentes a 1992-93. O estudo conclui, entre outras coisas, o seguinte: que a maioria dos mortos não eram "meninos de rua" (ou seja, que moravam efetivamente nas ruas), mas adolescentes do sexo masculino, de aproximadamente 17 anos, mortos nas proximidades de suas casas; que todos eram pobres e sem identificação étnica particular (embora o estudo reconheça que os mais vulneráveis são os negros e os mestiços, que historicamente são os mais afetados pela distribuição desigual da riqueza e pela discriminação socio-econômica); que a violência parece estar ligada principalmente à criminalidade geral e ao tráfico de drogas, atividade extraordinariamente hábil em recrutar e envolver menores; que esse mundo lhes oferece, entre outras coisas, trabalho, dinheiro, poder, valores, padrões de conduta, proteção, "status" social e o sentimento de pertencer a algo; que encontram insegurança, temor, desconfiança e até terror, e que não é necessário estar vinculado à droga ou a práticas ilegais para perder a vida nesse círculo de violência, pois para isso basta ser chegado, parente, vizinho ou amigo dos que estão de fato envolvidos nesse mundo. Ver C. MILITO, H. R. SANTOS SILVA, E. SOAREZ, Murders of Minors in Rio de Janeiro State (from 1991 through July 1993) págs. 17, 18 (1993), Report Research Conducted as part of Project "If This Street Was Mine" (FASE, IBASE, IDAC, ISER).
21 A reportagem concluiu, entre outras coisas, que: não existia uma campanha de extermínio de adolescentes criminosos na cidade; a maioria dos mortos integravam famílias numerosas, de até 14 filhos; as mortes ocorreram na periferia da cidade de São Paulo, a distâncias que variam de 30 a 50 quilômetros do centro; 86% eram negros ou mulatos; dos 30, 25 oscilavam entre os 16 e 17 anos; a maioria das famílias dos menores mortos vivia em pequenas construções de alvenaria, de teto baixo, sempre em estado de construção, com tijolos e ferros à vista; as casas estavam levantadas em áreas sem valor imobiliário; os menores pertenciam a famílias migrantes, que tinhamn chegado há cerca de 15 ou 20 anos do Nordeste, do interior ou de estados vizinhos, como Minas Gerais e Paraná. Para poder realizar as entrevistas, o jornalista percorreu 2.300 quilômetros na periferia da cidade. "As perssoas têm muito medo". "...a morte está presente em seu dia-a-dia", escreveu o repórter. Ver Relatório Final da Comissão Especial de Investigação para o exame das execuções sumárias em São Paulo, 16 de setembro de 1992, ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, SEÇÃO DE SÃO PAULO, COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS, EXECUÇÕES SUMÁRIAS DE MENORES EM SÃO PAULO, págs. 135-139 (1993). No que se refere á reportagem do jornalista Roldão Arruda, publidado em O Estado de São Paulo, ver pág. 38.
22 Diário Popular, 11 de novembro de 1993.
23 Artigo 227, parágrafo 3, inciso I da CF.
24 Artigo 7, inciso XXXIII da CF.
25 Artigo 7, parágrafo XXXIII da CF.
26 Ver MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, p. 50 (1994).
27 Ver, sobre esse assunto, Diário Popular, 8 de julho de 1993.
28 JOHN DREXEL, O.M.I. e LEILA RENTROLA IANNONE, Criança e Miséria, Vida ou Morte?, pág. 74 (1989).
29 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, p. 51 (1994).
30 GILBERTO DIMENSTEIN, Democracia em Pedaços: Direitos Humanos no Brasil, São Paulo. Ed. Companhia das Letras, pág. 161 (1996). Ver também MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, p. 51 (1994).
31 GILBERTO DIMENSTEIN, Democracia em Pedaços: Direitos Humanos no Brasil, São Paulo. Ed. Companhia das Letras, pág. 161 (1996).
32 Ver Relatório Azul - Garantias e Violações dos Direitos Humanos No. RS - 1994, Comissão de Cidadania e Direitos Humanos - AL\RS), págs. 25, 26, 27-28.
33 Levantamento da Situação de Direitos Humanos com Enfoque na Situação de Direitos Humanos da Criança e do Adolescente no Rio de Janeiro para a Comissão dos Direitos Humanos - Centro de Defesa, Garantia e Promoção de Direitos Humanos, 1995, pág. 134.
34 Ver Comissão Parlamentaria de Inquérito, Congresso Nacional, Relatorio sobre Prostituição Infantil, 1993, pág. 82, 4º par.
35 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, Relatório Inicial Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Ministério das Relações Exteriores, Fundação Alexandre de Gusmão e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, p. 51 (1994).
36 COUNTRY REPORTS ON HUMAN RIGHTS PRACTICES FOR 1995. Report Submitted to the Committee on Foreign Affairs, House of Representatives, and the Committee on Foreign Relations, U.S. Senate, by the Department of State, pág. 349 (1995).
CAPÍTULO VI
OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL
A. ANTECEDENTES JURÍDICOS E HISTÓRICOS
Antecedentes gerais
1. Aproximadamente 330.000 cidadãos brasileiros indígenas conformam os 206 povos originários, ancestrais do território da União. Suas organizações, características de vida e gozo de direitos humanos são variados: há os que mantêm uma cultura selvática auto-suficiente, com mínimo contato com o exterior, ao passo que outros, através da agricultura e de outras formas de produção, estabeleceram intensas relações com o mundo não-indígena.
2. Os povos indígenas reivindicam direitos legais sobre 11% do território nacional e têm obtido importantes reconhecimentos dos mesmos. Em sua grande maioria, as terras indígenas (aproximadamente 95%) situam-se na Amazônia, ocupando cerca de 18% da região, e nelas vivem pouco menos de 50% dos indígenas brasileiros. Em contraste, outros 50% dos indígenas são habitantes de áreas do sul do Brasil, cuja superfície é inferior a 2% do total dos territórios indígenas.
3. Nos últimos 30 anos, os povos indígenas brasileiros intensificaram sua participação na vida política, aumentando, em conseqüência, o reconhecimento geral dos seus direitos. Um fator essencial para tal foi, paradoxalmente, a expansão da infra-estrutura econômica moderna para o interior do Brasil, iniciada a partir do fim da Segunda Guerra Mundial e acelerada nas décadas de 60 e 70, sob os regimes militares. Em resposta a essa expansão, que avançava para o interior das suas áreas ancestrais, iniciaram-se grandes mobilizações de indígenas e de organizações que defendiam e promoviam seus direitos humanos.
4. A partir de 1987, o Plano Calha Norte, baseado no princípio de ocupação territorial segundo princípios militares de segurança, pretendeu reduzir os grandes territórios indígenas contíguos, excluí-los de uma faixa de segurança de 62 km a partir das fronteiras e enfatizar a classificação dos indígenas em "silvícolas" e "aculturados", com diferentes direitos segundo cada categoria. Em relação aos "aculturados", as obrigações do Estado desapareciam ou, ao menos, eram sensivelmente reduzidas.
Direitos constitucionais
5. Em face dessa situação, numerosos setores brasileiros e internacionais apoiaram as reivindicações indígenas, tal como manifestado na Assembléia Constituinte de 1988, na qual a discussão passou dos foros estaduais, em que prevaleciam interesses locais geralmente contrários às reivindicações indígenas, para o nível nacional, em que a defesa dos direitos indígenas foi apoiada por outros grandes setores sociais. A Constituição de 1988, no seu Capítulo VIII, consagra uma das posições normativas mais avançadas da legislação comparada. Suas disposições diretamente relacionadas aos direitos dos indígenas superam a doutrina de "assimilação natural" previamente aceita. Por outro lado, são reconhecidos como permanentes os direitos originais inerentes aos povos indígenas por sua condição de primeiros e contínuos ocupantes históricos de suas terras.
6. No seu Capítulo VIII, "DOS ÍNDIOS", dispõe a Constituição de 1988:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nestas existentes.
§3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§5º É vedada a remoção de grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção do direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3º e 4º Art .
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
Título IX. Das disposições constitucionais gerais.
Art.67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição. [5 de outubro de 1988].
7. Ao considerar os direitos indígenas como direitos "originais", a Assembléia Constituinte aceita o princípio de que os indígenas eram os proprietários originais das terras e, portanto, que seus direitos antecedem todo ato administrativo do governo. Além disso, a Constituição estabeleceu que o Ministério Público Federal deve defender os direitos dos indígenas perante os tribunais, e que os grupos indígenas podem, por si mesmos, promover ações judiciais.
8. Em princípio, compete à justiça federal dirimir as controvérsias referentes aos direitos dos indígenas ou de suas comunidades. A pesar que a constituição estabelece que cabe a Justiça Federal dirimir disputas sobre interesses indígenas, existem diversas interpretações com relação a questões penais. Assim é que alguns juizes estaduais se entendem competentes em casos em que a vítima ou réu sejam indígenas. Com muita freqüência, confundem-se disputas territoriais com ilícitos penais e as questões de competência postergam indefinidamente as decisões. Uma unidade especial do Ministério Público Federal, a Coordenadoria da Defesa dos Direitos e Interesses das Populações Indígenas, é responsável pela defesa de suas comunidades. Quanto à tarefa legislativa sobre direitos indígenas, esta é da competência do Congresso Nacional, inclusive no tocante a decisões sensitivas como a de autorizar a exploração de recursos naturais de áreas indígenas. Não obstante, em muitos casos, decisões de Assembléias Legislativas estaduais referentes, por exemplo, à criação de novos Municípios que se inserem em áreas indígenas, são conflitantes com essa competência e invadem a competência privativa federal estabelecida na Constituição.
Regulamentação dos direitos dos índios
9. Muitos desses direitos constitucionais dependem de regulamentação. Atualmente, permanece em vigor o Estatuto do Índio (Lei 6.001, de 1973) que segue os preceitos integracionistas da antiga Convenção 107 da OIT, e o Código Civil Brasileiro de 1916, além de outros instrumentos jurídicos específicos como, por exemplo, a lei e o decreto referentes à demarcação de terras indígenas.
10. O Estatuto do Índio estabelece, em seu Artigo 3º, que é "índio ou silvícola todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional".
11. Os indígenas estão classificados pelo Código Civil Brasileiro, de acordo com o seu grau de aculturação, em silvícolas ou adaptados. Os "silvícolas" estão incluídos na categoria dos "relativamente incapazes, juntamente com o grupo de maiores de 16 e menores de 21 anos (CCB, Art. 6º). De acordo com a doutrina, essa incapacidade relativa deveria ser uma proteção e não uma restrição. Essa incapacidade legal não impede que eles possuam os direitos comuns, de propriedade, reunião, trânsito, etc.; e eles estão protegidos por presunção da lei. Tal incapacidade se extingue na medida em que os índios "silvícolas" se adaptam à "civilização do País".
12. O Estatuto do Índio, que regula essa incapacidade (Lei 60.001, de 1973), considera que os índios estão 'integrados' quando são incorporados à comunidade nacional e reconhecidos como em pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem os usos, costumes e tradições característicos da sua cultura. Nesse caso, cessa a sua capacidade relativa como "silvícolas".
13. Além disso, o Estatuto, em seu Art. 4º, subdivide os indígenas em "isolados", "em vias de integração" e "integrados". Todos os indígenas, tanto individualmente como comunidades ou como organizações, podem ser partes em juízos em defesa dos seus direitos e interesses, cabendo ao Ministério Público intervir, em todos os casos, em caráter tutelar. A FUNAI exerce, por lei, a representação total dos "silvícolas".
14. O Estatuto do Índio inclui disposições que visam a fazer respeitar os valores, usos e costumes indígenas. O Estatuto indica, por exemplo, que a assistência aos menores para fins educacionais deve ser prestada, quando possível, sem separá-los da sua convivência familiar ou tribal. Estabelece, igualmente, que é crime contra a cultura indígena utilizar o índio ou a comunidade indígena como objeto de propaganda turística ou de exibição com finalidade de lucro (EI:art. 58,II).
15. No processo de integração do índio, corresponde à União, aos Estados e aos Municípios, bem como a outros órgãos, respeitar a comunidade nacional, a coesão das comunidades indígenas, seus valores culturais, tradições, usos e costumes (EI:Art.2,VI). O Estatuto dispõe, igualmente, que se deve garantir aos índios a permanência voluntária no seu habitat próprio, provendo-os de recursos para seu desenvolvimento e progresso (EI:Art.2, V). Também é crime contra a cultura indígena ridicularizar uma cerimônia, rito, uso costume ou cultura tradicional indígena, vilipendiá-la e perturbar, de qualquer forma, a sua prática (EI:Art.58,I).
16. O Estatuto do Índio de 1973, contudo, tal como se encontra, contraria o estabelecido na Constituição de 1988, em muitos dos seus dispositivos. O principal contraste está em que hoje não existe mais a perspectiva integracionista que é o espírito do Estatuto de 1973.Foi uma grande conquista dos índios e organizações que os apoiam, que a Constituição de 1988 abolisse a idéia de que os índios devem ser assimilados culturalmente. Atualmente está em trâmite no Congresso Nacional, um projeto de lei, o Estatuto das Sociedades Indígenas, que regulamenta as relações do índio com a sociedade nacional, de acordo com o estabelecido na Constituição.
B. A INTERVENÇÃO FEDERAL EM RELAÇÃO AO ÍNDIO. A FUNAI
17. O Estado brasileiro realiza numerosas ações de defesa e promoção dos indígenas e de seus direitos. O principal órgão nesse campo é a Fundação Nacional para o Índio (FUNAI), que detém jurisdição tutelar sobre as áreas indígenas, mantém postos de saúde e educação nas áreas indígenas e intervém nos processos judiciais em que esteja envolvido um índio ou uma comunidade indígena.
18. A FUNAI também é o organismo técnico central no processo de demarcação de terras indígenas e de mobilização de outros órgãos para o cumprimento das responsabilidades do Governo brasileiro em relação aos povos indígenas.
19. Em 1996, a Administração federal do Presidente Fernando Henrique Cardoso adotou uma importante iniciativa educacional visando acabar com os preconceitos e o racismo e a fazer com que a história e a cultura dos povos indígenas fossem corretamente tratadas e apresentadas. Com o apoio do Ministério da Educação, através da Comissão de Educação Escolar Indígena, iniciou-se um programa de promoção e divulgação de material didático e pedagógico de nível elementar, secundário e superior, para todos os estudantes brasileiros desses respectivos níveis, destinado a desenvolver uma apreciação adequada e a divulgar conhecimentos a respeito dos povos indígenas brasileiros.
C. OS DIREITOS SÓCIO-ECONÔMICOS E CULTURAIS DOS POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS
20. Os indígenas brasileiros estão passando por um momento crucial em suas relações com o mundo moderno e com o sistema econômico global. Além dos problemas legais, políticos e de terras com que se defrontam, sua situação de saúde e nutrição é deficitária.
21. Em novembro de 1995, O Instituto de Estudos Sócio-Econômicos, o Museu Nacional da Bahia e o Banco do Nordeste produziram o "Mapa da Fome entre os Povos Indígenas", cuja publicação foi apresentada em audiência pública perante autoridades da Câmara dos Deputados. O estudo baseou-se num levantamento de 297 áreas indígenas, que abrangiam uma população de 311.000 índios. O estudo inclui, entre outras áreas, os Estados de Rondônia e do Maranhão, o sul do Pará, a área de influência da Rodovia Transamazônica, a Hidrelétrica de Tucuruí e o Projeto Grande Carajás.
22. De acordo com esse estudo, a situação das comunidades indígenas em matéria de saúde, alimentação e educação e especialmente a situação imobiliária, é grave. Em 198 das 297 áreas estudadas, constataram-se problemas de sustento alimentar. Desses 198 áreas, 102 estavam legalmente regularizadas, 15 homologadas, 30 delimitadas e 25 identificadas. Quase todas têm problemas de invasão, destruição do meio ambiente, como poluição causada por restos de mercúrio utilizado por garimpeiros, exploração ilegal de madeira e da agropecuária e terras de tamanho insuficiente para prover o sustento.
23. A expectativa de vida dos índios brasileiros é de 45,6 anos, menor do que a da média da população. Isto representa um agravamento em relação à taxa correspondente a 1993, que foi de 48,3 anos, e reflete um aumento de doenças infecciosas. No Estado do Mato Grosso, a expectativa média de vida do indio baixou ainda mais, e agora é de 38 anos. Um relatório da FUNAI citado nesse estudo indica que, no período 1993-1994, a principal causa de morte (22.3%) foi a falta de assistência médica a pacientes de doenças previsíveis e curáveis, especialmente entre crianças.
24. Ainda existem grupos isolados de indígenas no Brasil, com os quais não se manteve contato. Em setembro de 1995, um especialista vinculado a um grande empréstimo internacional para "o desenvolvimento de recursos naturais" em Rondônia indicou a funcionários governamentais que não existiam grupos indígenas não contactados em Rondônia. Dois dias mais tarde, um técnico da FUNAI estabeleceu contato com 11 sobreviventes de duas aldeias de canoés e Mequéns. Segundo a informação dos índios, nos últimos 10 anos os criadores da região haviam eliminado a maior parte de ambos os grupos e destruído suas fontes naturais de subsistência na selva, a fim de abrir terreno para a pecuária. Há evidências de que ainda existem cerca de 22 localizações de grupos indígenas isolados no Brasil. Embora a maioria deles esteja em áreas já declaradas indígenas, outros parecem estar em situação semelhante a dos mencionados Canoés e Mequéns.
D. AS TERRAS INDÍGENAS
Regime jurídico: o status do direitos indígena sobre suas terras
25. As áreas indígenas do Brasil são bens da União, tal como expressamente determinado na Constituição Federal (CF Art. 20,XI). Por essa razão estão sujeitas à competência da justiça federal. Ao mesmo tempo, a Constituição reconhece o conceito de "originalidade" dos direitos dos índios em relação às terras que ocupam, ou seja, que os direitos não nascem de um ato de outorga do Estado e sim, das circunstâncias históricas de ocupação original e utilização ancestral. A Constituição também reconhece que cabe aos índios a posse permanente das terras que ocupam por tradição e o usufruto exclusivo do solo, dos rios e dos lagos, bem como a participação nos benefícios da sua exploração das riquezas do subsolo, riquezas hídricas, e energéticas.
26. As áreas indígenas podem ser assim classificadas: as de que eles são usufrutuários (áreas "ocupadas" e áreas "reservadas") e as de que são legítimos proprietários, ou seja, as que são de propriedade integral do índio ou da comunidade indígena.
27. O Estatuto do Índio (art. 17) assinala que são áreas indígenas 1) as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas; 2) as áreas reservadas; e 3) as áreas de domínio das comunidades indígenas ou silvícolas.
O processo de reivindicação de terras. Antecedentes históricos
28. A grande expansão populacional e econômica para ocupar o território central e amazônico do Brasil, iniciada na década de 50 e acelerada nas décadas de 60 e 70 exerceu duas grandes conseqüências sobre a vida dos indígenas. Por um lado, gerou um esforço no sentido de esclarecer a condição jurídica das terras do interior do país, cujo status era confuso ou ambíguo, decorrente dos requisitos de segurança jurídica de uma economia agrária moderna, o que resultou na intensificação do processo de demarcação e titulação de áreas indígenas. Por outro lado, levou à introdução, nessas áreas, de novos grupos populacionais não-indígenas, que destruíram a antiga ecologia para implantar a agricultura, a pecuária e outras explorações, e devastaram o habitat e, em certos casos a própria vida de muitas comunidades indígenas.
A situação atual
29. Os 94.600.000 hectares quadrados (946.000 km2) de terras indígenas no Brasil, em sua maioria na Amazônia, abrangem uma áreas três vezes maior do que todos os demais tipos de terras protegidas não-indígenas (parques, matas nacionais e reservas extrativas).
30. No momento, existem 205 áreas indígenas registradas como tais nos cadastros gerais ou especiais (Serviço do Patrimônio da União), abrangendo cerca de 30 milhões de ha. Essas áreas são de propriedade integral juridicamente reconhecida. Existem outras 261 áreas com certo nível de reconhecimento jurídico, abrangendo 32 milhões de ha. Isso implica um progresso jurídico/administrativo de reconhecimento que é significante, já que, em 1967, ano de fundação da FUNAI, apenas 10% dessas terras haviam recebido algum grau de reconhecimento como terra indígena.
31. Atualmente, em julho de 1997, cerca de 123 áreas indígenas estão em processo de demarcação, que consiste na identificação da área pela FUNAI, no estabelecimento de seus limites mediante portaria do Ministério da Justiça, na demarcação física, na ratificação por decreto presidencial e no seu registro no cadastro imobiliário. O processo de demarcação de terras está quase concluído, já que as terras ainda sem reconhecimento mínimo representam uma extensão equivalente a 10% das já reconhecidas, quer em processo de demarcação quer já demarcadas ou registradas.
32. Entre 1990 e 1995, a superfície de área indígena com documentação legal concluída quadruplicou, indicando não apenas a crescente capacidade política das organizações pró-indígenas, como também uma vontade real do Estado em reconhecer esses direitos.
33. Entretanto, na realidade, a demarcação e o registro legal das terras indígenas constituem apenas um passo inicial no seu estabelecimento e na sua defesa real. Essa propriedade e posse efetiva vê-se continuamente ameaçada, usurpada ou reduzida por diferentes causas. Em primeiro lugar, pelas invasões e intrusões ilegais para extração de madeira, a mineração e a agricultura ou para assentamentos de núcleos não-indígenas. Juntem-se a isto os ataques judiciais e políticos à estabilidade dos direitos já estabelecidos ou ao seu processo de consolidação. Citem-se, finalmente, as decisões no sentido de estabelecer infra-estruturas rodoviárias, energéticas ou de obras públicas, sem o devido acordo das populações indígenas afetadas.
34. A partir de 1993, os tribunais, principalmente no Sul e no Noroeste, começaram a proferir decisões contrárias aos direitos dos indígenas. A primeira sentença desse tipo foi emitida em relação às terras dos Jacarés, em São Domingos, Estado da Paraíba, que foram adjudicadas a um proprietário não-indígena que apresentou títulos registrados no início do século. Caso semelhante ocorre em relação às terras dos Guaranis, no Sul, cuja posse foi contestada em juízo por proprietários com escrituras outorgadas neste século.
35. A estratégia legal dos terceiros ocupantes foi contestar o Decreto 22/91, que estabelecia os procedimentos de demarcação e registro de terras indígenas, sob a alegação de que este não outorgaria direito de defesa a possíveis ocupantes ou titulares de direitos em face de atos administrativos de governo que reconheciam os direitos dos índios. O direito de revisão dos atos administrativos do Estado está consagrado na Constituição Federal.
36. A fim de neutralizar esse possível desafio legal, o Governo emitiu o Decreto 1775/96, que estabelece um procedimento relativamente sumário destinado a evitar um possível obstáculo legal à clareza jurídica dos títulos indígenas. Mediante o Decreto 1775/76, acresceu-se um recurso às normas para a fixação dos direitos indígenas sobre suas terras. Esse recurso habilitou particulares e autoridades governamentais locais ou estaduais a contestar a criação ou demarcação de terras indígenas por meio da apresentação de evidências que negassem a ocupação prévia pelos indígenas ou que demonstrassem direitos de terceiros sobre essas terras. Esse decreto aplica-se a todas as terras, inclusive as que contam com reconhecimento federal e ainda demarcadas, bem como áreas indígenas homologadas por decreto presidencial, excetuando-se apenas as registradas em cartório imobiliário e como patrimônio da União.
37. O Decreto 1775/96 foi denunciado como atentatório a direitos inerentes aos indígenas, cujo reconhecimento vinha sendo por estes reivindicado durante décadas e, em muitos casos, com êxito. Por sua vez, o Ministério da Justiça sustentou que tal recurso era necessário para garantir o devido processo a terceiros e a entidades governamentais, de modo que os reconhecimentos territoriais posteriores em favor dos indígenas gozassem de imunidade em relação a argüições de inconstitucionalidade, dando-se assim transparência ao processo. O Ministério argumentou que, se o Supremo Tribunal considerasse inconstitucional o procedimento do Decreto 22/91 em casos submetidos à sua competência (i. e., o caso dos Jacarés), todas as terras demarcadas, mas não registradas, estariam sujeitas a esse recurso, com o conseqüente risco para os indígenas. Fontes governamentais defenderam o Decreto, explicando que o seu mérito reside na legitimação das áreas demarcadas e ratificadas pelo citado processo, em face de futuras argüições de inconstitucionalidade dessa demarcação, ajuizadas por terceiros, sob a alegação de que não se concedeu direito de defesa dos seus alegados direitos de posse.
38. Mais de 545 recursos, referentes a 45 territórios indígenas, foram tempestivamente impetrados antes do prazo de abril de 1996, nos termos do Decreto 1775/96, afetando aproximadamente 35% das terras demarcadas ou em processo de demarcação. O maior número de recursos nos termos do Decreto 1775/95 ocorreu no Estado de Roraima. Somente em relação às terras indígenas de São Marcos, impetraram-se 573 recursos. A própria Assembléia Legislativa de Roraima ofereceu assistência jurídica gratuita aos reclamantes, e o Estado apresentou seu próprio recursos em relação a terras indígenas.
39. Em julho de 1996, a FUNAI concluiu o exame dos recursos e a decisão sobre os seus méritos. A FUNAI comprovou que os recursos abrangiam 42 áreas indígenas distintas e submeteu seu parecer à decisão do Ministro da Justiça, rechaçando a grande maioria das reclamações de não-indígenas. Este endossou os pareceres da FUNAI referentes a 34 das 42 áreas questionadas e devolveu, para fins de nova análise, os expedientes relativos a oito áreas, entre as quais as dos Macuxí, em Roraima.
E. DIFICULDADES DE RECONHECIMENTO E CONSOLIDAÇÃO DAS ÁREAS INDÍGENAS
40. Os obstáculos que dificultam a firme aplicação dos preceitos constitucionais e legais referentes a terras indígenas possuem diferentes formas.
41. Além das dificuldades já assinaladas, cumpre destacar ainda outras: a criação de novos municípios em áreas indígenas, mediante decisões estaduais; as dificuldades legais para reaver terras ocupadas ilegalmente por terceiros; e a introdução de infra-estrutura (estradas, barragens) que destróem e agridem a integridade física e cultural das áreas indígenas.
A municipalização de terras indígenas
42. Um novo problema, que se superpõe à falta de demarcação e às invasões de terras indígenas, é o da criação da sede dos municípios total ou parcialmente inseridos em terras reclamadas e/ou demarcadas como áreas indígenas. Estabelece-se, assim, uma nova jurisdição que não apenas erode a limitada soberania indígena reconhecida pela Constituição, como também faz surgir uma fonte de atritos entre as autoridades indígenas e as municipais, já que estas últimas dependem do sistema político estadual. Exemplo desses atritos é a criação da sede de dois municípios nas áreas de Raposa/Serra do Sol e São Marcos no Estado do Roraima.
43. Essa forma de criação de municípios atua, na verdade, como instrumento de divisão entre os povos indígenas locais, já que o processo serve para atrair ou subornar algum líder local para que participe do governo municipal, desprezando-se a estrutura interna de governo indígena e provocando uma cisão. A estrutura municipal e suas relações de poder também tendem a favorecer a instalação, nessas áreas, de pessoas não-indígenas e de autoridades e serviços públicos que competem com os proporcionados ou aceitos pelos líderes indígenas.
As dificuldades legais para o despejo de ocupantes intrusos
44. Na maioria das áreas indígenas, instalaram-se ilegalmente ou continuam a instalar-se intrusos, quer para se dedicar à pecuária ou à agricultura, quer para explorar recursos naturais. Estas intrusões contam com o apoio e a conivência de autoridades civis ou policiais locais e, além de resultarem em ocupação e uso ilegais de terras, são fontes de conflitos e confrontações armadas.
45. Um caso típico é o dos Xucuru de Orugaba, no município de Pesqueira, situado a 220 km de Recife, Estado de Pernambuco. Há mais de um século, segundo a tradição local, os Xucurus aceitaram seu engajamento no Exército brasileiro para lutar na Guerra do Paraguai em troca do reconhecimento de suas terras, que nunca se concretizou. Finalmente, em 1992, o Presidente Itamar Franco assinou a Resolução que reconheceu o estudo da FUNAI, de acordo com o qual esses indígenas tinham direito a 26 980 ha de terras ancestrais, o que corresponde a um quinto das terras que possuíam antes da conquista. Desses 26 980 ha reconhecidos, a ocupação de fato dos indígenas chega a 12% da área, já que o restante é ocupado por 281 fazendas e madeireiras que, por sua vez, utilizam mão-de-obra indígena. Há aproximadamente 6.000 Xucurus. A demarcação das terras está sendo realizada pela FUNAI, em meio a um clima de insegurança geral e com um mínimo de recursos.
46. Outro caso que exemplifica as dificuldades legais para garantir a propriedade indígena é o dos Guarani-Kiowa, um agrupamento de 26.000 índios organizados em duas grandes comunidades no Estado de Mato Grosso do Sul. O Estado reconheceu 22 áreas, no total de 40.000 ha, como de propriedade dos Guarani. Essas áreas estão superpovoadas e têm servido de cenário para contínuos episódios de suicídio cujo total, em 1995, foi duas vezes superior ao do ano precedente e que, em proporção, são 30 vezes maiores do que a média de suicídios entre a população brasileira. São fatores centrais para esse fenômeno as ações de particulares, que obtêm apoio judicial para suas reivindicações de escrituração de terras, pese o fato de a Constituição de 1988 dispor que os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse de terras indígenas "são nulos e extintos". A insegurança jurídica gerada por essa situação é agravada pelos despejos com uso de violência, quando os índios reocupam terras que foram reconhecidas como suas.
A introdução de infra-estrutura física
47. Durante a sua visita, a Comissão ouviu continuas reclamações a respeito da construção e penetração de rodovias locais, nacionais e internacionais em áreas indígenas. A reclamação central sustenta que a construção e a existência dessas estradas servem para introduzir doenças e facilitar a chegada de intrusos nas áreas indígenas, com as conseqüências negativas sobre a sobrevivência cultural e física dos índios. Durante a sua permanência no Brasil, a Comissão recebeu informações sobre um conflito ligado à construção da BR-174, no Estado do Amazonas. Naquela área, o Corpo de Engenharia e Construção que estava asfaltando a estrada suspendeu as obras no trecho de 47 km que atravessa a reserva indígena dos Waimiri Atroari até que os índios, a FUNAI e o Governo do Amazonas chegassem a um acordo.
F. A SITUAÇÃO DOS MACUXÍS EM RORAIMA
48. A Comissão teve a oportunidade de visitar as comunidades da área de Raposa/Serra do Sol, no norte do Estado de Roraima. Vivem nessas comunidades cerca de 12 000 pessoas, em 97 aldeias distribuídas por uma área de 1.678.000 ha. que se estendem até a fronteira com a Guiana e Venezuela. Segundo denúncias dos líderes Macuxi, nos últimos anos em conseqüência dos esforços dessas comunidades no sentido de que as suas terras fossem demarcadas, bem como da sua oposição à entrada de não-indígenas, fazendeiros locais teriam desencadeado uma campanha de terror, com o apoio da polícia e de autoridades estaduais. Os ataques denunciados incluem não apenas despejos ilegais e violentos de indígenas que ocupam terras ancestrais, mas também homicídios, torturas, violações e castigos, que em geral não são investigados nem tao pouco processados. As terras ancestrais dos Macuxi, Ingaricós, Wpixanas, Taurepangues e Patamonas foram identificadas pela FUNAI em maio de 1993 (Despacho N.º 9, publicado no Diário Oficial da União em 21 de maio de 1993). Essa identificação coincide com o consenso dos índios a respeito das terras que ocupam.
49. O Governo de Roraima, apesar de ter participado do grupo de identificação da FUNAI, formulou protesto contra a mesma junto ao Ministério da Justiça. Após considerarem o protesto, a Procuradoria Geral da República e a FUNAI decidiram manter a demarcação tal como fora realizada.
50. A demarcação também foi enviada ao Ministro Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, que opinou contra a mesma por entender que "os habitantes dessas áreas de fronteira devem ter uma consciência cívica ainda maior do que a dos demais brasileiros e, além disso, um sentimento patriótico mais arraigado" (Aviso N.º 03157-EMFA) e que, portanto, os indígenas não se qualificavam em relação a essa consciência de sentimento patriótico. Essa justificação esdrúxula das Forças Armadas estabelece uma gradação em matéria de liberdade de pensamento que viola a igualdade de todos os cidadãos, já que deixa de ser exigida aos habitantes não-indígenas de outras zonas de fronteira, em relação aos seus títulos de propriedade. Por outro lado, a Comissão, em suas visitas e suas prolongadas conversações com os líderes Macuxis e Yanomamis, pôde comprovar a sua autopercepção como brasileiros e o seu interesse em consolidar ao máximo essa nacionalidade.
51. A citada opinião das Forças Armadas levou o Ministro da Justiça a encaminhar o processo à Advocacia Geral da União, a qual, por sua vez, entendeu que deveria encaminhá-lo aos ministérios militares, ao Ministério das Relações Exteriores e à Secretaria de Planejamento. Decorridos dois anos de trâmite administrativo, o Ministério da Justiça ainda não havia assinado a Portaria de Demarcação. Atualmente, essa demarcação deve ser efetuada dentro do prazo previsto no novo Decreto 1775/96 para reclamações de supostos ocupantes não-indígenas. Foram apresentadas 46 contestações, de fazendeiros, de uma mineradora e do governo do estado. Em dezembro de1996 cedendo a pressões dos políticos do estado de Roraima, o Ministro da Justiça determinou à FUNAI que diminuísse a terra indígena, não reconhecendo como posse permanente dos índios cinco vilas de garimpo, fazendas com título expedido pelo INCRA( Órgão Fundiário Federal) a partir de 1980, e estradas que cortam as terras indígenas, reduzindo cerca de 20% da área e afetando diretamente 20 aldeias. Esta decisão provocou vários protestos, confirmou os temores dos que são contrários ao decreto 1.775/96, de que o decreto permite demarcar terra indígena em base a critérios políticos e não técnicos , e, por fim, ainda não é definitiva , pois a portaria de Demarcação ainda não foi assinada.
52. Segundo informação em poder da CIDH, existem dentro da área identificada como terra Macuxí cerca de 1 500 garimpeiros e 100 fazendeiros, alguns destes últimos lá estabelecidos desde o começo do século. Em geral, os conflitos têm sua origem em disputas entre índios e não-índios, pelo uso de recursos naturais (rios, lagos, pastagens, igarapés, buritizais e outros). Nos últimos sete anos, 12 índios de Raposa/Serra do Sol foram assassinados em razão desses conflitos.
53. De acordo com um documento apresentado à delegação da CIDH, contendo 450 assinaturas de membros dessas comunidades reunidos em assembléia geral em Matucurá, em 3 de dezembro de 1995, os intrusos apresentaram-se como amigos dos indígenas e declararam inicialmente que sua única intenção era criar gado; contudo, não tardaram a desfechar ataques contra os índios, impedindo-os de criar, pescar e caçar onde o faziam tradicionalmente. Além disso, os intrusos demoliram as casas e arrasaram os cultivos indígenas. Por sua vez, os garimpeiros trouxeram para a área indígena doenças, o alcoolismo, a prostituição, a destruição do meio ambiente e a contaminação dos rios.
54. A partir de 1993, com a intensificação da atividade da FUNAI e das comunidades indígenas, 62 das fazendas foram abandonadas por seus posseiros. Correlativamente, aumentou de 85 para 95 o número de aldeias de índios nessa área.
55. Em agosto de 1993, os habitantes da aldeia de Matucurá, com o apoio de outras aldeias da região das serras, organizaram um bloqueio a fim de impedir o acesso de veículos que transportavam combustível e alimentos para os garimpos do rio Maún, distantes três quilômetros da aldeia. O bloqueio prolongou-se por mais de um mês, fazendo com que 240 garimpeiros, que causavam grandes danos à população de Maturucá, abandonassem o lugar. Contudo, alguns garimpeiros continuam a explorar outros locais.
56. Em março de 1994, as comunidades indígenas organizaram um bloqueio para impedir a continuação do garimpo ilegal praticado nos rios Mau, Cocingo e Quino, localizados na zona de Raposa/Serra do Sol. Embora tenha atraído a atenção pública, o bloqueio não alcançou o seu propósito de expulsar os garimpeiros.
57. Existem pelo menos denúncias a respeito de 31 índios assassinados em Roraima de 1988 a 1994. Na área de Raposa/Serra do Sol, ocorreram 12 homicídios de Macuxis nesse período. Umdos processados, já julgado foi absolvido por haver agido supostamente em legítima defesa, em que pese ter sido provado que disparou um tiro na nuca de um dos índios. O Conselho Indígena de Roraima estima que, de 1991 a 1994, ocorreram pelo menos seis tentativas de homicídio, oito violações, 15 maus tratos físicos e sete ameaças de morte contra índios. Agentes policiais foram implicados em dez desses crimes. Dois índios morreram sob custódia policial: um, depois de haver sofrido maus tratos, e o outro alvejado na cabeça por um policial.
58. Em 1988, o índio macuxi Donaldo William foi assassinado a tiros na maloca de Canawapai. Em 1990, na maloca de Santa Cruz, dois índios, Damião Mendes e Mário Davis, foram assassinados e o homicida absolvido. No processo contra vários policiais pela morte de Ovelário Tames, um menor macuxi, ocorrido em 1989, o processo continua à espera de instrução há seis anos. Somente depois de cinco anos o principal acusado foi intimado em juízo. O júri desses casos penais é formado por não-indígenas, que habitualmente decidem pela inocência dos réus acusados de homicídio de indígenas.
59. Em fins de 1994, o Governo do Estado deu início à execução das obras de uma central hidroelétrica no centro da área indígena Macuxé. Várias comunidades Macuxés foram violentamente desalojadas pela polícia, o que despertou grande atenção entre o público. Em conseqüência desses fatos, o Departamento de Água e Energia Elétrica (federal) determinou a suspensão das obras até que o Congresso Nacional as autorizasse, tal como previsto na Constituição, por se tratar de terra indígena.
60. Cumpre observar que, dos 215.000 habitantes do Estado de Roraima, (IBGE 1991), 140.000 residem em Boa Vista, a capital, e aproximadamente metade dos outros 75.000 habitantes são índios. O Estado abrange 23 milhões de ha, e o total ocupado por povos indígenas corresponde a 42% da superfície do Estado.
61. As comunidades indígenas de Raposa/Serra do Sol estão desenvolvendo atividades agrícolas apropriadas às terras que possuem. Criam cerca de 10.000 cabeças de gado e cultivam a terra. Existem professores índios em quase todas as 95 aldeias da área, algumas delas atendidas pela Secretaria Estadual de Educação. A Assembléia de Líderes indicou à CIDH que necessita de serviços de educação, saúde e transportes, e que está interessada em desenvolver suas comunidades e participar ativamente do desenvolvimento geral do Estado de Roraima.
62. A Comissão também foi informada de que, embora seja unânime a opinião dos Macuxés e de outros povos da área de Raposa/Serra do Sol a respeito da necessidade de completar a demarcação de suas terras, uma percentagem prefere que estas não sejam demarcadas de forma contínua, mas como blocos descontínuos. Desta maneira, as "ilhas" indígenas ficariam cercadas por áreas não-indígenas, reduzindo-se sensivelmente a sua superfície total e fragmentando-se a continuidade físico-cultural desses povos. Essa posição favorável ao reconhecimento de áreas menores e descontínuas foi apresentada à delegação da CIDH pelo Governador de Roraima e coincide com a opinião do líder de uma aldeia contao e presidente da Sociedade Indígena do Norte de Roraima, em depoimento prestado a uma comissão da Câmara de Deputados. A Assembléia de Líderes e o Conselho Indígena de Roraima sustentam, porém, que tais declarações se devem a tentativas de dividir a liderança indígena por meio de embustes e de ofertas de compensação material.
G. OS YANOMAMIS. A FRAGILIDADE DA SUA CULTURA E CONDIÇÕES DE SOBREVIVÊNCIA FÍSICA E CULTURAL
Situação geral
63. Os Yanomami e sua luta pela sobrevivência individual e como povo exemplificam os problemas sofridos pelos povos indígenas tropicais silvícolas na defesa nacional e internacional dos seus direitos. Os Yanomanis, que habitam por pelo menos 2000 anos a área adjacente ao rio Orinoco no que hoje são a Venezuela e o Brasil, somam, no Brasil, cerca de 10.000 pessoas, agrupadas em 150 comunidades. Essas comunidades são autônomas entre si e não possuem uma estrutura única de governo, mantendo uma relativa estabilidade econômica de auto-suficiência e relação com o seu meio ambiente. Ao mesmo tempo, uma crescente comunicação entre as aldeias indígenas e os usos tradicionais da terra têm possibilitado a sobrevivência física e cultural dos Yanomani, assim como a proteção da ecologia. Essa estabilidade dos Yanomani está ameaçada pela sucessiva penetração de instituições estranhas, algumas delas ilegais, como os garimpeiros, que prejudicam suas vidas, sua sobrevivência, sua cultura e o meio ambiente.
64. Os Yanomami ocupam, no Brasil, uma área indígena de 9,4 milhões de hectares de matas tropicais nos Estados de Roraima e do Amazonas, que já foi demarcada e definitivamente homologada. Embora continua a ser invadida incessantemente por garimpeiros.
65. Para compreender a frágil situação dos direitos humanos dos Yanomami no Brasil, é importante recordar fenômenos relativamente recentes que resultaram na perda de um significativo número de vidas. Entre 1974 e 1976 iniciou-se a construção da rodovia Perimetral Norte, para o transporte de minerais. A rodovia chegou a penetrar 225 km na área Yanomami; devido ao fato de os operários da empresa construtora não estarem vacinados e de não terem sido fornecidas vacinas aos indígenas, a população Yanomami de 13 aldeias ao longo dos primeiros quilômetros de construção foi assolada por epidemias que resultaram na morte de um em cada quatro índios. A incidência de conflitos entre colonos e indígenas intensificou-se, resultando num número desconhecido de mortes.
66. Sucessivas descobertas de jazidas de minerais valiosos e tentativas de exploração, principalmente por garimpeiros exploradores de ouro e minerais preciosos, por sua vez financiados, abastecidos e politicamente apoiados por grupos de capacidade financeira e peso político na região, introduziram novas doenças, entre as quais de malária, a tuberculose, a varíola e outras infeções contra as quais os índios não tinham defesa genética desenvolvida. Em 1976, o Ministério do Interior determinou a remoção dos mineiros. Segundo as estimativas, as doenças introduzidas pelos garimpeiros vitimaram, na época, 15% da população Yanomami (cerca de 1.500 pessoas). Entre outras doenças introduzidas, hoje a malária infecta 40% da população.
67. Em dezembro de 1980, a Comissão recebeu denúncia de atos tais como a construção de estradas, a concessão de licenças de mineração, a falta de vacinação dos indígenas e tentativas de redução do direito às suas terras por meio de medidas governamentais, tudo isso em transgressão aos direitos dos indígenas garantidos pela Convenção Interamericana. Após diversos trâmites processuais, incluindo audiências com peritos e representantes governamentais, a Comissão emitiu, em 5 de março de 1985, uma resolução em que assinalava a ocorrência de graves violações dos direitos humanos dos Yanomamis, especialmente na época da construção da Perimetral Norte. A resolução também reconhecia as importantes medidas adotadas nos últimos anos pelo Governo do Brasil, especialmente a partir de 1983, no sentido de proteger a vida, a segurança e a saúde dos índios Yanomamis. A resolução também recomendava o prosseguimento das medidas preventivas e curativas em benefício dos índios; a demarcação das fronteiras do Parque Yanomami; e a realização de consultas com pessoal científico, médico e antropológico para o desenho de programas de assistência a esses índios (CIDH, Relatório Anual, 1985, pp. 24-34).
68. De 1987 a 1990, no contexto da implementação do Projeto Calha Norte, o território amazônico ancestral dos Yanomanis, que era de 9,5 milhões de hectares, sofreu uma redução de 70% e foi dividido em 19 territórios isolados entre si. Dois terços do território original foram abertos à exploração mineira, especialmente de ouro. Os garimpeiros penetraram aos milhares no território Yanomami. Em 1987, segundo as estimativas, havia 45 000 garimpeiros naquela área.
69. A partir de 1988, os tribunais federais decidiram favorecer, em diversos casos, os direitos dos Yanomami. Em primeiro lugar, anularam a desintegração da sua área contínua em "reservas" separadas ("arquipélagos"). Os tribunais também se pronunciaram a favor do direito deste e de outros grupos, de que seus territórios não sejam objeto de usurpação por garimpeiros e madeireiros ilegais, e determinaram a adoção de medidas para desalojá-los.
70. A partir da consagração dos direitos dos índios na Constituição de 1988, os órgãos federais começaram a controlar intrusão nessa área e, no início dos anos 90, reduziram a uns poucos milhares o número de intrusos.
71. Em anos subseqüentes, a Comissão foi informada de que as recomendações que formulara em 1985 haviam sido implementadas e que, fundamentalmente, a demarcação e homologação definitiva da área Yanomami fora completada. Na sua visita, a Comissão pôde comprovar a existência de postos de saúde e de vigilância de órgãos federais na área indígena, bem como a eficiente ação de proteção do território e defesa contra incursões clandestinas de garimpeiros que vinha sendo desenvolvida pela Polícia Federal.
72. Em sua visita de dezembro de 1995, a Comissão ouviu depoimentos coincidentes de distintas fontes, inclusive de agentes estaduais, segundo os quais o número de garimpeiros era inferior a 330 na área Yanomami brasileira, existindo um número indeterminado de garimpeiros em território Yanomami venezuelano, em sua maioria brasileiros, abastecidos a partir do Estado de Roraima.
73. Contudo, a vigilância do território Yanomami exercida pela FUNAI e por órgãos federais sofre contínuos percalços. No começo de março de 1996, a vigilância da Polícia Federal com o uso de helicópteros foi suspensa; no dia seguinte, aviões voltaram a introduzir garimpeiros e maquinaria naquela área. Segundo os cálculos, existem atualmente cerca de 2.000 garimpeiros assentados e 24 pistas clandestinas como resultado dessa operação. No fim de março, autoridades do Ministério da Justiça informaram que seria reiniciada uma campanha de expulsão e vigilância; porém, à época da preparação deste relatório, a campanha não havia sido reiniciada e os intrusos não haviam sido expulsos.
A situação da saúde na área Yanomami. A malária
74. A introdução da novas cepas de malária e outras doenças, especialmente pelos garimpeiros, exerceu efeitos deletérios sobre a situação geral de saúde dos Yanomamis. Entre essas doenças, a mais alastrada é a malária, que dizimou, em conjunto com as doenças do pulmão, importante percentagem de Yanomamis e que, ainda hoje, é epidêmica. Segundo dados oficiais, a incidência de malária entre os Yanomamis aumentou 44% em 1995. Essas cifras coincidem com o crescimento da malária entre a população geral do Estado de Roraima, que foi de 52% no ano citado.
75. Não obstante, na área Yanomami em que está sendo executado um projeto auspiciado pela Comissão Pró-Yanomami, uma organização não-governamental, se logrou que a incidência da malária decline 14% em 1995. Nas comunidades Yanomamis abrangidas por esse projeto, a população aumentou 10,3% nos últimos quatro anos.
76. A Comissão comprovou o interesse das comunidades Yanomanis visitadas em manter suas valores culturais e seu estilo de vida, respeitando por sua vez a sua pertinência para a sociedade brasileira, para a qual estão dispostas a contribuir com seus conhecimentos e exemplos. Recebeu, igualmente, constantes expressões de temor em face da introdução de elementos da vida exterior sem as devidas precauções, dada a fragilidade da sua cultura e da sua situação sanitária.
77. Em particular, os líderes referiram-se à contínua pressão dos garimpeiros, com suas seqüelas de doenças, atritos e envenenamento dos seus cursos d'água. Porém, referiram-se também a construção, dentro de suas terras, de vias de acesso à área Yanomami, fato que, segundo sua experiência, só serve para introduzir doenças, intrusos de todo o tipo (garimpeiros e outros), a extração ilegal de recursos madeireiros e costumes que desorganizam a vida comunitária.
78. Esses perigos concretizaram-se com a suspensão a partir de março de 1996 do uso de helicópteros pela Polícia Federal que protegiam as áreas Yanomamis.
H. VIOLÊNCIA CONTRA OS INDÍGENAS E IMPUNIDADE
79. Em 1993, de acordo com as cifras do CIMI, registraram-se 43 homicídios de indígenas, 32 dos quais cometidos por não-indígenas. Deste grupo, oito foram de autoria de garimpeiros, sete resultaram de conflitos sobre terras, três foram cometidos por madeireiros, um por vingança e três por motivos desconhecidos. De todos esses casos, à junho de 1994 só fora efetuada uma prisão e só foram abertos sete inquéritos policiais. Além disso, registraram-se 85 tentativas de homicídio, sete violações, 29 agressões e 18 detenções ilegais
80. Em 1993, 16 índios Yanomamis foram assassinados por um grupo de garimpeiros em Haximu. Em dezembro de 1996, cinco garimpeiros foram condenados por genocídio, mas apenas um se encontra preso.
81. A Comissão pôde comprovar que nos Estados em que existem grupos indígenas, seus defensores estão permanentemente expostos a ameaças. A respeito, a Comissão recebeu informações de que Paulino Baldassari, da Ordem dos Servos de Maria, defensor dos direitos dos índios, teria sido ameaçado por madeireiros na região de Rio Branco, no Acre, passando a receber proteção do Governo. No Estado do Pará, Humberto Mattle, defensor dos índios e de outros grupos vulneráveis, foi assassinado em 10 de outubro de 1995 em Xingu, Altamira. Segundo informaram os jornais, os assassinos confessaram a autoria do crime ao serem detidos, mas indicaram que seu alvo era outro, já que a intenção era assassinar o Padre Francisco, outro ativo defensor dos indígenas. Algum tempo antes, em meados de 1995, o Bispo Erwin Krautler, ex-presidente do CIMI sofreu atentados e ameaças.
I. CONCLUSÕES
82 Com base no exposto a Comissão conclui que:
a. Os povos indígenas do Brasil na última década obtiveram avanços significativos em relação aos seus direitos, inclusive à demarcação e posse de suas terras; embora sua integridade cultural, física e referente a suas terras sejam continuamente ameaçadas e agredidas tanto por indivíduos, por grupos particulares que atrapalham suas vidas e usurpam suas possessões, bem como por algumas tentativas de autoridades de vários Estados para reduzir seus direitos políticos, civis e econômicos. Embora o Plano Nacional de Direitos Humanos inclua medidas positivas para combater esta situação, informações recebidas em princípios de 1997 mostram que suas medidas ainda não haviam sido significamente implementadas.
b. A situação referente aos cidadãos indígenas do Brasil com relação à saúde, alimentação e acesso a serviços públicos é preocupante. Os índices denotam condições claramente discriminatórias em relação aos padrões e serviços da população em geral.
c. As garantias de segurança que todo o estado deve prover a seus habitantes e que, no caso dos povos indígenas no Brasil requer medidas especiais de proteção, são insuficientes para prevenir e solucionar a permanente usurpação de seus bens e direitos.
d. Foram realizados significativos avanços no reconhecimento, demarcação e outorgamento da posse territorial dos povos indígenas. Apesar disso , há alguns casos, especialmente no Estado de Roraima, onde a Comissão pôde com comprovar a ocorrência de ações estatais que tendem a deteriorar a segurança e vigência dos direitos humanos dos povos indígenas.
e. A procrastinação e dificuldades no reconhecimento da integridade do povo Macuxi e da plena posse de suas terras, assim como a criaçao de municípios que se sobrepõem às mesmas e que debilitam suas autoridades e estruturas tradicionais, denotam a incapacidade do Estado brasileiro para defender estes povos das invasões, abusos de terceiros e de combater as pressões políticas e de policiais estaduais para reduzir sua plena segurança e gozo de direito.
f. O povo Yanomami obteve o reconhecimento pleno de seu direito à posse de suas terras. sua integridade tanto como povo e como pessoa é continuamente agredida por garimpeiros invasores bem como pela poluição ambiental que estes geram. A proteção do estado contra estas contínuas pressões e invasões, é irregular e fraca, mantendo uma permanente situação de perigo assim como a contínua deterioração de seu habitat.
J. RECOMENDAÇÕES
83. Em consequência a Comissão recomenda:
a. Acelerar e aprofundar o cumprimento dos objetivos de curto e médio prazos estabelecidos no Plano Nacional de Direitos Humanos. Estabelecer procedimentos para promover com plena participação e controle dos povos indígenas interessados e de acordo com suas tradições e autoridades próprias, medidas compensatórias nas áreas de educação e saúde.
b. Dotar a FUNAI de todas as formas de recursos a fim de que possa cumprir sua função, no que diz respeito tanto a completar a demarcação de terras, bem como a prestação de assessoria e defesa legal dos povos indígenas.
c. Paralisar toda decisão de municipalização que atinja terras indígenas, inclusive daquelas em processo de demarcação e homologação; e estabelecer procedimentos que tendem a manter sua integridade e autonomia, de acordo com os preceitos constitucionais vigentes.
d. Completar e homologar legalmente as terras correspondentes os povo Macuxi no Estado de Roraima, com pleno respeito a suas propriedades e suas instituições e costumes ancestrais.
e. Tomar medidas de proteção federal sobre as terras indígenas ameaçadas por invasores, com particular atenção às dos Yanomami e na Amazônia em geral, incluindo o aumento da vigilância, o julgamento e punição severa dos autores materiais e intelectuais de tais delitos, assim como dos agentes estatais cúmplices ativos ou passivos.
NOTAS AO CAPITULO VI
1 A população indígena, que corresponde a 0,2% da população total do Brasil, vive em 546 áreas do país e fala 170 línguas. Após um declínio constante, que chegou a um total mínimo nos anos 70, seu número começou a aumentar. Segundo as cifras do censo especial, a população em 1990 era de 230 000 pessoas, e o seu total de 330 000 em 1995 implica um importante aumento.
2 A primeira organização nacional indígena (UNI) foi criada em 1980 e outras surgiram desde então, assim como surgiram líderes indígenas conhecidos internacionalmente, como Ailton Krenak, Paulo Paiakan e Davi Yanomami. A partir dessa época, intensificou-se a ação de diferentes grupos indígenas e não-indígenas em defesa da sua sobrevivência, seus direitos e seu desenvolvimento. Em 1967 criou-se a FUNAI, órgão governamental encarregado de aplicar as políticas indígenas, que continua a desempenhar papel central em relação à situação dos direitos humanos dos povos indígenas.
3 Os incisos 3 e 4 do Artigo 174 referem-se à atividade de prospeção e extração de ouro e metais preciosos em escala menor (garimpagem), e seu texto é o seguinte:
174....3. O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.
174....4. As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra de recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei [Competência da União].
4 Jornal "A Crítica", Manaus, 19 de novembro de 1995.
5 Estudo do Instituto de Medicina Tropical de Manaus, 1995.
6 Destas, 13 estão identificadas, aguardando portaría declaratótia; 83 estão delimitadas aguardando demarcação física; 13 estão demarcadas, aguardando homologação; e 14 estão homologadas, aguardando registro. Outras 254 terras já estão registradas. Restam por indentificar 179 casos.
7 As 307 reservas indígenas do Brasil (de um total de 554) que ainda estão submetidas ao laborioso processo legal de identificação, demarcação, aprovação e registro são as vulneráveis às reivindicações de proprietários, madeireiros, empresas de mineração e setores políticos que os apoiam.
8 Julio Gaiger, da FUNAI. Citado em "CCPY Update", maio de 1996.
9 Entrevista da Comissão com o Governador de Roraima; apresentação da Assembléia de Líderes; entrevistas com funcionários da FUNAI e com autoridades da Polícia; Federal, Delegacia de Roraima (Dezembro 1995).
10 CIMI, publicado em "Porantim", setembro de 1995.
11 A FUNAI imformou a CIDH que o índice de suicídios entre aqueles indígenas caiu para menos da metade nos primeiros meses de 1997, em comparação com o mesmo período de 1996, o que atribui à implementação de projetos de agricultura e á demarcação de novas terras.
12 A respeito, ver também neste capítulo o caso da represa hidrelétrica na área Macuxé de Raposa/Serra do sol and Northern Roraima from 1988 to 1994." Washington, junho de 1994.
13 Human Rights Watch/Americas: "Brazil. Violence Against the Macuxi and Wapixana Indians in Raposa Serra do sol and Northern Roraima from 1988 to 1994." Washington, junho de 1994.
14 Apresentação à CIDH. Assembléia Geral de líderes da área de Raposa-Serra do Sol, 3 de dezembro de 1995. Em dezembro de 1995, cerca de 15 000 pássaros de diferentes espécies morreram envenenados por pesticidas indiscriminadamente usados, segundo as alegações, em terras indígenas invadidas por um ex-deputado e um grande produtor de arroz da área de Raposa-Terra do Sol. Vários indígenas da aldeia javari distante 5 km do local em que ocorreu a fumigação também resultaram intoxicados e tiveram que ser hospitalizados. Um dos responsáveis pela aplicação ilegal de pesticidas foi detido, mas imediatamente posto em liberdade. A Polícia Federal e o IBAMA apreenderam o avião e os produtos químicos utilizados na fumigação. CIMI Newsletter 191, janeiro de 1996.
15 Human Rights Watch, Violence against Macuxi, Relatório, Washington, D.C., 1994.
16 Apresentação da Assembléia de Líderes à CIDH, dezembro de 1996. Entrevista com o Bispo de Roraima, 5 de dezembro de 1995.
17 Datos para 1991, Instituto Brasileiro de Geografia & Estadistica.
18 Entrevista do Governador de Roraima, Neu De Campos, com a Delegação da CIDH, dezembro de 1995. "O Diário", Boa Vista. Roraima, 7 de dezembro de 1995. Apresentação da Assembléia de Líderes macuxis, aldeia Maturucá, 3 de dezembro de 1995.
19 Entrevista com o Governador Neu De Campos, Boa Vista, 6 de dezembro de 1995.
20 Outros 12.500 yanomamis vivem em áreas indígenas venezuelanas que abrangem cerca de 10 milhões de hectares.
21 A denúncia original foi apresentada pelas seguintes entidades: American Anthropological Association, Anthropology Resource Center, Indian Law Resource Center, Survival International e Survival International USA, esta representando também a Comissão de Cooperação do Parque Yanomami CCPY.
22 CCPY, Update, maio de 1996.
23 Conselho Indígina Missionário (CIMI): "A violência contra os Povos Indígenas no Brasil em 1993". Brasília, 1994.
24 A CIDH tramita um caso sobre esta situação.
25 Publicación "Porantim", setembro de 1995.
CAPÍTULO VII
A PROPRIEDADE DE TERRAS RURAIS E OS DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES RURAIS
A. O DIREITO À PROPRIEDADE DA TERRA NO BRASIL
Antecedentes e situação
1. O Brasil possui um extenso território, com grande capacidade produtiva e de assentamento social; contudo, por razões históricas, a distribuição da propriedade das terras é extremamente desequilibrada, gerando em conseqüência, condições propícias para enfrentamentos sociais e violações de direitos humanos.
2. Autoridades do Ministério do Meio Ambiente assinalaram que o Brasil tem um sistema de distribuição de terras extremamente desigualitário. Aproximadamente 1% da população, ou seja, 1,5 milhões de pessoas, controla 47% de todas as propriedades imobiliárias. Altas autoridades(1) indicaram que existem 120 milhões de hectares de terras cultiváveis não-aproveitadas e, portanto, constitucional mente sujeitos à desapropriação. Em todo o Brasil, existem 10.735 imóveis com mais de 80.000 hectares cada um (ou seja, 20 km x 40 km). Somente em relação aos imóveis com área superior a 50.000 hectares, existem 35 milhões de hectares improdutivos. O Movimento dos Sem Terra (organização não-governamental) assinala que existem 12 milhões de pessoas, ou seja, 4,5 milhões de famílias de agricultores sem terras; o Ministério da Reforma Agrária calcula que 2 milhões de famílias estão nessa situação. O déficit total de emprego urbano e rural no Brasil é de 15 milhões de posições.
3. A situação não é homogênea no vasto território do país. Em geral, no Sul, onde o desenvolvimento econômico é mais avançado, a predominância do latifúndio e de terras improdutivas é muito menor. A maior incidência de latifúndio e de terras improdutivas corresponde à região Amazônica e ao Noroeste.
4. De acordo com um levantamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agraria (INCRA) , somente no Estado de Roraima, em relação a imóveis com área superior a 5.000 hectares, existem 2.394.686 ha de terras improdutivas. No Estado do Pará, existem 265 imóveis com área superior a 10.000 hectares, perfazendo um total de 16.547.651 hectares; destes imóveis, 175 são improdutivos, correspondendo a uma área de 14.552.549 hectares. Nesse Estado do Pará, os imóveis improdutivos abrangem uma extensão quatro vezes e meia maior do que a superfície da Bélgica.(2)
5. Em que pesem a rápida urbanização dos últimos anos e o crescimento do setor industrial como principal atividade econômica, cifras oficiais indicam que um quarto da população economicamente ativa vive da agricultura (14 milhões do total de 62 milhões). Desses 14 milhões, quatro milhões não auferem renda fixa e, em muitos casos são forçados a aceitar condições de emprego inferiores aos padrões mínimos de trabalho ou acabam por unir-se a grupos de inconformados que recorrem a medidas desesperadas para solucionar a questão do acesso à terra.(3)
6. Organizações não-governamentais religiosas(4) assinalam que, em 1995, ocorreram 554 conflitos rurais noticiados, dos quais 440 deveram-se a problemas de terras, 21 a trabalhos forçados e 93 a disputas trabalhistas ligadas ao fenômeno das secas ou à reforma agrária. No total, houve 69 conflitos a mais do que em 1994, envolvendo 3.250.731 pessoas. Em razão desses conflitos, 39 pessoas foram assassinadas ou perderam a vida de forma violenta. Outras fontes (5) indicam que mais de mil trabalhadores morreram na última década em conseqüência de conflitos ligados à reforma agrária e à distribuição de terras.
Antecedentes constitucionais
7. A Constituição Federal incorpora o conceito de reforma agrária e permite a desapropriação, pelo Estado, de terras que não cumpram uma função social. A lei define a unidade produtiva de posse da terra como aquela em que 80% da área é plena e efetivamente utilizada, em que os recursos naturais são adequadamente usados, em que as normas ecológicas e de trabalho são respeitadas e em que o uso se considera de benefício comum de proprietários e trabalhadores. A Constituição prevê a desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, com prévia indenização em dinheiro (CF Art. 5º, XXIV) e autorizando, como exceção constitucional no caso de reforma agrária, a indenização em títulos da dívida agrária (Art. 184), com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até 20 anos, a partir do segundo ano de sua emissão.(6) Em geral, a desapropriação deve referir-se a minifúndios ou latifúndios, já que a própria Constituição considera insuscetíveis de desapropriação a pequena e média propriedade rural(7). A Constituição de 1988 prevê também o reconhecimento da propriedade das terras dos "quilombos", para comunidades negras que se organizaram autônomamente no interior, no século passado.
Ações governamentais
8. O Governo informou a CIDH que "a pesar de condicionantes decorrentes da reforma do Estado e da preservação da estabilidade econômica, o presente governo desapropriou, ate fevereiro de 1997, cerca de 4 milhões e 500 hectares de terras - área mais extensa do que o território da Bélgica - e mantém o objetivo de alcançar a cifra de 14 milhões de hectares de terras desapropriadas". Também remarca que em 1993 transcorriam em media 518 dias entre a desapropriação e o assentamentos e que hoje são 130 dias e a meta é chegar a 80 dias. Junta, ainda, a todos estes esforços a conclusão do Primeiro Censo Nacional da Reforma Agraria.
9. Em dezembro de 1996 foram aprovadas novas leis para estimular o uso racional da terra e incentivar a venda com fins de reforma agraria, de grandes propriedades improdutivas, especialmente através do aumento do imposto de grandes propriedades e a extinção da diferenciação segundo a localização geográfica. O Congresso Nacional aprovou a chamada "Lei do Rito Sumario" que reduz ao mínimo o período de maior incidência de conflitos fundiários a saber, o lapso entre a desapropriação e a emissão de posse.(8) Outras medidas de reforma financeira, como facilitação creditaria e desenvolvimento regional e fundiário tendem segundo o Governo, também a conferir maior fluidez e transparência a reforma agraria, descentralizando sua implementação e desestimulando as invasões.
10. A Comissão deseja ressaltar a aprovação, em fevereiro de 1997, da lei 9437/ que passou a definir como crime, e não mais como contravenção , o porte ilegal de armas; e que permite, em conseqüência, operações de desarmamento em massa no campo, tanto de fazendeiros como de sem terras.
A luta pela reforma agraria e suas vitimas
11. Segundo informações recebidas pela Comissão, o orçamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) foi de 1,25 bilhões de dólares em 1995. Com esses recursos, o INCRA esperava assentar naquele ano, aproximadamente 40.000 famílias. O governo atual indicou que pretende assentar 280.000 famílias durante os quatro anos do seu mandato.
12. Para esse fim, o Governo criou, em maio de 1996, o cargo de Ministro Extraordinário da Reforma Agrária. O Ministério informou à CIDH que mantinha contínuas relações de diálogo com as organizações representantes dos reclamantes de terras, a Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas e o Movimento dos Sem Terra.
13. O plano que o INCRA implementa no momento, outorga um título provisório correspondente às terras distribuídas que serve de base para a obtenção automática de um crédito de U$ 3.000 para alimentação, habitação e plantio iniciais e, no segundo ano, de um crédito de U$ 7.500 por família (ou de U$ 15.000 se a família estiver associada a uma cooperativa), para plantação e equipamento. Amortizados esses créditos, os agricultores obtêm a escritura definitiva de propriedade.
14. Ao mesmo tempo, indicou que a situação agrária é "aguda" e que existem numerosos conflitos e ocupações em agosto de 1996, envolvendo 50.000 famílias de agricultores instaladas em acampamentos precários nas áreas invadidas e enfrentando problemas de saúde, trabalho e educação, e confrontos com proprietários e forças policiais.
15. Tal como mencionado acima, essa situação de tensão entre o panorama real e as disposições constitucionais sustenta um alto grau de instabilidade, verificando-se contínuos enfrentamentos relativos à propriedade e ao usufruto de terras.
16. Em abril de 1996, em Eldorado de Carajás, 650 km ao sul de Belém do Pará, 19 pessoas perderam a vida e 40 resultara feridas em conseqüência de um conflito motivado pela invasão de uma fazenda por agricultores sem terras. Para evitar sua expulsão e chamar a atenção para o seu problema, os agricultores bloquearam um trecho da rodovia PA-150, que une Curionípolis e Marabá. Para fazê-los sair da estrada, a Polícia Militar do Estado, usando táticas de guerra, após disparar para o ar, abriu fogo direto contra os manifestantes e contra aqueles que se encontravam em áreas circundantes. Alguns soldados também foram atacados a pedradas pelos manifestantes, resultando feridos. O Presidente da República reconheceu a tragédia e a responsabilidade policial pelos abusos cometidos e expressou sua indignação com o incidente, condenando as ações deste tipo. Patologistas forenses declararam que dez dos mortos haviam sido executados quando já estavam feridos(9). O Governador do Estado determinou, na mesma noite, a "prisão disciplinar" do Coronel de Polícia que liderou a chacina.
B. DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES RURAIS
Trabalho forçado e servidão
17. Em seu artigo 6, assinala a Convenção Americana sobre Direitos Humanos:
Proibição da escravidão e da servidão
a. Ninguém pode ser submetido a escravidão ou servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.
b. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório....(10)
18. Por sua vez, o Código Penal do Brasil (Art. 149) sanciona a redução de uma pessoa a condições análogas à de escravo com pena de dois a oito anos de prisão; sanciona o aliciamento de trabalhadores com o fim de levá-los para outra localidade do território nacional com pena de dois meses a dois anos de prisão (Art. 207); e sanciona a frustração, mediante fraude ou violência, do gozo de direito assegurado pela legislação do trabalho com pena de multa e prisão (Art. 203).
19. Um renomado sociólogo da Universidade de São Paulo que tem estudado este tema calculou que, em 1993, o número real de vítimas de trabalho forçado (ou em condições de escravidão) era de 60 000(11).
20. Em 1991 a Comissão Pastoral da Terra documentou 27 casos de trabalhos forçados ou semi-forçados, envolvendo 4 883 trabalhadores; 18 casos em 1992, envolvendo 16 442 trabalhadores; 29 casos em 1993, envolvendo 19 940 trabalhadores; e 28 casos em 1994, envolvendo 25 193 trabalhadores. O Governo reconheceu a seriedade do problema, mas não conseguiu, por exemplo, investigar mais do que dois casos, entre mais de dez denunciados em 1995.
21. A forma típica dessa prática de servidão forçada consiste em aliciar os trabalhadores, geralmente em outro Estado onde existam condições de extrema pobreza e desemprego rural, como o Maranhão e Tocantins, e oferecer um salário atraente para trabalhar em outro Estado.
22. Ao chegarem à plantação onde deverão trabalhar, os trabalhadores verificam que já são "devedores" dos empreiteiros, a título de transporte e alimentação durante a viagem, que além disso, também devem pagar as refeições e a habitação no estabelecimento rural e que as condições de trabalho são muito piores do que o prometido e, em geral, ilegais. Seja porque o salário é menor do que o prometido, seja porque se mede o hectare trabalhado e as condições são mais difíceis do que se lhes havia indicado, o salário real não chega a cobrir as "dívidas" que lhes são atribuídas. Ao mesmo tempo, são advertidos de que não podem abandonar a fazenda sem efetuar previamente o pagamento da dívida. Nos casos em que tentam sair do lugar, sicários dos empreiteiros os detêm brandindo armas de fogo, e se a ameaça não surte efeito, disparam. Como as fazendas são isoladas, essas tentativas de recuperação da liberdade são difíceis e arriscadas e, em muitos casos, significam a morte.
23. Delitos deste tipo, em que os trabalhadores são transportados entre Estados, competem à Justiça Federal e à intervenção direta da Polícia Federal, que tem demonstrado não estar sujeita às restrições políticas que debilitam a ação das Polícias Estaduais.
24. Tal como apresentado no Capítulo "Violência contra Menores", na seção "Exploração do Trabalho do Menor", documentos oficiais denunciam que dois milhões de menores na faixa etária dos 10-13 anos trabalham em condições ilegais e alguns deles em tarefas agrícolas sob situação de servidão forçada.
Ações do Governo
25. A Comissão foi informada pelo Governo que, consciente de que somente a legislação não é suficiente para a erradicação do trabalho forçado, este vem pondo em marcha diversos mecanismos de repressão ao trabalho forçado. Nesse contexto, o Grupo pra Erradicaçâo do Trabalho Forçado (Gertraf), composto por representantes dos Ministérios do Trabalho, do Meio ambiente, da Agricultura, da Política Fundiária, da Previdência e Assistência Social da Justiça e da Industria, Comercio e Turismo, vem elaborando, colocando em pratica e supervisionando programas integrados de repressão ao trabalho forçado. Gertraf também propõe atos normativos e coordena a ação dos órgão competentes para combater o trabalho forçado e articula-se com os Ministérios Públicos da União e dos Estados, com o Ministério Publico do Trabalho e com a Policia Federal.
Dialoga, ainda em reuniões mensais, com o "Fórum Nacional contra a Violência no Campo"; entidade colegiada integrada por representantes governamentais, e da sociedade civil, a Comissão Pastoral da Terra e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) - ocasião em que são apresentadas denuncias e discutidas estratégias de fiscalização.
26. Para reforçar o sistema de fiscalização e garantir a investigação sistemática de denuncias sobre trabalho forçado, esta em atividade, desde março de 1996, o Grupo Móvel de Fiscalização (GMF). Subordinado a Secretaria Nacional de Fiscalização do Trabalho, o GMF é constituído por equipes de agentes de inspeção do trabalho especialmente treinadas e com autonômia para realizar ações de fiscalização em qualquer parte do território nacional. Nas 83 empresas fiscalizadas em 1995 foram alcançados 26.242 trabalhadores. No ano de 1996, com a intensificação das ações, foram fiscalizadas 239 empresas, num total de 82.395 trabalhadores. Todos os relatórios da fiscalização sobre denuncias de trabalho forçado são encaminhados ao Ministério Público Federal.
27. Um importante instrumento para o combate a pratica da exploração de trabalho forçado reside na aplicação da ordem No. 101, de janeiro de 1996, do Ministério do Trabalho. Segundo esta norma, ao ser comprovada pela fiscalização móvel a reincidência, por parte do empregador, da submissão de trabalhadores a formas degradantes de trabalho, caracteriza-se o desvirtuamento da função social da propriedade, e então enviará informação detalhada ao Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agraria.
28. A Secretaria Nacional de Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Justiça, criou ainda o subgrupo de normalização, em atividade desde julho de 1996, que propôs os estabelecimento de mecanismos para a agilização do projeto de lei 929/95, que define como crimes as condutas que favoreçam ou configurem a exploração do trabalho forçado ou degradante. Este projeto de lei, está atualmente em discussão pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados(12).
A Situação no Sul do Estado do Pará. Trabalho forçado, ataques aos dirigentes trabalhistas, inoperancia judicial, e impunidade.
29. Diferentes denúncias gerais perante a Comissão e relatório sobre trabalhos forçados em algumas áreas do Brasil levaram a Comissão a investigar o assunto e a visitar zonas em que, segundo alegava, esse problema era extenso e crônico, principalmente no sul do Pará. A respeito, a Comissão recebeu amplos testemunhos de autoridades executivas e judiciárias do Estado, entre as quais o Governador, o Presidente do Tribunal de Justiça do Estado, juizes, promotores, advogados, líderes de trabalhadores rurais e familiares das vítimas. Os membros da delegação também tiveram acesso a autos e audiências judiciais referentes a estes tipos de casos.
30. Somente para citar o caso de 11 municípios do sul do Pará, a Comissão recebeu, de organizações religiosas e sindicais, informações que documentam a ocorrência de 148 denúncias, entre 1969 e 1995, contra 95 fazendas da região. Destas denúncias, formuladas à política e à justiça federal, tem-se conhecimento de apenas 47 fiscalizações efetuadas por agentes estaduais, quer através da Polícia Federal, da Delegacia Regional do Trabalho ou da Polícia Civil. Das 47 fiscalizações efetuadas por agentes(13) estaduais, não se identificou trabalho forçado em 18 casos; constatou-se esse delito em 14 casos; e houve discrepância entre órgãos estaduais em um caso. Desconhece-se a conclusão referente a 14 casos.(14)
31. As citadas denúncias contra 95 fazendas no sul do Pará, referentes ao período 1969-95 e documentadas judicialmente na maioria dos casos, referem-se a 13.322 trabalhadores em situação de semi-escravidão ou trabalho forçado, dos quais 904 conseguiram fugir, pelo menos 90 foram assassinados e 746 foram libertados pelas autoridades.
32. No período 1994-1995, documentaram-se 10 denúncias em 10 fazendas, indicativas da existência de 2 744 trabalhadores forçados. Em relação a seis dessas denúncias, 387 trabalhadores conseguiram fugir; cinco foram mortos; e cinco são tidos como desaparecidos. Em cinco procedimentos, 171 trabalhadores foram libertados pelas autoridades. Em sua maioria, os trabalhadores forçados foram contratados no Maranhão e outros no Pará. Não se efetuou qualquer detenção em relação aos casos denunciados em 1994 e 1995 e ninguém foi processado.
33. A Comissão pôde constatar, em documentos judiciais e em entrevistas com autoridades judiciais e advogados, vários casos que exemplificam a situação. Em março de 1989, foram levados para trabalhar numa fazenda do município de Conceição do Araguaia. 72 trabalhadores procedentes de São Luiz (Estado do Maranhão.) Lá chegados, foram submetidos a condições de trabalho forçado e impedidos de sair por jagunços armados. Em abril de 1990, 14 deles conseguiram fugir e denunciaram a situação. Apesar de todas essas denúncias e dos pedidos do Procurador da República, de defensores dos trabalhadores e de jornalistas, não foi efetuada nenhuma inspeção, em que pese o fato de os autores da denúncia haverem declarado que ainda existiam trabalhadores semi-escravizados dentro da fazenda. Não obstante a existência de testemunhas e as numerosas denúncias, a informação em poder da Comissão indica que o crime não foi objeto de qualquer sindicância judicial e que os responsáveis não foram punidos. Ao contrário: quando vários trabalhadores conseguiram escapar e formularam a denúncia, a Polícia os deteve durante dois dias.
34. Em outro caso, o da fazenda Espírito Santo, onde havia 40 trabalhadores em regime forçado em 1987, dois procuraram escapar. Um deles foi assassinado por jagunços da fazenda. O outro foi baleado e deixado como morto, mas sobreviveu e pôde formular a denúncia. Anos mais tarde, realizaram-se diligências policiais e sindicâncias judiciais, verificando-se a existência de trabalhos forçados. Alguns trabalhadores foram libertados. Até a data (dezembro de 1995), a investigação não havia sido concluída e ninguém fora processado.
35. Ainda em outro caso, o da fazenda Santo Antônio, em julho de 1986 agentes da Polícia Federal surpreenderam três homens que vigiavam trabalhadores forçados a fim de impedir sua fuga. Alguns desses trabalhadores, que haviam tentado escapar, foram recapturados e submetidos a torturas. A Polícia libertou-os. O Ministério Público só formulou a denúncia em 1994, ou seja, oito anos depois. Até a data, ninguém foi condenado ou detido.
36. Um exemplo da impunidade reinante é o caso de um empreiteiro, ex-vereador e prefeito municipal de Santana do Araguaia. A Comissão teve acesso a documentação que informa sua participação, nos últimos 15 anos, em 26 crimes referentes a trabalho forçado em 17 fazendas, cinco dos quais entre 1994 e 1995. Tramitam contra esse empreiteiro 5 processos, referentes a 5 dos 26 crimes. Em relação aos outros 21 crimes, não foram instaurados processos. Contra ele, correm também outros processos por homicídios. Em nenhum dos casos foi ainda proferida sentença definitiva. Detido a quase 10 anos depois de ter sido decretada a sua prisão preventiva, o empreiteiro continuou a agir delitivamente a partir da própria prisão e acabou por ser libertado. Em relação a vários casos, nem sequer se decretou sua prisão preventiva e, nos casos em que fora decretada, acabou por ser revogada com base em depoimentos que sustentavam a sua boa conduta e seu compromisso de se manter à disposição do juiz.
37. Em vários casos, o empreiteiro em questão foi processado juntamente com outros réus que agiram como seus cúmplices em vários casos de homicídio e trabalho forçado. Alguns dos seus cúmplices, depois de detidos, evadiram-se facilmente das prisões estaduais.
38. Outro caso de impunidade e inação judicial é o da fazenda Vale do Rio Cristalino, no município de Santana do Araguaia, de propriedade da empresa Volkswagen do Brasil. Em 1983 e 1984, várias centenas de trabalhadores foram contratados para obras de nivelação e acabaram trabalhando na condição de escravos, sem receber salário, ameaçados de morte em caso de fuga e maltratados e torturados quando tentavam fugir. A situação foi denunciada por trabalhadores fugitivos e uma delegação interpartidária de deputados estaduais visitou a empresa e comprovou as denúncias, que foram documentadas no relatório "Escravidão em Rio Cristalino", preparado por um deputado estadual. O juiz competente recebeu as denúncias em 1984 e determinou a intervenção policial. O delegado de Polícia de Santana do Araguaia comprovou a veracidade das denúncias, mas ninguém impetrou processo contra ninguém. Em 1983, o próprio Secretário de Segurança Pública do Estado solicitou ao Governador a urgente instauração de novo inquérito policial. Apesar da transcendência nacional e internacional do caso, em razão da importância da firma proprietária, decorridos 13 anos dos fatos não existe qualquer evidência ou informação de haver sido completado o inquérito e identificado ou processado quaisquer responsáveis, sejam estes os executores materiais ou os proprietários.
39. Também serve de exemplo um caso recente, ocorrido em 16 de julho de 1995. Fiscais de Delegacia Regional do Trabalho e agentes da Polícia Federal surpreenderam, flagrante delicto, a exploração de 52 trabalhadores em situação de trabalho escravo na fazenda Sucuapará, em Santa Maria das Barreiras, Estado do Pará. Os trabalhadores foram libertados. Segundo se alega, o empreiteiro envolvido era o mesmo já mencionado. Fiscais do Trabalho prepararam o relatório administrativo. Por sua vez, segundo os depoimentos prestados, a Polícia Federal não lavrou o flagrante e não abriu o correspondente inquérito. A Polícia Civil concluiu um inquérito e o Ministério Público ofereceu sua denúncia, iniciando o processo criminal que está em andamento. A prisão preventiva desta pessoa foi decretada em agosto de 1995 e revogada em outubro do mesmo ano, já que testemunhas atestaram sua boa conduta e seu interesse em manter-se à disposição do tribunal.
40. Na visita que realizou a essa região do sul do Pará, a Comissão, na presença e com a colaboração de delegados dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores, pôde comprovar que existe uma situação geral de atemorização da população e das autoridades, e de impotência em face da impunidade. Essa informação foi prestada unanimemente mediante depoimentos diretos de familiares, líderes sindicais, promotores de justiça, juizes, autoridades municipais, civis e religiosas. Tanto a população como numerosas autoridades indicaram à CIDH que a situação é atribuível à inação, à negligência e à incapacidade do sistema policial e judicial, às óbvias conexões entre delinqüentes e autoridades dos diferentes poderes e, além disso, à própria intimidação que estas sofrem.
41. As conseqüências desta situação de violação crônica dos direitos humanos excedem por larga margem a exploração dos trabalhadores e os assassínatos e ataques aos que querem libertar-se ou aos que os defendem. Três presidentes anteriores do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da região foram assassinados. O presidente atual, parente de uma dessas vítimas, foi ameaçado em várias oportunidades por pessoas vinculadas aos empreiteiros ilegais. Também sofrem ameaças permanentes os seus defensores, especialmente os religiosos da Comissão Pastoral da Terra, Padres Ricardo Rezende e Henri Burin des Roziers. Processos que não se iniciam durante anos e que, quando se iniciam, percorrem caminhos tortuosos e labirintos inconseqüentes, e acabam por serem arquivados. Responsáveis processados dezenas de vezes continuam a agir delitivamente sem dificuldade, exibindo, com o seu enriquecimento ilícito, o produto de suas atividades, e comprovando publicamente sua impunidade e sua capacidade de burlar a justiça.
42. Informações fidedignas chegadas à Comissão indicam que o Poder Judiciário do Estado do Pará atua de modo a facilitar a impunidade e a continuidade do crime organizado no sul do Estado. Entre os fatos mais salientes ocorridos nos últimos meses de 1996, estão a suspensão do processo contra o investigador Lucival Haroldo Sampaio Cruz, da Polícia Civil de Xinguara, acusado de facilitar a fuga de Wanderley Borges de Mendonça, assassino condenado pelo homicídio de um juiz em Goiás, e processado em Xinguara (sul do Pará) por outros dois homicídios. Wanderley trabalhava como gerente de Jerônimo Alves de Amorim, acusado de ser o chefe de uma organização de jagunços a serviço de proprietários de terras e empreiteiros e mandante de vários crimes, entre os quais o homicídio de Expedito Ribeiro de Souza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, ocorrido em 1991.
43. A suspensão do processo contra o policial a partir de julho de 1996 soma-se ao atraso da própria Polícia em executar o mandado de prisão do investigador que facilitou a fuga e que, durante esse tempo, continuou a integrar o quadro policial de Belém. Este clima de insegurança agravou-se em janeiro de 1997, quando pistoleiros notoriamente ligados a proprietários de terras locais assassinaram três trabalhadores rurais desarmados na fazenda Santa Clara, na localizada vizinha de Ourilândia do Norte.
44. Juizes e promotores cerceados pelas complexidades de um sistema processual inoperante e pelo temor de represalias, caso tomen decissões judiciais más efetivas; autoridades federais distantes e com um interesse objetivo inconstante a respeito do problema, sempre adotando medidas débeis e ineficientes; e uma população cuja capacidade de exercer seus direitos de reunião, associação, liberdade de comércio e trabalho e até política, são seriamente desafiados pela presença do poder paralelo dessas empresas perversas de exploração ilegal de trabalhadores.
C. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
45. Com base no exposto a Comissão conclui que:
a. Existe no Brasil uma situação historica de grave desigualdade na distribuição de terras e nas oportunidades econômicas nas áreas rurais. Apesar da capacidade constitucional do Estado e de Autoridades para resolver tal situação, esta se mantém. Embora a atual administração tenha iniciado programas para reduzir a gravidade do problema e facilitar o acesso a terra e credito aos pequenos produtores, o alcance de tais medidas e reduzido e, especialmente o Norte e Nordeste do pais mantêm situações de pobreza e desigualdade generalizadas no gozo dos direitos básicos.
b. Os atritos e as situações de tensão provocados pela desigualdade na distribuição de terras e de credito, dão origem a confrontos que criam condições para que sejam cometidos excessos na repressão e violações de direitos humanos.
c. A mesma situação de pobreza e de falta de oportunidades provocadas pela ma distribuição de oportunidades de acesso a terra e serviços, leva a exploração, em condições de servidão, dos trabalhadores rurais. A Comissão comprovou a existência no Pará, de grupos que se aproveitam dessas condições para conduzir trabalhadores desse e de outros Estados a situações de semi-escravidão, estabelecendo ainda, um clima de insegurança e ilegalidade através de agressões físicas tanto contra os trabalhadores como contra seus defensores. Sua impunidade está assegurada pela lentidão e inoperância do sistema judicial, bem como pela falta de eficácia das autoridades para prevenir e punir suas atividades.
d. A Comissão reconhece a série de medidas legislativas, administrativa e policiais adiantadas pelo presente Governo para resolver os problemas de direitos humanos relativos à posse e usufruto da terra, e a situação de trabalho em condições de servidão. Reconhece também a Comissão que essas medidas estão orientadas corretamente e que a magnitude destes problemas dificulta sua solução. Mas isso não pode fazer esquecer responsabilidade do Estado de resolve-los e a necessidade de uma vontade política plena do Governo para levar a fundo essas políticas e as medidas necessárias, assim como de todas as pessoas de compreender a urgência e importância de sua solução.
48. Em consequência, a Comissão recomenda:
a. Ampliar a ação do Ministério da Reforma Agrária e dos organismos de implementação da mesma para acelerar sua ação e oferecer possibilidades de acesso à terra e crédito às famílias de poucos recursos.
b. Ampliar e aprofundar as políticas, sistemas e medidas de negociação para reduzir os confrontos e situações de tensão e por sua vez acelera o processo anterior de redistribuição de terras e crédito. Implantar diretrizes firmes para o manejo das contínuas situações de protesto contra a desigualdade na situação rural, de maneira que se respeite o direito de expressão, de reunião, à vida, integridade e liberdade por parte das forças de segurança federais e estaduais.
c. Adotar legislação e políticas efetivas para por fim às situações de trabalho em condições de servidão e das ações de empreiteiros e criminosos que perpetuam sua existência. Criar condições especiais de segurança e plena vigência de direitos aos líderes sindicais e trabalhadores rurais, especialmente em áreas onde ocorrem maior número de denúncias a respeito da persistência de trabalho em condições de servidão rural.
d. Estabelecer normas e procedimentos especiais a respeito dos delitos ligados à exploração do trabalho humano em condições de servidão, assim como dos crimes, ameaças e associações ilegais realizadas para perpetrar e manter tais situações. Estabelecer ou implementar conforme o caso, legislação e medidas para a federalização de ditos delitos e sua severa repressão a todos os níveis policiais e judiciais.
e. Estabelecer medidas especiais de proteção para os defensores dos direitos humanos dos trabalhadores rurais, em regiões de maior desproteção, em particular na área do sul do Estado do Pará, assim como implementar medidas especiais para fazer mais efetiva a ação fiscalizadora, de investigação, de julgamento e punição dos que infrinjam a proibição da servidão, sejam eles autores intelectuais, sejam cúmplices diretos das mesmas.
OS DIREITOS HUMANOS DA MULHER BRASILEIRA
A. INTRODUÇÃO
1. Em conformidade com a Declaração da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos (Viena, 1993), "Os direitos humanos da mulher e da menina são partes inalienáveis, integrantes e indivisíveis dos direitos humanos universais". No sistema interamericano, os Estados membros reconheceram que o melhoramento da capacidade da mulher de exercer livre e plenamente seus direitos humanos é um desafio crucial para a consolidação dos sistemas democráticos no hemisfério.(15) A prioridade da melhoria do efetivo exercício da democracia em todo o hemisfério é um requisito prévio essencial para fazer avançar o respeito aos direitos humanos. Além disso, a democracia verdadeiramente participativa não pode prosperar até que todos os segmentos da sociedade participem plenamente da vida nacional.(16)
2. No Brasil, as organizações de direitos da mulher abriram novo espaço para a participação da mulher na vida nacional, trabalhando no contexto dos esforços iniciados no começo da década de 80 a fim de reorganizar a sociedade e fazer com que o exercício da democracia fosse cada vez mais eficaz. Em conseqüência dessa abertura, adotaram-se iniciativas importantes, tanto no setor público como no privado, para combater a discriminação contra a mulher e os seus efeitos. O movimento de mulheres no Brasil, apoiado pelas ações de centenas de organizações não-governamentais que trabalham na área dos direitos da mulher, tem exercido ativo lobbying em prol dos direitos da mulher e realizado grandes esforços no sentido de encontrar medidas concretas para proteger o direito da mulher a uma vida livre da violência. Por sua vez, o Governo tem aprovado e aplicado diversas iniciativas importantes, que visam a melhorar a observância dos direitos humanos da população feminina.
3. Apesar desses progressos e muito embora a lei proíba a discriminação por motivo de sexo, a Comissão tem recebido queixas e informações que detalham a persistência de discriminações de facto e de jure contra a mulher em diversas esferas, tal como o demonstra o fenômeno da violência contra a mulher(17). As recomendações contidas neste capítulo levam em consideração as iniciativas tomadas tanto no setor público como no privado, e refletem o fato de a sociedade brasileira ter compreendido a necessidade de adotar medidas adicionais para consolidar e impulsionar ainda mais os avanços já registrados.
B. A CONDIÇÃO DA MULHER NO BRASIL E O PROBLEMA DA DISCRIMINAÇÃO
4. No âmbito do sistema interamericano de direitos humanos, os Estados Partes da Convenção Americana comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos, "sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social". A Convenção Americana sobre Direitos Humanos requer que a proteção de todos os direitos e liberdades mencionados seja efetivada para que homens e mulheres desfrutem integralmente de seus direitos humanos" (Artigo 2). Quanto à igualdade, a Convenção Americana estabelece que todas as pessoas são iguais perante a lei e, por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei" (artigo 24), e que os Estados Partes devem especificamente, "tomar medidas apropriadas no sentido de que a igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento, durante o casamento e em caso de dissolução do mesmo" (Artigo 17.4). No que se refere às proteções por motivo de sexo, a Convenção proíbe o tráfico de mulheres (Artigo 6.1). O Brasil, além de ser parte na Convenção Americana e na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, ratificou em 1995 a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, "Convenção de Belém do Pará".(18)
5. Ao nível internacional, o Brasil é Parte na Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, bem como do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que incluem importantes proteções referentes aos direitos humanos da mulher.(19) Cumpre recordar que, apesar de o Brasil ter formulado certas reservas ao passar a ser uma das Partes na Convenção sobre Eliminação de todas as Formas e Discriminação contra a Mulher, em 1984, estas foram retiradas em 1994. O Brasil apoiou a Declaração da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, que condenou a violência contra a mulher; a Declaração sobre Eliminação da Violência contra a Mulher, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas; e a Declaração e Programa de Ação aprovados pela Quarta Conferência Mundial sobre Direitos da Mulher (Beijing, 1995).
6. O primeiro Conselho Estadual sobre a Condição da Mulher foi estabelecido em São Paulo, em 1983, com o fim de propor medidas a serem adotadas e formular recomendações sobre a integração da mulher na vida política, econômica e cultural do Estado. Essa iniciativa repetiu-se em todo o Brasil, tanto a nível estadual como no municipal. A Comissão sobre a Violência contra a Mulher desse Conselho, promoveu ativamente a criação da primeira Delegacia da Mulher, em São Paulo, em agosto de 1985.(20) Essa resposta específica e sem precedentes para delitos de violência contra a mulher serviu de modelo não apenas no Brasil, mas também em outros países.(21) O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) foi estabelecido pelo Presidente Sarney em 1985, através de iniciativa do Ministério da Justiça, com a finalidade de assegurar a adoção de políticas destinadas a acabar com a discriminação da mulher e facilitar sua participação na vida política, econômica e social do Brasil.
7. Como resultado da sintonia entre o setor não-governamental e o CNDM, a Constituição Federal de 1988 reflete vários avanços importantes em benefício dos direitos da mulher. O Artigo 5º estabelece a igualdade de todos perante a lei e que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (Seção I). É obrigação fundamental do Estado promover o bem de todos, sem discriminação (Artigo 3º, Seção IV). Além disso, a Seção XLI do Artigo 5º dispõe que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades individuais. Os direitos trabalhistas são assegurados pela Constitução Federal igualmente para homems e mulheres. O artigo 7 da Constitução, enumera ainda, direitos especificos das trabalhadoras mulheres, como licença maternidade e a proteçao do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos.
8. No âmbito do Programa Nacional de Direitos Humanos, as iniciativas propostas pelo Governo com vistas a melhorar os direitos humanos da mulher incluem, inter alia: o apoio ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e ao Programa Nacional para Prevenir a Violência contra a Mulher; esforços de apoio para prevenir a violência sexual e doméstica contra a mulher, prestar assistência integrada à mulher em situação de risco e educar o público a respeito da discriminação e da violência contra a mulher, e das garantias disponíveis; revogação de certas disposições discriminatórias do Código Penal e do Código Civil sobre pátrio poder; promoção do desenvolvimento de enfoques orientados para a condição de homem ou mulher na capacitação dos agentes do Estado e no estabelecimento de diretrizes para os currículos de ensino primário e secundário; e promoção de estudos estatísticos sobre a situação da mulher no trabalho. O Programa também recomenda que o Governo implemente as decisões consagradas na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
9. Apesar de várias iniciativas para modernizar a legislação interna e conformá-la às obrigações internacionais, como os compromissos da Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ainda permanecem vigentes, no texto da lei, uma série de disposições anacrônicas e discriminatórias(22). O Programa Nacional de Direitos Humanos identificou, para fins de revogação, várias disposições do Código Civil sobre pátrio poder e algumas disposições do Código Penal referentes à violação e agressão da mulher; outras disposições foram classificadas de anacrônicas e prejudiciais no relatório do Brasil preparado para a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995).(23) Por exemplo: certos delitos sexuais continuam a ser considerados como crimes contra os costumes, à diferença de outros delitos contra a pessoa.(24) A "honestidade" continua a ser um requisito legal para que uma mulher seja identificada como vítima de certos delitos, e o matrimônio entre o autor do crime e a vítima ainda pode cancelar o processo pela prática de certos delitos.(25) Muito embora seja reconhecido, há certo tempo, a necessidade de revogá-las, essas disposições permanecem vigentes na legislação brasileira.
10. Ao passo que a lei reconhece a igualdade entre homens e mulheres no Brasil, o Estado reconhece que "as mulheres brasileiras, que representam pouco mais de metade da população do país (50,1% em 1990), ainda se defrontam com dificuldades para participar plenamente de todos os aspectos da vida econômica e política nacional".(26) Cumpre adotar novas medidas com vistas a assegurar que as reformas legais ou de outra índole sejam devidamente aplicadas, para assegurar a livre e plena participação da mulher na vida nacional.(27)
C. A MULHER BRASILEIRA E O TRABALHO
11. Na esfera do trabalho, o Artigo 7º da Constituição proíbe, inter alia, diferenças de salário por motivo de sexo; estabelece certos incentivos para fomentar a participação da mulher no mercado de trabalho, proporciona licença remunerada à gestante por 120 dias e licença-paternidade de cinco dias. O Código Trabalhista contém estipulações adicionais a respeito dos direitos da mulher no local de trabalho.
12. Em setembro de 1996, estabeleceu-se o Grupo de Trabalho Governamental para Eliminar a Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação (GTEDEO), onde participa o Conselho Nacional dos Direitos da Mulhter (CNDM). Seu principal objetivo é à eliminação da discriminação por razões de sexo e à melhoria da implementação das disposições constitucionais contra a discriminação, da lei nacional e do Convênio 111 da Organização Internacional do Trabalho.
13. Embora a discriminação nos salários, nas contratações e no exercício de funções seja proibida por lei, o Governo reconheceu que "a discriminação por razões de sexo ainda persiste no mercado de trabalho".(28) Em fins de 1994, o Governo informou que as mulheres com educação e conhecimentos idênticos aos dos homens ganhavam 54% dos salários a estes pagos".(29) A Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística publicou os resultados de uma pesquisa segundo a qual, em termos gerais, os homens receberam sete vezes o salário mínimo, ao passo que as mulheres receberam três ou quatro vezes essa quântia. E o campo da educação profissional é de ressaltar que 42% das pessoas matriculadas nos cursos oferecidos são mulheres.
14. Apesar de a Constituição e a Consolidação das Leis do Trabalho proibirem a despedida de mulheres grávidas, informações recebidas pela Comissão indicam que isto continua a ocorrer e que alguns empregadores continuam a eliminar as candidatas a trabalho em estado de gravidez e as mulheres em idade fértil ou, em certos casos, exigem das mulheres provas de esterilização como condição de emprego. Uma das tarefas do GTEDEO é combater essa prática, assegurando a aplicação total da lei que a proíbe.
15. A prostituição forçada é uma complexa violação dos direitos humanos que pode implicar o uso ilícito de trabalho forçado, o tráfico de mulheres e meninas e a violência. A Comissão não pôde reunir informações suficientemente atualizadas para que o alcance desse problema no Brasil pudesse ser plenamente considerado. O Governo adotou algumas medidas iniciais para abordá-lo, tendo em vista os "relatórios sobre centenas de meninas que vivem em condições de servidão em lugares remotos de prospeção de ouro no Amazonas". Dentre essas iniciativas inclui-se, além da realização de diligências policiais para localizar e libertar algumas meninas, uma iniciativa para informar sobre a tortura e o assassinato de menores mantidas em escravidão no Norte, e a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito.(30) Tais indícios apontam para a provável existência de um padrão de graves violações de direitos humanos em certas localidades, que requerem resposta imediata e integrada para proteger as vítimas e assegurar a investigação, a abertura de processo e o castigo dos responsáveis por esse delitos. (O presente relatório também aborda o tema no capítulo "Direitos dos Menores").
D. O DIREITO DE PARTICIPAÇÃO NA POLÍTICA, NO PROCESSO DECISÓRIO E NA VIDA PÚBLICA
16. Em seu Artigo 23, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos dispõe que todos os cidadãos devem gozar dos direitos de "participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos", votar em eleições livres e justas e "ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país". A Constituição Federal dispõe que as mulheres e os homens têm idênticos direitos à cidadania e direito, em condições de igualdade, a votar, candidatar-se a cargos eletivos e ocupar cargos na administração pública.
17. Embora a participação da mulher na vida nacional e pública do Brasil tenha registrado grande avanço desde a Conferência de Nairóbi (1985),(31) é amplamente reconhecido que ela continua insuficientemente representada nas instituições do Estado e tem acesso limitado aos altos cargos do serviço civil e aos cargos por eleição popular.(32) O movimento feminino brasileiro tem procurado abordar essa situação por diferentes meios, entre os quais a promoção da reforma interna dos partidos políticos estruturados. Dada a reabertura do espaço para a atividade política ocorrida na década de 80, muitos partidos começaram a atentar para questões vinculadas aos direitos da mulher correligionária. Em 1981, as mulheres filiadas ao Partido dos Trabalhadores reivindicaram o estabelecimento de uma quota para assegurar 30% de participação feminina na liderança do PT.
18. Em termos gerais, as mulheres ocupavam 13,1% dos cargos eletivos do governo em 1995.(33) Em 1994, a percentagem de mulheres no Congresso era de 5,7%.(34) A mulher também está insuficientemente representada nas assembléias legislativas estaduais da Federação.(35) A primeira mulher Governadora de Estado foi eleita em 1994. No nível local, dados de 1992 indicam que havia 171 prefeitas municipais eleitas e 1 672 mulheres eleitas para as câmaras de vereadores dos 4 793 municípios do país.(36) Uma das medidas adotadas para aumentar a participação política das mulheres foi a aprovação da Lei 9100/95, segundo a qual todos os partidos políticos deveriam asseguram-se de que pelo menos 20% dos candidatos propostos às eleições de outubro de 1996 fossem mulheres.
19. No Poder Executivo, os dados referentes a 1995 indicam que 3,6% do cargos a nível ministerial e 14,7% dos cargos de nível subministerial eram ocupados por mulheres.(37) Antes do Governo atual, sete mulheres haviam sido titulares de ministérios. No Ministério das Relações Exteriores, as estatísticas relativas a 1994 indicam que três mulheres (2,94% do total) eram Ministros de Primeira Classe (a categoria mais alta no serviço diplomático).(38) No Poder Judiciário, apesar da introdução de um processo de seleção pública competitivo para as nomeações judiciais, quase nenhuma mulher em 1985, integrou os tribunais superiores. Nos tribunais superiores, por exemplo, dos 93 juizes integrantes em 1990, somente uma era mulher.(39) No Ministério Público, em fins de 1993, as mulheres ocupavam 26,9% dos cargos, o que representa aumento em comparação com os 20,4% correspondentes a 1986 e 11,1% em 1980.(40)
E. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
20. Nos países do hemisfério, as mulheres sofrem as conseqüências do tratamento injusto e discriminatório, expresso em violência, em todos os estratos sóci-econômicos, raciais e culturais.(41) A situação específica da violência contra a mulher no Brasil(42) gerou importantes ações dos setores governamental e não-governamental. No primeiro, uma das obrigações prioritárias do Conselho Nacional de Direitos da Mulher tem sido expor a questão da violência contra a mulher nos níveis políticos mais altos e levá-la ao debate público, trabalhando em prol das reforma de leis e apoiando os esforços que se realizam para assegurar que os responsáveis pelo cumprimento da lei e os servidores do Judiciário entendam as causas, a natureza e as conseqüências dessa violência.(43) Isso contribuiu para incorporar, no Artigo 26, VIII da Constituição de 1988, o compromisso explícito do Estado de criar mecanismos para abordar e combater a violência no âmbito familiar.(44) Em 1993, a Câmara dos Deputados instituiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito para estudar a situação da violência contra a mulher no Brasil.(45)
21. Como Estado Parte da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, "Convenção de Belém do Pará", o Brasil assumiu uma série de obrigações específicas que, partindo da base, complementam as disposições mais gerais da Convenção Americana. A Convenção de Belém do Pará define no nível regional a violência contra a mulher como "qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na privada",(46)
a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, que o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus tratos e abuso sexual;
b) ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local, e
c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra. "Toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada" (Artigo 3) e a que todos os seus direitos e liberdades fundamentais sejam protegidos e respeitados (Artigos 4, 5). É importante mencionar que o direito de toda mulher a uma vida livre de violência inclui o direito "de ser livre de todas as formas de discriminação" e "a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação" (Artigo 6).
22. Os Estados Partes da Convenção de Belém do Pará convieram em adotar, "sem demora", políticas destinadas a prevenir e erradicar a violência contra a mulher (Artigo 7). Isto significa que as Partes estão obrigadas a assegurar que os agentes do Estado respeitem o direito da mulher a uma vida livre de violência e a agir com o devido zelo "para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher (tanto na esfera pública como na privada), e que todas as vítimas da violência tenham acesso a procedimentos jurídicos justos e eficazes. As leis ou práticas jurídicas que "respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher" devem ser abolidas.(47)
23. Desde meados da década de 80, o Brasil tem estado na vanguarda da região em matéria de desenvolvimento e implementação de estratégias para proporcionar serviços às mulheres vítimas de violência. Existem atualmente mais de 150 Delegacias de Defesa da Mulher em todo o país, que prestam serviços especializados às vítimas. Além de contarem com policiais especialmente treinadas para o cumprimento de funções normais relacionadas com a aplicação da lei, essas delegacias também pretendem oferecer serviços sociais e psicológicos integrados.
24. A violência doméstica é, de fato, a forma mais comum de violência contra a mulher no Brasil, e inclui o assassinato de cônjuges, a agressão doméstica, o abuso e o estupro.(48) O primeiro refúgio para vítimas de violência doméstica no Brasil foi aberto como projeto piloto em 1986. Por meio de convênios com as Secretarias Estaduais de bem-estar Social, o Conselho de Direitos da Mulher oferece incentivos para promover o estabelecimento de refúgios adicionais para mulheres agredidas e seus filhos. Mais recentemente, em 8 de março de 1996, o Governo Federal lançou o Programa Nacional para Prevenir e Combater a Violência Sexual e Doméstica. O programa prevê ações em várias frentes, inclusive em relação a uma proposta no sentido de revogar a qualificação arcaica de crimes contra os "costumes", dada a certos delitos sexuais usualmente praticados contra a mulher.
25. Ainda que as Delegacias representem um avanço extraordinário no sentido de que abordam as causas e conseqüências específicas da violência contra a mulher, sua capacidade de proteção dos direitos da mulher continua a ser limitada em razão da falta de recursos humanos e materiais, da preparação insuficiente de pessoal especializado e não-especializado (nos quadros gerais da polícia) para tratar de casos de violência e de questões gerais da mulher, e da insuficiente coordenação com o restante da organização policial.(49) As policiais especializadas existentes não podem atender a todas as vítimas. Nas áreas rurais em particular, as mulheres contam com muito poucos recursos oficiais contra a violência e para obter ajuda.(50)
26. Além disso, mesmo onde existem essas delegacias especializadas, é freqüente que as queixas não sejam totalmente investigadas ou processadas. Em certos casos, as limitações tolhem os esforços envidados para dar resposta a esses delitos. Em outros casos, as mulheres não apresentam queixa formal contra os agressores. Na prática, limitações das leis e de outra natureza freqüentemente expõem a mulher a situações em que ela mesma de vê obrigada a agir. De acordo com a lei, as mulheres devem formular suas queixas numa delegacia e explicar os fatos a um policial para que este possa preparar uma "denúncia de incidente". Os policiais que não tenham sido suficientemente preparados talvez não estejam em condições de prestar os serviços requeridos e, segundo se informa, alguns deles continuam a tratar as vítimas de tal forma que estas se sentem envergonhadas e humilhadas. Para certos delitos, como o de estupro, as vítimas devem apresentar-se ao Instituto Médico Legal, ao qual cabe a competência exclusiva em matéria de exames médicos requeridos por lei para processar a denúncia. Algumas mulheres desconhecem esse requisito ou não têm acesso a essa instituição de forma justa e necessária para obter as provas requeridas. Estes institutos tendem a localizar-se em áreas urbanas e, onde existem, muitas vezes não dispõem de pessoal suficiente. Ademais, mesmo quando as mulheres tomam as medidas necessárias para denunciar a prática de delitos violentos, não existe garantia de que estes serão investigados e processados.(51)
27. Apesar de o Supremo Tribunal Federal ter revogado, em 1991, a arcaica "defesa da honra" como justificativa para o homicídio da mulher, muitos tribunais ainda hesitam em processar e punir os autores da violência doméstica.(52) Em certas áreas do país, persiste o uso da "defesa da honra" e, em algumas áreas, a conduta da vítima continua a ser um aspecto central a ser examinado no processo judicial relativo à ocorrência de um crime sexual. Em vez de se concentrar na existência dos elementos jurídicos do crime em questão, a prática de certos advogados de defesa - tolerada por alguns tribunais - acabam por tornar necessário que a mulher demonstre sua a pureza da sua reputação e a sua inculpabilidade moral para que possa utilizar os meios judiciais e legais à sua disposição. As iniciativas tomadas pelo setor público e pelo privado no sentido de fazer frente à a violência contra a mulher começaram a combater o silêncio que tradicionalmente tem ocultado esse crime, mas ainda é necessário superar as barreiras sociais, jurídicas e de outra ordem que contribuem para que a impunidade em tais crimes prevaleça.
F. CONCLUSÕES
28. No Brasil, a ação e a interação dos setores público e privado produziram muitos avanços dignos de menção na luta para assegurar o pleno gozo, em condições de igualdade, dos direitos humanos da mulher. O Estado deu início a um programa sem precedentes e proporcionou serviços policiais especializados para as mulheres vítimas de violência, que continuam a valer como modelo para outros países por sua amplitude e seu alcance. Mesmo assim, as necessidades críticas que têm sido atendidas com o programa só se tornaram mais aparentes com o passar do tempo, demonstrando a necessidade de promover o investimento e o desenvolvimento para satisfazer as reivindicações das vítimas.
29. Houve avanços significativos e também reformou-se a lei, com o fim de revogar disposições discriminatórias. Não obstante, tal como se especifica no parrágrafo 8, as leis obsoletas que permanecem no texto da lei (apesar de terem sido identificadas como arcaicas) e as práticas anacrônicas que persistem são incompatíveis com as obrigações internacionais do Brasil. Além disso, essas disposições e práticas perpetuam estereótipos que tolhem ainda mais a capacidade das mulheres de exercer seus direitos e liberdades. Isto deve ser modificado em função da condição do Brasil como Parte da Convenção Americana, da Convenção de Belém do Pará e da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.
30. Os delitos que estão incluídos no conceito de violência contra a mulher constituem violações dos direitos humanos nos termos da Convenção Americana e nos termos mais específicos da Convenção de Belém do Pará. Quando são cometidos por um agente do Estado com o uso de violência contra a integridade física e/ou mental de uma mulher ou um homem, a responsabilidade direta cabe ao Estado. Além disso, cabe ao Estado a obrigação, de acordo com o Artigo 1.1 da Convenção Americana e o artigo 7.b da Convenção de Belém do Pará, de agir com o devido zelo para prevenir as violações de direitos humanos. Isso significa que, mesmo quando a conduta não seja originariamente imputável ao Estado (por exemplo, porque o agressor é anônimo e não é agente do Estado), um ato de violação pode acarretar a responsabilidade estatal, "não pelo ato em si, mas pela falta do devido zelo para prevenir a violação ou a ela responder, tal como requer a Convenção".(53)
31. Tal como indicou o Relator Especial das Nações Unidas sobre a Violência, onde se demonstrar que a existência de proteções jurídicas é insuficiente para proteger o direito da mulher a uma vida livre de violências, "os Estados devem encontrar outros mecanismos complementares para prevenir a violência doméstica", incluindo a educação do público, a preparação do pessoal pertinente e o financiamento de serviços diretos de assistência às vítimas.(54) O Brasil tomou medidas inovadoras e louváveis a fim de criar e implementar esses mecanismos e indicou, no seu Programa de Direitos Humanos e em outras normas de política, sua disposição de consolidar os programas existentes e obter maiores proveitos.
32. Ocorrendo violações, deve o Estado investigar os casos, submeter seus autores à justiça e assegurar a existência de mecanismos de compensação . Em 1980, a organização não-governamental brasileira "SOS Mulher" iniciou sua campanha de combate à violência contra a mulher sob o lema: "O silêncio é cúmplice da violência". Em 1993, os participantes da Primeira Conferência Nacional de Organizações Populares contra a Violência Contra a Mulher, realizada em São Paulo, acrescentaram um novo lema: "A impunidade é cúmplice da violência". A informação de que dispõe a Comissão indica que ainda restam outras medidas a adotar para assegurar que as queixas de violência contra a mulher, em particular no ambiente doméstico, sejam totalmente investigadas e punidas de acordo com a lei.
G. RECOMENDAÇÕES
33. A Comissão recomenda que o Estado tome medidas adicionais para enfrentar a discriminação contra a mulher nos setor público e privado, incluindo: a) uma educação livre de padrões estereotipados(55); b) a revogação de disposições legais arcaicas; c) garantir que toda denúncia de discriminação seja prontamente investigada, processada e punida.
34. Que o Estado continue e amplie as medidas para promover a participação de mulheres em postos de decisão em todos os níveis da esfera pública ou privada e em particular, que assegure que as mulheres estejam ocupando equilibradamente posições em todo o nível do governo e do serviço público.
35. Que o Estado tome medidas adicionais para assegurar a plena participação das mulheres na vida econômica; especialmente evitando a disparidade a nível de remuneração; assegurando o pleno gozo dos direitos trabalhistas pelas mulheres e evitando práticas discriminatórias.
36. Que o Estado amplie a disponibilidade de respostas apropriadas em relação aos crimes de violência contra a mulher; incluindo sua investigação, processamento e punição simplificando os requisitos para que a mulher possa denunciá-los e impedindo preconceitos em seu tratamento; melhorando o treinamento de seus agentes a respeito das causas, efeitos dessa violência e os recursos existentes para evitá-la e denunciá-la; e atendendo à recuperação física e psicológica das vítimas.
37. Que o Estado aprofunde a análise sobre a prostituição e o trabalho escravo de mulheres e meninas que existe em certas regiões do país a fim de planejar uma solução adequada para proteger as vítimas, investigar os crimes e punir os responsáveis.
DISCRIMINAÇÃO RACIAL
A. SITUAÇÃO ATUAL
1. De todas as sociedades contemporâneas, a sociedade brasileira provavelmente é a que alcançou a amálgama mais abrangente de distintas origens e culturas. Essa amálgama foi alcançada apesar da disparidade das condições em que os diferentes grupos participaram da criação do que é hoje o Brasil, seja como povos aborígenes, europeus colonizadores e imigrantes trabalhadores, seja como africanos trazidos e explorados como escravos.(56) Essa combinação nem sempre foi harmônica, nem é completa e igualitária. Persistem ainda hoje diferenças que distam de uma igualdade mínima aceitável, discriminações que se traduzem em muitos casos, em padrões atentatórios aos direitos humanos, especialmente à igualdade, à não-discriminação e ao direito à dignidade.
2. A expressão principal dessas disparidades raciais(57) é a distribuição desigual da riqueza e de oportunidades. No que se refere à renda dentro do nível de pobreza, 50% dos negros auferiam renda mensal inferior a dois salários mínimos (US$270) em 1995, ao passo que 40% dos brancos estavam nessa situação. Inversamente, quanto aos salários altos, ao passo que 16% dos brancos recebiam mais de dez salários mínimos, a proporção entre os negros era de 6%. Os trabalhadores brancos ganham 2,5 vezes mais do que os trabalhadores negros e quatro vezes mais do que as trabalhadoras negras.(58)
3. Quanto à educação, em 1992 o analfabetismo entre os negros chegava à casa dos 30% e se elevava a 36,4% no Nordeste do Brasil.(59) O problema do analfabetismo guarda relação com a falta de acesso da população negra à educação formal e o problema do absentismo escolar das crianças de raça negra é muito freqüente, já que estas são obrigadas a deixar a escola para ajudar no sustento familiar. Em relação aos avanços nos níveis de escolaridade, 4% dos negros conseguem ingressar na universidade, em comparação com 13% entre os brancos. Um exemplo da margem diferencial de acesso é dado pelas cifras referentes à Universidade de São Paulo, de cujos 50 000 estudantes em 1994, apenas 2% eram negros. A situação repete-se em diferentes universidades do país, mesmo em cidades como Salvador, com maioria populacional afro-brasileira.
4. Também existe discriminação quanto aos cargos eletivos políticos já que, em 1995, havia 11 afro-brasileiros dentre um total de 513 congressistas.(60)
5. Entre a população em geral, a mulher negra é a que sofre maior discriminação e arca com o ônus mais pesado, já que 37% são a fonte primária de renda familiar, em comparação com 12% no caso das mulheres brancas. Por sua vez, a renda média mensal da mulher negra não passa de um terço da média mensal correspondente à mulher branca chefe de família. Em comparação com a mulher brasileira de raça branca com o mesmo nível de renda e com experiência similar, a mulher negra pode esperar perder maior número de filhos vitimados por doenças, morrer antes e ganhar menos.(61)
B. AS GARANTIAS CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NA LEGISTAÇÃO INTERNA DO BRASIL
A Constituição de 1988
6. Após a abolição da escravatura, a existência de discriminação racial no Brasil só foi reconhecida em 1951, com a aprovação da Lei Afonso Arinos. A Constituição de 1988 transformou essa discriminação em crime.
7. A Constituição de 1988 foi precedida de um amplo debate público, do qual participaram amplos setores da população. É interessante citar a respeito, a justificação oferecida pelo deputado negro Carlos Alberto de Oliveira, ao propor à Assembléia Constituinte de 1988 a tipificação do racismo como crime. Nas palavras do deputado:
Passados praticamente cem anos da data da abolição (da escravatura), ainda não se completou uma revolução política ... iniciada em 1988. Com efeito, imperam no país diferentes formas de discriminação racial, velada ou ostensiva, que afetam mais da metade da população brasileira, constituída de negros ou descendentes de negros, privados do pleno exercício da cidadania. Como a prática do racismo eqüivale a decretar a morte civil, urge transformá-la em crime.(62)
8. A Constituição Federal de 1988 estabelece, no seu Artigo 5º: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.
9. Em seu Preâmbulo, a Constituição Federal afirma o seu compromisso em assegurar o desenvolvimento de uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos...". Ao estabelecer os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, o Artigo 3º, inciso IV, assinala: "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". O Artigo 4º dispõe que "A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: ...VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo".
10. Igualmente, para proteger a cultura negra, seus ritos religiosos e costumes trazidos da África, a Constituição Federal garante, no seu Artigo 5º, inciso VI, a inviolabilidade da "liberdade de consciência e de crença", "o livre exercício dos cultos religiosos" e "a proteção aos locais de culto e suas liturgias". Esta disposição representa um avanço em relação aos textos constitucionais anteriores, que reprimiam a cultura negra, considerando-a atentatória à "ordem pública" e aos "bons costumes".
11. A preocupação com as culturas afro-brasileiras também se manifesta na Seção II, Artigo 215, parágrafos 1º e 2º da Constituição Federal, que expressa, no primeiro deles: "O Estado protegerá as manifestações das culturas populares indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional". E, no segundo: "A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais".
12. No que se refere ao resgate dos valores étnicos dos integrantes da raça negra e à sua contribuição para a formação da cultura brasileira, o Artigo 242 da Constituição dispõe, em sua Seção I, que "O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro". Por sua vez, o Artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias, em referência aos "quilombos" (comunidades negras que se organizaram autonomamente no interior do brasil, liberando-se de fato da situação da escravidão), dispõe o seguinte:
Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Legislação antidiscriminatória
13. Em 5 de janeiro de 1989, aprovou-se a Lei 7.716, conhecida como "Lei Anti-Racismo" ou "Lei Caó" que trata dos crimes resultantes do prejuízo de raça ou cor. Apesar do seu nome, essa lei não representou maior avanço no campo da discriminação racial por ser excessivamente evasiva e lacônica e exigir, para a tipificação do crime de racismo, o autor, após praticar o ato discriminatório racial, declare expressamente que sua conduta foi motivada por razões de discriminação racial. Se não o fizesse, seria a sua palavra contra a do discriminado.(63) É neste momento que começa a via crucis do discriminado em função de sua cor, que muitas vezes passa da condição de vítima para a de radical ou racista.
14. Por sua vez, a lei federal n.º 8.081/90 estabelece os crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou resultantes de preconceitos de raça, cor, religião, etnia ou origem nacional praticados pelos meios de comunicação ou por publicações de qualquer natureza.
15. A mencionada Lei 7.716 mostrou ser de difícil aplicação, já que não cria mecanismos que facilitem a prova de efetiva prática desse crime. Por outro lado, ao tornar necessário provar a intenção discriminatória, conduz a situações de prova em que a palavra do agressor compete com a do agredido e faz evidenciar a ofensa objetiva.
16. A Comissão quer ressaltar uma nova lei emitida durante a presente administração que prevê pena de três anos de reclusão para quem cometer crime de racismo por meio de injúria ou discriminação de raça etnia, cor, religião ou nacionalidade. A principal inovação introduzida pela lei é a caracterização do crime de racismo por ofensa ou preconceito nas relações de trabalho ou pessoais, ampliando o escopo da lei anterior sobre o assunto, que previa sanções apenas para casos de racismo por intermédio de meios de comunicação ou restrições ao acesso locais públicos em função da raça.(64)
17. Cumpre assinalar o avanço que significa a criação das duas delegacias de polícia especializadas em São Paulo e no Rio de Janeiro. O Governo de São Paulo criou uma delegacia de polícia especializada em crimes raciais(65), que começou a funcionar em 1993. No Rio de Janeiro, em setembro de 1994, criou-se uma delegacia policial também especializado em crimes desse tipo(66). No primeiro semestre de 1995, denunciaram-se na de São Paulo, 53 ocorrências de racismo. Este número é relativamente reduzido, segundo fontes que investigaram o tema(67) e seria explicado pelo desconhecimento geral a respeito da condição de crime que essa conduta reveste, já que é freqüentemente confundido com o crime de injúria, calúnia e difamação. Outras explicações referem-se ao desconhecimento da efetividade da Polícia e da Justiça e a uma convivência diária caracterizada por situações de discriminação e preconceitos raciais, o que resulta em resignação e na crença de que os esforços para corrigir a situação serão fúteis.
Medidas contidas no Plano Nacional de Direitos Humanos
18. O Plano Nacional de Direitos Humanos dá ampla cabida a medidas de curto, médio e longo prazo para enfrentar eficientemente o problema, com o objetivo global de valorizar a população negra. A curto prazo, suas propostas são no sentido de promover medidas de ação afirmativa tanto na atividade pública como na privada, incluindo estudos de base, incentivos e medidas de opinião e formação de atitudes públicas. Nesse sentido, atribui-se importância às atividades do Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação (GTEDEO), instituído no Ministério do Trabalho mediante Decreto de 20 de março de 1996, com representação tríplice dos empregadores, dos empregados e do Estado.(68)
19. Uma das medidas a curto prazo digna de nota é a de estimular a presença de grupos étnicos diversos nas propagandas institucionais contratadas pelo órgãos e empresas do Estado. A intenção é evitar a alimentação intencional ou inadvertida de estereótipos através da comunicação estatal, tal como ocorreu com no material de imprensa produzido pelo Estado de São Paulo ou por empresas estatais, que não incluía, de maneira representativa e igualitária, imagens dos diferentes setores étnicos do país.
20. A médio prazo, o PNDH propõe-se revogar toda medida legislativa ou de outra natureza que implique ou gere discriminação, e desenvolver ações afirmativas para o acesso de negros aos níveis universitários, de profissionalização e de desenvolvimento de tecnologia de ponta. Assimismo, a revalorização histórica, a recuperação de documentação e iniciativas didáticas gerais através do sistema educacional. Isto responde a um movimento de reivindicação histórica que tem crescido nos últimos anos e em particular, a partir de 1995, com o objetivo de recuperar para a memória histórica popular, o valor das lutas pela liberdade dos negros no decorrer da história brasileira e, em especial a dos "quilombos", organizações autônomas negras surgidas da rebelião contra a escravatura e a opressão no século passado, e de incorporar os líderes daquelas lutas na galeria das figuras honradas pelo historiografia e pelas comemorações oficiais.
21. Entre as ações positivas do Governo do Brasil, a Comissão toma nota dos esforços empreendidos no sentido de devolver às comunidades negras dos quilombos as terras nas quais vivem e trabalham. Tais iniciativas visam a oferecer segurança aos descendentes dos escravos que integravam os quilombos.
22. O Grupo de Trabalho Interministerial para a valorização da população negra (GTI), criado por Decreto Presidencial de 20 de novembro de 1995, foi encarregado de formular políticas públicas para valorização e promoção dos direitos dos afro-brasileiros. Entre as realizações do seu primeiro ano de trabalho, o Governo destaca as seguintes: criação do programa nacional de combate à anemia falciforme, doença genética que atinge sobretudo indivíduos da raça negra; inclusão do quesito cor nas declarações de óbito e de nascidos vivos; inclusão do quesito raça/cor no censo escolar e em todos os levantamentos estatísticos educacionais; encaminhamento dos estudos e das propostas para o cumprimento do disposto no artigo 68 das disposições transitórias da Constituição para a titulação dos ocupantes das terras remanescentes de Quilombos, a exemplo dos títulos já emitidos para as comunidades de Pacoval e Água Fria (Estado do Pará); proposta de uma programação para a TV-Escola, com vistas á revisão da história do Brasil sob a ótica da contribuição africana para a formação social brasileira; reavaliação dos livros didáticos distribuídos aos alunos do ensino fundamental de todo o país, tendo sido excluídas as publicações que continham preconceitos ou erros formais, bem como discriminação ou estereótipo de raça, cor ou gênero; acompanhamento, junto ao Ministério da Educação, da elaboração dos "Parâmetros Curriculares Nacionais"(69)
23. Outra medida proposta no PNDH, que chama positivamente a atenção da Comissão, refere-se à categorização da população brasileira pelo IBGE, o órgão oficial de estatística e recenseamento, que classifica sem bases científicas e sem objetivo compensatório a população brasileira de origem africana em pardos, mulatos e negros. Segundo a informação da Comissão, essa classificação, antes de representar o melhor instrumento para aplicar políticas de compensação de injustiças históricas, vale, isto sim, como uma legitimação de preconceitos superados e implica uma gradação de valor dos setores da população, inteiramente contrária ao princípio de igualdade estabelecido na Constituição Federal e aos seus compromissos internacionais. O PNDH propõe, de modo específico, que o IBGE adote critérios que acabem com essa discriminação pretensamente estatística.(70)
24. A Comissão considera igualmente importante e urgente o objetivo do PNDH de incentivar as Secretarias Estaduais de Segurança Pública a oferecer cursos de reciclagem e seminários sobre discriminação racial. Esta discriminação por parte de funcionário da polícia também provém do fato de que a população de cor, dadas as suas condições de vida e de pobreza majoritária, é a mais suscetível de sofrer e cometer atos delituosos. Contudo, diferentes indicadores revelam que, mesmo igualando fatores de renda e condição sócio-econômica, a população afro-brasileira é mais suscetível de ser suspeita, perseguida, processada e condenada, do que os demais. O censo penitenciário realizado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, abrangendo o período de janeiro de 1992 a abril de 1993, indicou que mais de 66% da população penal é negra, e de eles 95% indigente e sem condições de contratar advogado. Nesse mesmo sentido, e como reflexo da pobreza, um estudo realizado no Rio de Janeiro indicou que, dos homicídios dolosos contra menores, 54% das vítimas eram menores negros e 33,9% eram brancas, inserindo-se as restantes a outras categorias.(71)
25. Alguns exemplos selecionados pela Comissão mostram os remanescentes dessas atitudes discriminatórias que ainda persistem em alguns setores judiciais e policiais. Em agosto de 1996, em São Paulo, de acordo com investigações oficiais publicadas na imprensa brasileira, nove jovens foram detidos quando estavam em suas residências sem mandado judicial, torturados e obrigados a confessar, mediante torturas, sua suposta participação no assalto a um centro de diversões freqüentado principalmente por brancos, e apresentados ao público como culpados. Testemunhas do assalto que resistiram às pressões policiais no sentido de reconhecer os jovens negros como autores do assalto foram detidas. As autoridades judiciais anularam a investigação, por estar baseada em confissões obtidas sob tortura. Novas investigações policiais identificaram posteriormente os verdadeiros autores: quatro brancos com abundante prontuário policial.(72)
26. Contrariamente, é difícil condenar um branco acusado de discriminação racial. A Justiça tende a ser condescendente, tal como demonstrado por um caso notório ocorrido em 1990, um dos poucos que chegam aos tribunais. A pessoa supostamente discriminada era a professora Ana Augusta da Silva, proibida, por ser negra, de entrar numa escola estadual pela diretora Maria Thereza Ferraz Ramos Féris, que teria ofendido verbalmente a queixosa. Durante o processo, apresentou-se evidência segundo a qual a diretora evitava o acesso de estudantes de cor à escola de que era diretora, encaminhando-os a outras escolas. Apesar das suas evidentes referências contra a população negra, a diretora foi absolvida em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
27. As medidas previstas pelo PNDH e pelo GTEDEO no sentido de gerar incentivos para permitir a igualdade de oportunidades de emprego, salários e promoções respondem a um renovado interesse de setores do governo, e a reivindicações de associações de defesa dos direitos civis. As organizações do movimento negro brasileiro começaram a advogar por estas medidas aproximadamente a partir do começo da década de 90 e já conseguiram estabelecer uma promissora discussão e análise de medidas para compensar a discriminação histórica, especialmente quanto ao acesso à universidade. Iniciou-se também uma sadia discussão no âmbito das organizações de defesa dos direitos humanos, que estão reexaminando até que ponto existe uma motivação racial em certos padrões de violação de direitos humanos que ainda persistem em certos setores.(73)
C. RECOMENDAÇÕES
28. Em face da situação analisada, a Comissão recomenda especialmente o cumprimento dos objetivos e atividades propostas no Plano Nacional de Direitos Humanos para a valorização da população negra, em particular:
a. As ações do Estado no sentido de promover afirmativamente as oportunidades econômicas, de emprego, de educação e de direito da população negra a cargos eletivos em representação popular.
b. As medidas de educação dos funcionários da justiça e da polícia, para evitar ações que impliquem parcialidade e discriminação racial, na investigação, no processo ou na condenação penal.
c. A adoção de medidas de educação e conscientização pública que enfatizem a presença e a ação positiva dos distintos setores que compõem a vida brasileira e tenham desempenhado papel central na sua história.
d. A adoção de medidas para erradicar o uso, nas escolas e nos estabelecimentos de ensino, de livros didáticos que contenham referências pejorativas em relação à raça negra ou conceitos que reflitam estereótipos sobre essa raça. A substituição destes livros por outros que enfatizem a participação dos membros da raça negra na história do país e a importância da sua cultura e valorização.
Disponível em: https://www.cidh.oas.org/countryrep/brazil-port/Cap%201.htm
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